segunda-feira, 24 de agosto de 2009

"Vivendo o Som Virar Poema"







uma leitura de A letra do poema, de André Gardel











outras versões deste texto foram publicadas em:

- Forum Virtual O Que é Literatura e Teatro/PACC/UFRJ

http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/resenhas_vivendo_o_som_virar_poema.php

- Overmundo

http://www.overmundo.com.br/overblog/a-letra-do-poema-novo-livro-de-andre-gardel

I

Sem aura nem precipícios, a letra e o verso sonorizam uma trilha sonora para o “Tempo” pretérito que grita no presente poético de André Gardel: "Foi como se o passado gritasse/ do fundo do poço pedindo luz" - diz um dos poemas de seu novo livro. Como todos os deuses, o passado é eterno; não se pensa mas sabe pedir. Às vezes implora. Ao poeta pediu o passado outros suportes, cenários, roteiros e atos. Após os Poemas de Nova York (2002), ele serve aos ouvintes e leitores A letra do poema (2006) – um banquete sonoro de palavras, formas e epifanias, onde Dioniso e máquinas de morrer, dentre outros mitos e signos contemporâneos, dialogam sem subordinação.



I I



Uma música sai da página e, via corpo, adentra o espaço. Essa música beija o mundo sentindo quando "...o cheiro de carne/ queimada neblina o ar" ("A ferro"). Ela segue, essa melodia, o poder escultural da língua – "me esculpia com seu discurso" (“Bambu”) –, e em vários ritmos sinaliza as figurações do poeta no palco. Sinaliza também o tácito roteiro do músico e o seu "Vôo da cidade"; e serve de trilha para os ensaios do ator e do ensaísta. Esses eus estéticos - do poeta, do músico, do ator, do ensaísta - dialogam com as formas urbanas de um tempo cujo discurso cultural incorpora o desvio da sedução e o cinismo para desembocar no reino dos afetos: "....onde o discurso segue/ o curso das naus/ recurvas..." (“Cemitério Tróia”) ou na busca da mulher "...Vento que melhora a minha travessia" (“Brinde”).


I I I



Uma imagem pousa no ombro antigo do corpo banhado pela praia – brasa que alumia e queima em qualquer estação –, entortando o prumo e remarcando a ferro a alma de quem escreve e lê. Essa imagem demarca a vida de quem vê e ouve. Como quem brinda procurando "um parto, um pranto, um crime". Como quem lê na vitalidade do cenário que não pára e no ritmo da respiração que celebra ávida de ar o anúncio da fome que retoma o seu lugar no palco da letra. Viver é gastar a vida ou velocidade e memória serão minhas armas (“Da modernidade”).



I V



Um corpo passeia na asa do vento e na brisa da água aguçando o ritmo da canção que atravessa olhos, ouvidos, narinas e cabelos. "Tudo é tato", mãe. Quando o passado pede luz é porque há uma lucidez impressa no corpo que lê: "a claridade beijava o mundo" ("Tempo").


V


Uma tradição sonora e verbal aviva a memória e avisa que quanto mais íntimo do mito ou do demo, menos discernimos neles o quanto de ficção e sabedoria onírica e corpórea os compõem. O excesso de riso do demo gasteja o seu golpe – é o que lecionam os demônios “Da modernidade”. E se eles não tivessem tanto o que (e como) dizer – seja no palco, na veia ou na página – é claro que, desde a Bíblia, eles não teriam tanto espaço, tanta interlocução.



quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Novas águas poéticas





Uma versão deste ensaio foi publicada no jornal Tribuna do Norte, Natal, 24/03/1998


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Quem não se lembra dos anos 80, do informativo 1º toque e da coleção Cantadas Literárias da editora Brasiliense? Foi através delas - as Cantadas... - que muitos leitores da minha geração conheceram a poesia de Paulo Leminski, Ana C., Chico Alvim, Chacal e autores consagrados como Walt Whitman, por exemplo.

Próximo à virada do milênio, novas águas poéticas deságuam nos mares de nossas letras, agora principalmente através de duas editoras: a 34 Ltda. (SP) e a Sette Letras (RJ). A editora paulista lançou nos dois últimos anos autores já consagrados, ou quase, como: Waly Salomão (Algaravias), Régis Bonvincino (Ossos de Borboleta), Duda Machado (Margem de Uma Onda), Nelson Ascher (O Sonho da Razão), Mirian Piglia Costa (Notícias do Lugar Comum), Sebastião Uchoa Leite (Ficção Vida), etc...

Como a editora Brasiliense nos anos 8O, a Ed. Sette Letras vem lançando autores novos e antigos (Mallarmé, Rilke, Jules Laforgeu, Mário Peixoto), mas privilegiando os primeiros. Dentre estes, destacam-se: Marco Antonio Saraiva (Entre Nervuras), Carlito Azevedo (Sob a Noite Física - Prêmio Jabuti, l997), Maurício Arruda Mendonça (Eu caminhava assim tão distraído), Rodrigo Garcia Lopes (Visibilia), Leila Coelho Frota (Brio), Álvaro Mendes (Íris Breve), Ângela de Campos (Feixe de Lontras) e Rose Calza (Entre Pedaços), dentre outros.

Além destes poetas jovens na sua maioria, destacam-se autores lançados por outras editoras, como Antonio Cícero (Guardar) e Waldo Motta (Bundo). O primeiro teve sua obra veiculada através da editora Record; o segundo, pela editora da Unicamp. Os dois livros foram publicados em 1996. Apesar de seus autores apresentarem dicções diferenciadas, suas obras possuem núcleos temáticos afins: ambas ostentam uma tonalidade homoerótica que parece ter na poética de autores com W Whitman um dos seus paradigmas.



“Um poema deve ser uma festa do intelecto”



A leitura destes novos e (alguns) já consagrados poetas, demonstra haver uma outra sensibilidade no ar, além do vôo de borboletas e dos sentimentos noturnos de plenitude. Mesmo quando se trata desses insetos de metamorfose completa, não são o vôo e suas asas que interessam, mas o osso - a forma, como demonstra o belo título de Régis Bonvincino (Ossos de Borboleta). Mesmo quando utilizam a noite como signo poético, não são as figurações marginais ou as abstrações românticas que se anunciam, como fica evidente em Sob a Noite Física, de Carlito Azevedo: “o dia contorceu-se até o avesso/ para nos dar/ uma noite como esta”. No final do século XX, é outra a forma do poema: do distraído jogo dos poetas alternativos ou marginais que marcaram oa anos 70 não restou sequer o apreço pela senha da via jugular.

Esta nova sensibilidade inscreve-se em sintonia com uma produção teórica e cultural. Estes autores lançam mão de certos procedimentos estéticos herdados da modernidade, alguns traços estilísticos clássicos e de um corpus intertextual oriundo das mais diferentes práticas artísticas. Quase todos estes poetas fazem uso (às vezes com ironia e humor) do arquivo de formas herdadas da tradição, além de demonstrarem consciência histórica em relação ao texto - herança do poeta-crítico da modernidade. Exemplar dessa historicidade é a re-leitura que Nelson Ascher faz de Goya - El sueño de la razión produce monstruos - exemplificando o uso do arquivo de formas para construir o título do seu novo livro de poemas, O Sonho do Razão. Já a festiva epígrafe de Waly, utilizada acima como título, dá mostra da nossa crítica herança moderna.

O uso de uma simetria bastante heterodoxa baliza essa produção poética que acena para o século XXI. Trata-se de uma verdadeira democracia das formas, que vai do poema breve ao longo (este, parece que bem mais utilizado), copia a forma do soneto, como faz Paulo Henriques Brito com bastante competência, e esbanja nos versos livres e brancos. Muito verso branco. Só que: diferentemente de algumas poéticas recentes, a poesia contemporânea parece mensurada pelo domínio do “fazer” literário, sugerindo ao poeta um exercício consciencioso do seu labor. Mas, tudo isso sem drama, como encena Rodrigo G. Lopes em “Como se fosse Bob Creeley: “o soneto tem sede/ mas ainda não é/ sequer um som”.



“entre as vigas do verso” e o “mel da língua”



A leitura dessa nova safra poética parece nos mostrar que muitos procedimentos estéticos e culturais estão fora das atuais circunstâncias poéticas. Não valem mais os jogos de oralidade fácil e suas assonâncias, os trocadilhos. Poucos dão crédito para os versos centrados num ‘eu’ que não pára de sentir a si e dizer suas próprias opiniões e lamentações, a ponto de desleixar-se em relação ao outro, o diferente (o leitor); e mesmo os escritos “de passagem” - calcados no referencial da fala cotidiana - passam por um trabalho com a linguagem bem diferentes de alguns registros aparentemente banais dos anos 70 e 80.

Tudo isso fica claro na declaração de Marco Antonio Saraiva, autor de dois belos livros: Entre Nervuras e Sete Jardins e Uma Paisagem): Depois dos concretos, a gente voltou melhor pro verso. Selecionado para a nova antologia de Heloísa Buarque de Hollanda e prefaciado por Décio Pignatari, Marco é saudado pelo poeta concreto como uma autor que chega maduro demais à sua poesia inaugural. Cabralino confesso, como grande parte de seus contemporâneos (Waly Salomão, Carlito Azevedo, Nelson Ascher), Marco elabora em seu texto a tessitura de uma poética que consiste numa “educação pela folha, pela pluma”. Exemplo disso é o procedimento da metalinguagem operado no texto “Letmo”:

Emendavas as

linhas da mão às

linhas do papel,

escavando abismos na

fria superfície de

uma folha, até

que te passaste

todo para o branco.

Uma dupla de autores que contribui para a leitura diferencial dessa poética contemporânea são Maurício Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes - parceiros na tradução de Sylvia Plath: Poemas (Ed. Iluminuras, l994). Maurício não é tão distraído, como anuncia no título de seu belo livro. Este apresenta domínio formal, além de esmerado trabalho com a "língua pedra-pome/uma sede de altura". Sua poética traduz uma dicção de cunho filosófico, e dá mostras de como o exercício da tradução influencia seu trabalho com o poema. Tecendo intertexto com Heráclito, Kerouac e Spinoza, dentre outros, o sujeito - nada distraído - escreve ritmado pelo dilema entre natureza e cultura, expresso em textos como “Perotinus”:


Dê asas aos lobos, sonho

e os jornais arderão de realidade.

O livro Visibilia, de Rodrigo G. Lopes, parece sintetizar, em “Talvez Seja Isso”, a visão da maioria de seus companheiros: ” A imagem iluminada desgastou/ depois que a duração virou mercadoria. O ‘eu’ lírico/ não subsiste num mundo de fluxos e superfícies vazias...” A inscrição desse texto diz de um espaço no qual um vazio “contempla/ sua própria rachadura” em meio a seres fragmentados, e estetiza um tempo ritmado por “uma velocidade que de repente não muda muito/ as coisas”.

A poética de Rodrigo G. Lopes, assim como a de Antonio Cicero, por exemplo, possibilita uma leitura deste espaço no qual inscreve-se o sujeito no vazio da cena contemporânea. Espaço cuja organização se dá de forma superficial, com amplas fachadas e informações a serem lidas velozmente, de passagem. São formas descartáveis, mutantes, situadas no plano da superfície; formas que se repetem, são re-feitas, deslocam o sujeito. Esse “estoque de formas” traduz o vazio e a fragmentação de um espaço-tempo constantemente mutável de uma “cidade que não tem mais fim” (Antonio Cícero).



A perda do olhar olímpico



Parece que dessa cena vazia, fragmentada e mutante pouco entendem os que cobram dos atuais poetas e narradores a construção de uma poética e/ou narrativa calcadas nas idéias de totalidade, ou na produção de um sentido que vise a noção de unidade. O poeta contemporâneo sabe da impossibilidade de vivenciar as coisas no âmbito de uma abrangência universal. Até porque as próprias coisas, no que concerne às suas gêneses e expressões, não mais são mediadas pelo sentido da totalidade nem originalidade. Essa consciência é estetizada pela maioria destes autores. Ouçamos Waly Salomão, poeta que considera otário quem não faz da dor investimento:


Esgotado o eu.../ A vida não é uma tela e jamais adquire/ o significado estrito/ que se deseja imprimir nela./ Tampouco é uma estória em que cada minúcia/ encerra uma moral./ Ela é recheada de... liquidações... apagamentos de trechos, sumiços de originais... Onde estão os originais?

Talvez o que mais caracterize essa cena pós-moderna seja a consciência de que tudo que é sólido desmancha no ar; além da constatação de haver no cenário cultural, deste final de século, um sujeito esquizofrênico, permeável a tudo que se encontra ao seu alcance (Rouanet) . Esse sujeito possui na fragmentação, na simulação e na re-leitura seus signos recorrentes. Ele tem consciência da ruptura dos paradigmas estéticos e científicos; o que relativiza, de certa forma, aqueles conceitos de totalidade, originalidade, ubiquidade e unidade que tanto suporte deram para o projeto da modernidade. Daí a performance fragmentada e mutante destes novos poetas. Daí o suporte democrático em relação a uma pluralidade de formas, uma multiplicidade de linguagens, e não apenas a predominância de um estilo, como tantas vezes aconteceu em nossa poesia durante o século XX.


No geral, estes escreventes de fim-de-século mostram-se conscientes dessa problemática (belamente exposta nas orelhas de Algaravias e de Margem de Uma Onda por, respectivamente, Davi Arrigucci Jr. e Luís Costa Lima). Além de destituídos de quaisquer preceitos vanguardistas e de cultuarem simetrias múltiplas, estes poetas demonstram a importância dada à materialidade da linguagem, sem abdicar do trabalho com os níveis sintáticos e a sutileza de suas nuanças históricas e culturais.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Marco Lucchesi e a metafísica das alturas




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Uma versão desta resenha foi publicada no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 24 de Janeiro de 2004

A poética do distanciamento construída pelo escritor
aproxima e leva o leitor ao “céu”

Sphera é o primeiro livro de poemas de Marco Lucchesi, depois que ele publicou os seus Poemas Reunidos. Nesse volume editado em 2000, e que contém a sua já vasta fortuna crítica, a ensaísta Constança Hertz diz dessa poética “feita de alturas vertiginosas e de abismos... onde “o impossível existe e assume a forma perene...”.

Essas “alturas”, esses “abismos” e essa forma do im - possível permeiam toda a poética de Lucchesi, e continuam presentes neste livro de 2003. Essa Sphera grafada cor de sangue sobre capa branca não é um título qualquer; possui uma longa história. O vocábulo, assim como o poeta e o poema, atravessa séculos. Sua origem vem do “latim tardio”, segundo a lição do professor e pesquisador clássico Henrique Cairus. Seu significante sugere uma feliz polissemia que perpassa o substantivo esfera, o adjetivo ex-fera e o verbo espera, dentre outras possibilidades de leituras.

Se nos guiarmos pelo eu poético e levarmos em conta o seu significante primeiro (“aqui me sinto/ mais/ substantivo”), veremos que a forma esférica anuncia uma boa cota de lirismo:

Teu rosto acende meus sonhos
de reparação
algo me atinge me confunde e me arrebenta
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A forma sugerida pelo substantivo esfera expressa “uma grata ancestralidade romântica”, como diz Eduardo Portella no prefácio deste livro. Já na leitura das três epígrafes que abrem o volume, há ecos naturais e subjetivos do universo do Romantismo: “um campo de sossego” de onde brotam “silêncios”, solicita que “sejamos” - resumem essas epígrafes.

Para adentrar este universo estético e conjugar o verbo ser, o eu lírico acerca-se do provisório que há no sossego dos homens e no silêncio com o qual eles dialogam com as coisas. O poeta sabe que a superfície guarda preciosidades. Prova concreta disso é o poema, quase invisível, na capa do livro, falando de segredo e palavra. Desta Sphera ouvimos uma tonalidade bem mais harmônica e sossegada que a multiplicidade de tons e timbres (líricos, religiosos, épicos, dramáticos...) da prosa poética e memorialística de Os Olhos do Deserto (2000), livro cuja composição inclui trechos de diários e anotações de cadernos de viagem, dos quais emanam múltiplos saberes e diferentes registros existenciais. Agora, o poeta apresenta uma linguagem cada vez mais concisa e encapsulada. Essa concisão possibilita o diálogo entre o moderno verso branco com formas clássicas como o soneto.


Quando a palavra beija a jugular


Por meio desse diálogo entre formas diversas, Marco Lucchesi erige a sua “metafísica das alturas”, em sintonia com as batidas do coração do firmamento. Embora a leitura dessa “metafísica” sugira uma dimensão poética eminentemente platônica, é bom atentar para a forma como o poema constrói-se. Essa construção acontece de olho na concretude do que se encontra no entorno, na superfície; como demonstram as figurações maquínicas e corporais a seguir:

Sobem

inacessíveis

minaretes ávidos

de altura e de infinito
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e a veia jugular
mais próxima que os céus


Estes belos versos resumem a “soma das distâncias” de que é feita esta poesia. Se as distâncias de Sphera desejam uma ordem, esse desejo existe em sintonia com o corpo em suas relações pulsantes e cotidianas. O texto da “veia jugular” é, nesta espera, próximo ao céu. Neste sentido, é possível que a pulsação da jugular evoque a altura dos minaretes. Quando essa evocação aciona a torre, a palavra beija a jugular. Beija também os minaretes que sugam, há séculos, a luz, e devolvem essa luminosidade ao olhar faminto e detetivesco que os contempla com desejo de escritura.

A travessia entre a universalidade das alturas (a fixidez dos minaretes) e a singularidade da condição humana (a movência pulsante da jugular) acionam distâncias. São estas distâncias que aproximam o paladar de quem bebe “a baba do dragão”, do paladar de quem saboreia a “saliva dos deuses”. Na travessia entre o universal e o particular, entre o animal e o divino, a leitura das distâncias aproxima o poema e o leitor. E a partir do que está próximo, Lucchesi constrói, com sua matemática subjetiva, uma poética do distanciamento.

Há nessa poética o adiamento dos dias e sua “fome de distãncia”. Saudades do Paraíso (1997) em oposição à saudade do futuro. No tempo presente, os homens e as coisas operam sua fugacidade, quando “sobre/ vive o risco da distância.” No fim, todo esse distanciamento termina aproximando e levando o outro – o tradutor, o leitor, o resenhista – ao “céu (versão literal)”:

E o mesmo rio-palavra respira essas distâncias: as lágrimas de Camões e a brisa dos Sertões (água escrita de terra!)...

Parece haver entre as águas lusas e a terra euclidiana as mesmas distâncias que aproximam, em Sphera, a multiplicidade filosófica de Lucchesi que explode poeticamente de formas platônica e aristotélica. Platonicamente, essa explosão é sugerida perto de “um rebanho de/ palavras junto/ ao rio/ e um lobo i-material”. De Aristóteles, o poeta herda a admiração, o espanto e a capacidade de assombrar-se com a concretude noturna do cotidiano. Nesta distãncia poética vale tudo. Menos o discurso previsível das extremidades, como anuncia o poeta luminoso e faminto: “invoco/ uma palavra// que me salve/ dos extremos.”

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Escritos Contra o Privilégio do Desgosto









Entrevista publicada in Pucheu, Alberto. A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993 - 2007). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.


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Considerado um dos poetas mais atuantes da cena artística e cultural deste início de milênio, Alberto Pucheu nasceu no Rio de Janeiro em 1966. É escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou os seguintes livros: Escritos da Indiscernibilidade. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003. A Vida É Assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001. Ecometria do Silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. A Fronteira Desguarnecida. Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1997. Escritos da Freqüentação. Rio de Janeiro: Ed. Paignion, 1995. Na Cidade Aberta. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1993. Organizou o livro: Poesia(e)filosofia; por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras, 1998, que contou com a participação de Adélia Prado, Antonio Cicero, Fernando Santoro, Marco Lucchesi, MD Magno, Orides Fontela e Rubens Rodrigues Torres Filho, além da do próprio organizador. Participa das antologias: 7+1. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1997 (organizada por Guilherme Zarvos) e A poesia fluminense no século XX. Rio de Janeiro: FBN/Imago/UMC, 1998 (organizada por Assis Brasil).


Em torno dos Escritos da Indescernibilidade foi feita a entrevista a seguir. Nela, o poeta define seus Escritos..., transita pela República platônica, assume a “relevância” do esquecimento enquanto categoria nietzscheana, fala do “escuro” enquanto conceito poético, na poesia de Manuel de Barros, e nos brinda com uma bela reflexão acerca dos “corpos múltiplos” que se formam a partir dos “encontros” entre a poesia e a filosofia. Vale a pena mergulhar na letra de Pucheu, e entender porque André Gardel considera os Escritos... “um livro teórico com andadura e compleição poéticas, com conceitos e definições que nascem de eixos de formação de linguagem...”. Com a palavra, o poeta de A Fronteira Desguarnecida – texto com o qual o autor recebeu, em 1996, o prêmio de poesia da Fundação Biblioteca Nacional/INL para obra em curso.


NGDepois da poesia de A Vida é assim (2001), o que são os Escritos da Indescernibilidade (2003)?

AP: O livro de uma confluência das forças que me formam, poéticas e filosóficas. O livro de uma mestiçagem de alguém para quem a aprendizagem da poesia esteve e está intimamente ligada à aprendizagem filosófica. O livro de uma pessoa cujo caminho não a fez distinguir a suposta liberdade poética da exigência de um suposto rigor do pensamento filosófico. O livro de um poeta para quem a visão que a crítica literária tem da poesia raríssimas vezes teve importância, e que, em contraposição àquela, sempre privilegiou os textos dos filósofos sobre poesia, literatura e arte. O livro de quem sente a necessidade e o desejo de pensar o poético. O livro impulsionado, todo ele, pela requisição para que o poeta pensasse a própria poesia. Assim, vejo os Escritos da Indiscernibilidade como um livro do meio do caminho. Do meio do caminho de minha vida. Como um livro da perplexidade do entre, um livro para entrar na perplexidade, como disse Jorge de Lima: "Mas que venham de vós perplexidades/ entre as noites e os dias, entre as vagas/ e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre..."


NG: O que seria “entrar” na perplexidade?


AP: Uma possibilidade para entrarmos na perplexidade, buscando freqüentá-la o quanto der, é nos mantermos no entre. Entre no entre, seria um convite, um slogan poético, não tautológico. A admiração é filha do entre, daquela zona em que se é, simultaneamente, os dois pólos e nenhum, daquela ambiência em que, ao mesmo tempo, se é e não se é, daquele lugar que, concomitantemente, é um não-lugar – entre o dentro e o fora, entre as noites e os dias, entre o sonho e a verdade, entre as vagas e as pedras, entre. Como, além de em Jorge de Lima, já está
em Hesíodo, o espanto é, sim, filho das vagas e das pedras, é litorâneo – nossa cidade. O jeitinho do carioca: admirar, exclamar, espantar-se, sempre, seja com o que for, o futebol, a paisagem, uma batida de carro, um assalto, uma esquina, uma mulher bonita... Melhor do que ninguém, o povo sabe que o jeitinho do Rio é o do entre: conta a anedota que, aqui, cafetão se apaixona, puta tem orgasmo, traficante se vicia...
Engendrador da exclamação, o entre é a pura passagem, a abertura de um movimento em que nada se estabiliza, em que nada se configura inteiramente, o bueiro da criação. Parece-me salutar, portanto, e mesmo necessário, levá-lo como passageiro da escrita, ele, que, dela, é seu motor. Todos os dias, peço carona a ele, com alguma esperança. E ele deposita no bolso de minha poesia algumas palavras-imagens-conceitos que a atravessam: miscigenação, indiscernibilidade, fronteira desguarnecida etc, tudo que quer desalgemar o poético, tudo que quer deixá-lo fugidio pela cidade, perigoso, arrastando o que lhe aparece pela frente.


NG: No segundo fragmento dos Escritos da Indiscernibilidade, você escreve sobre a “formação de corpos múltiplos”, a partir dos “encontros” entre Filosofia e Poesia. Esse fragmento sugere que a ação do pensamento e o exercício da linguagem possuem “particularidades que, ...mantêm suas respectivas diferenças...”. A quais diferenças você se refere nesta relação entre Filosofia e Poesia? E o que são esses “corpos múltiplos”?


AP: A pergunta pelas diferenças não me parece intrínseca ao livro, mas aquela, talvez, para a qual ele deseja apontar uma alternativa, outra, sem recusar, entretanto, que distinções possam existir. A rápida e, pelo que me lembro, única menção às diferenças, autenticando inteiramente sua pergunta, aparece tão somente como a tentativa de não querer determinar que a confluência seja um ponto final, estanque, único, anulador de diversidades que podem existir e que, de fato, existem. Se existe uma zona de mestiçagem entre elas, há também uma de diferenciação: esta é a peculiaridade e o enigma de tal relação: poesia e filosofia são discerníveis, sem deixarem de ser indiscerníveis, e indiscerníveis, sem deixarem de ser discerníveis. Em meu percurso de busca de uma ou outra indiferenciação, sempre me interroguei sobre o fato de as pessoas tomarem o divórcio entre elas como um ponto de partida inquestionável. Isto porque, para mim, demarcar claramente a separação é tão difícil quanto tecer a fusão.
Historicamente, entretanto, algumas intensidades que jogaram mais para o lado da filosofia podem ser percebidas, assim como outras que preferiram a poesia. Poder-se-ia pensar, por exemplo, no conceito e na idéia como mais acentuados pela filosofia, enquanto que a imagem e o sensório teriam privilegiado a poesia. A irônica exclusão dos poetas da cidade platônica atravessaria esta questão, mas, como disse, a expulsão parece-me inteiramente irônica (como falta o sentido de riso nos – maus – leitores de Platão! Os comentadores são demasiadamente sérios, adiposos, enquanto Platão sabia a leveza do rir como poucos, possuía a arte e a sutileza do riso, ausentes naqueles que, ainda hoje, o criticam a partir de estereótipos tolos). Resumindo, o que quero dizer é que os ESCRITOS só mencionam as diferenças para não tornar as indiferenças exclusivistas. As indiferenças são acolhedoras das diferenças, precisam delas como precisamos dos mapas para desguarnecer as fronteiras, como precisamos do sujeito e do objeto para poder superar a relação entre sujeito e objeto. E por aí em diante.

A outra parte da questão diz respeito aos encontros entre poesia e filosofia como formadores de corpos múltiplos. Não gosto de pensar poesia e filosofia como disciplinas estanques, matérias apreensíveis, pais de filhos únicos, mas como forças que deslizam simultaneamente em várias direções, criando inúmeros planos, gerando encruzilhadas intensivas imprevisíveis. Os encontros entre elas se desdobram em efeitos inclassificáveis, indetermináveis. Longe de mim querer estabelecer um novo gênero poético-filosófico a partir destes esbarros, que são, antes, justamente, a impossibilidade de determinação de um gênero. Não quero determinar esse indeterminável, classificar esses inclassificáveis, estancar esse movimento prolífero. Esses esbarros assinalam a impossibilidade de fixidez, a possibilidade de um contínuo desdobramento inapreensível.


NG: Essa expulsão dos poetas da República platônica gera querelas infindas. Você faz disso uma leitura irônica, atentando para os “maus” “leitores de Platão” e seus “estereótipos tolos”. Quais são eles?


AP: Realmente, parece-me, alguns estereótipos se cristalizaram em relação à leitura que se faz de Platão. O primeiro, e mais evidente, é a tentativa de transformar seus diálogos em um sistema, ao invés de pensá-los como um teatro do pensamento no qual questões que estimularam e calcaram (continuam calcando e estimulando) o percurso ocidental vão surgindo segundo uma eficácia provi-sória inerente ao jogo ficcional da filosofia. A filosofia tem seu jogo ficcional, e Platão é o grande mestre nisso. Outro lugar-comum que estanca nossa compreensão dos diálogos é a confusão feita entre Platão e Sócrates, como se este representasse nos diálogos as idéias daquele, como se fosse seu porta-voz. De alguma maneira, Sócrates é um personagem de grande importância, mas, de maneira alguma, Platão, que é a construção das redes de múltiplas e móveis conexões e disjunções que alimentam constantemente o pensamento, aniquila a pluralidade de vozes que se entrechocam; esbarros, estes sim, que são a assinatura de uma tal polifonia – os arranjos platônicos do pensamento, nos quais a hierarquia das vozes não é estanque nem unívoca. Platão é tão difícil porque não pensa por nós, mas, pensando, nos dá o que pensar. O erro é acreditar que ele pensa por nós.

Outro estereótipo é o de Platão contra os poetas. Ora, Platão cria um amálgama, uma fusão dos vários tipos de discursos (poéticos, teatrais, religiosos, políticos, retóricos, eróticos, matemáticos...) que circulavam na Grécia, inventando, assim, um novo tipo de escrita: os diálogos filosóficos. Os antigos jamais opunham poesia e filosofia em Platão. Muito pelo contrário. Diôgenes de Laêrtios nos deixa uma observação importante: “Aristóteles diz que a forma de seus [de Platão] escritos ficava entre a poesia e a prosa”. E Nietzsche, que foi quem, paradoxalmente, melhor entendeu Platão, afirmou: “Nos diálogos de Platão, aquilo que possui um destacado sentido artístico é, na maior parte das vezes, o resultado de uma rivalidade com a arte dos oradores, dos sofistas, dos dramaturgos de seu tempo, descoberta para que ele pudesse dizer por fim: ‘Vejam, também posso fazer o que os meus maiores adversários podem; sim, posso fazê-lo melhor do que eles. Nenhum Protágoras criou mitos tão belos quanto os meus, nenhum dramaturgo, um todo tão rico e cativante quanto o Banquete, nenhum orador compôs discursos como aqueles que eu apresento no Górgias – e agora rejeito tudo isso junto, e condeno toda a arte imitativa! Apenas a disputa fez de mim um poeta, um sofista, um orador!’ Que problema se abre para nós, quando perguntamos pela relação da disputa na concepção da obra de arte!”


NG: Uma nítida inscrição do esquecimento perpassa seus atuais ESCRITOS... (p. 24 e 46, p. ex..). Além dessa categoria nietzschiana, o que mais o aproxima do autor de ‘A Origem da Tragédia’?


AP: Realmente, Nonato, suas perguntas vão sempre em pontos importantes. O esquecimento é de grande relevância nos ESCRITOS, como na poesia que venho escrevendo. Nietzsche é um grande pensador do esquecimento. Borges, no magnífico ‘Funes, O Memorioso’, sobre o personagem que sofre um acidente e perde a possibilidade de esquecer, lembrando-se de absolutamente tudo, escreve alguma coisa como: Desconfio que Funes já não pensa. Há uma necessidade do esquecimento para o pensamento. A epígrafe de NA CIDADE ABERTA, meu primeiro livro, é uma frase, de fundamental importância para mim, que escutei no meio da rua:
Assim, na bucha, eu não falo não, mas deixa eu me esquecer que, de repente, eu falo. Impressionante, esta frase. Fiquei comovido quando a escutei, vinda de um homem qualquer, simples, humilde, no meio da rua. Pessoalmente, sou um grande esquecido, portanto, como se não bastasse sua necessidade para a arte, o esquecimento, ainda por cima, cotidianamente, me atravessa. Nunca padecerei da perda da memória, pois esta, a memória, nunca a tive.
Agora, o que mais me aproxima de Nietzsche? Puxa vida! Foi Nietzsche quem me levou para a filosofia. A leitura de ‘Assim Falou Zaratustra’, em um grupo de estudos que fiz casualmente com Rosângela Ainbinder, que permitia e insuflava maravilhosamente a intensidade do livro a cada encontro, mudou radicalmente minha vida. A conseqüência do grupo foi um namoro dolorosamente terminado, uma faculdade abandonada, muitos amigos deixados, um estágio com ótimo emprego garantido largado, enfim, uma revolução pessoal. Nietzsche me ensinou que, para suportar o tranco do filosófico e do literário, nos perdemos, nos desligamos de algumas relações de camaradagem, nos tornamos incompatíveis com certos amores de ontem, abandonamos inúmeros hábitos, não reconhecemos prazeres que antes sentíamos... A literatura e a filosofia, entretanto, nada têm a ver com tristezas, falta de amizades, carência de amores, ausência de todos e quaisquer hábitos, privilégio de desgostos – claro que não, a literatura e a filosofia jogam um outro jogo. Tudo isso pode ser preciso para que nós sejamos surpreendidos por novos encontros, novas relações, novos amores, novas disposições, novas possibilidades de vida ainda mais festivas, ainda mais audazes. A literatura e a filosofia jogam um jogo de alegrias. Nós não medimos a literatura nem a filosofia, não possuímos uma fita métrica que comporte seus tamanhos, vislumbramos apenas muito pouco de suas envergaduras. Ao contrário, elas é que nos medem, exigindo de nós, a cada momento, uma dedicação, um preparo, um exercício. A literatura e a filosofia se confrontam com nossa individualidade, enfrentam-na, atacam-na. Por isso, ainda que em nome de vida, ou melhor, sobretudo por estar em nome de vida, investindo-nos, elas são tão temerosas. Elas nos ameaçam com seu excesso de vida, e, da ameaça, o perigo: nos perdermos na encruzilhada, na indiscernibilidade, na imediaticidade, em vida.

NG: Há nos Escritos da Indiscernibilidade uma forte presença da reflexão, do pensamento. Gostaria que você falasse acerca do imaginário na sua criação.

AP: Tenho um forte desejo, Nonato, que, um dia, espero cumprir. Para mim, em minha vida, poesia e filosofia foram fundamentais e indiscerníveis. Muitas vezes, confesso que quase sempre, lia livros de filosofia como se fossem de poesia, e livros de poesia como se fossem de filosofia. Deve ser alguma disfunção da sensibilidade, alguma deformação cerebral. Mas sempre considerei que, se a filosofia era necessária como ingestão, ao nível do resultado da digestão, quem queria sair era mesmo uma escrita poética. Apesar disso, eu espero cumprir um certo arco, conseguir realizar aquilo que meu trabalho e minha vida vêm me requisitando, que é a tentativa de ir de um lado a outro do arco: poemas, escritos da miscigenação e ensaios. Não para ativar uma completude de gêneros, para mim, intimamente, desvalorizada, mas apenas para aprender que estamos pensando o tempo todo de dentro de um deslizamento que apaga os gêneros, para aprender que há uma fluidez constante inerente ao pensamento, para aprender, talvez, que o processo do ensaio, dos poemas e das miscigenações faz parte da mesma aprendizagem, da aprendizagem da escrita, do pensamento, da vida, para aprender que temos de estar abertos àsforças que nos guiam e às requisições do momento, para aprender, enfim, que não há arco nenhum, mas apenas a espiral intensiva da criação.


NG: Ao escrever sobre a poesia de Manoel de Barros, você toma como ponto de partida “o escuro como inerente à poesia, como origem que cada poema resguarda”. Isso vale também para uma poética urbana como a sua?


AP: O escuro, em Manoel de Barros, faz parte de um conjunto de conceitos poéticos inter-relacionados, tais como: escuro, origem, poesia, mistério, terra, ser, inominado, pré-, silêncio e, sobretudo, natureza. Ele mesmo distingue, entretanto, natureza de “natural”, como se o “natural” fosse o já explicitado do mundo, o superficial fotográfico, enquanto que natureza, acatando o natural, é o movimento imanente de geração contínua do natural, que acolhe, com isso, no superficial, a profundidade obscura. Em geral, quando se aproximam de Manoel de Barros, as pessoas o lêem freqüentemente pelo natural, pelo exótico, pelo pantaneiro – no sentido regionalista da palavra: é um grande engano. Há que se ler o poeta por aquilo que ele entende por natureza. Nesse sentido, ele é um pré-socrático, um Heráclito contemporâneo. Como os pré-socráticos, Manoel de Barros escreveu seu peri physeos, “acerca da natureza”. Pouco importa que os elementos utilizados, que as imagens explicitadas, sejam naturais. Por muito tempo quis escrever o meu peri polis, “acerca da cidade”, pensar a cidade pela dinâmica de pensamento oriunda dos pré-socráticos. Por isso, pouco me importa se Manoel de Barros usa em seus poemas sapos, lesmas, rãs, tuiuiús etc. O que me importa é a nova-arcaica maneira de pensar que ele conseguiu instaurar, sua nova-arcaica imagem do pensamento. E isso independe dos elementos naturais. Natureza, como Manoel de Barros a entende, e cidade, tal qual a entendo, não são dissociadas. Elas se presenciam através do mesmo movimento. Eu poderia dizer que sou um poeta da natureza, no sentido dele, no sentido grego, ainda que pouquíssimas palavras do natural perpassem meus escritos, ainda que meus escritos privilegiem as palavras, acontecimentos e sintaxes urbanos. E poderia dizer que Manoel de Barros é um poeta urbano, no meu sentido. Mal comparando, e, obviamente, sem a menor pretensão, como Guimarães Rosa disse que Dostoievski é sertanejo. Agora, para mim mesmo, os arranjos escapam um pouco a essa dinâmica. Eles acatam um certo jogo da superfície. Por isso, para mim, eles foram diferentes, surpreendentes, levando-me a tentar pensá-los em “Escritos da sintaxe do trânsito”.


NG: Próximo ao Maracanã, no Rio de Janeiro, existe um outdoor cujo texto chama atenção do leitor: “O mundo não é, ele está sendo”. Como poeta urbano, como você lê essa assertiva inusitada do discurso midiático?


AP: Como poeta urbano, leio esse outdoor do ônibus, do carro, da bicicleta, do trem, do metrô, do táxi, a pé, leio-o de óculos, de lente, de binóculo, leio-o por entre máquinas, celulares, jornais, buzinas, aviões, camelôs, edifícios, fumaças, assaltos, leio-o conforme eu “estiver sendo”. Mas como, às vezes, não sou poeta urbano, nem sempre o leio como poeta urbano. Pode até ser que, em alguns momentos, eu nem o leia. Ou até que o eu tenha se esquecido de si com o grito de gol
no Maracanã.


domingo, 9 de agosto de 2009

Pedra com limo





Uma versão deste texto foi publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 12/01/1999


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Para Regina, Lenita e Rute Pinheiro


Uma educação pela pedra, por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
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João Cabral de Melo Neto, "A Educação da Pedra"
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Com Itacirica, a pedra que pensava (INL/Abril Cultural/MEC, SP), o professor e escritor Waldson Pinheiro ganhou o Prêmio Mobral de Literatura/73. No prefácio do livro, o poeta Mauro Mota diz que o texto de Waldson ensina as coisas e ensina o melhor jeito de ensinar as coisas. Crendo no valor didático e comunicativo da narrativa, Mauro conclui: "Provocada por um romancista, a pedra abre-se e comunica-se fora da solidão e dos silêncios de pedra".

Lidando com o inusitado de criar uma personagem-pedra, Waldson parodia a (im)possibilidade da fala dos que não têm fala. Dá voz a um ser da natureza, num procedimento semelhante aos dos autores românticos que se utilizavam dos nossos cenários e simetrias tropicais para criar poemas, ensaios, narrativas... Na trilha aberta pelo Romantismo - que inscrevia um projeto identitário para o país e estetizava o indígena na categoria de herói -, Waldson leciona nossa história de costumes herdados dos indígenas (como as queimadas dos roçados) e nosso ritmo provido dos homens da cor da noite. O autor ressalta ainda a porção ecológica do indígena, nossa herança antropofágica, os costumes portugueses e africanos. Para o autor, "a raça daqui vai se misturando cada vez mais. Antes era só sangue de branco com sangue de índio. Agora acrescentou sangue de preto. E se dessa misturada sair uma raça amiga da boa paz, pra que coisa melhor? É levar a receita para outros cantos" (p. 90).

Escrito numa linguagem clara e direta, Itacirica... exibe - em seus 10 capítulos - lendas, relatos históricos, questionamentos existenciais e uma profissão de fé para o bicho homem. Otimista, Waldson outorga memória e discurso para sua personagem. O fato da pedra narradora possuir um memorial e deter o poder da linguagem transforma-se em signo de possibilidades para esse bicho que, às vezes, mais parece ordinário do que extraordinário em virtude das adversidades sociais e culturais que o cercam.

No espaço narrativo, o autor opera com o extraordinário, o maravilhoso. Num procedimento poético, a pedra nomeia as coisas humanas e, utilizando-se da linguagem coloquial, de provérbios e ditos populares, recicla-os, apostando numa didática incomum. Ouçamos a pedra que pensava lá com seus torrões: "...o mesmo dia foi da caça e do pescador." (p.47) Ou: "...e, um belo dia, bumba! meu boi, ela despenca do poleiro e lá vem rolando, que é mesmo arreda, senão eu passo por cima" (p. 28) E através da ação da linguagem a pedra inscreve-se, como demonstra essa recriação de ditos populares: "Vento frouxo em pedra fixe/ Não se arreda até que lixe" (p. 16).

Como o poeta mineiro de Itabira que tinha uma pedra no meio do caminho, Waldson também inscreveu a pedra do seu roteiro. Ela, como a pedra do itabirano, fala. Diz na sua mudez de signo que aponta, rola, refaz. Cria limo. Pedra que move. Vira fragmento de outra pedra que pensa, de forma concreta, homem que fala. Basta ouvir Gregório Pinheiro - neto de Waldson que, aos 6 anos, conhecia 4 idiomas: falava português e espanhol; estudava inglês e catalão. Basta antentar para as antenas e raízes de Larissa Spinelli, atualmente cursando mestrado na UFRJ. Waldson Pinheiro viveu cercado de livros, letras e páginas. Falava e lia vários idiomas. Como o olhar pessoano do autor, verão seus netos a língua como pátria?

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A nação literária de Ana Santana



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Com o texto De Anjo gauche a anjo na contramão: por uma poética do falanjo, a professora e ensaísta Ana Santana defendeu, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a sua dissertação de mestrado, em 1998, tendo a poética de Adélia Prado como objeto de leitura crítica.

Pofessora adjunta da Universidade Potiguar e professora formadora do Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy, Ana acaba de lançar o ensaio A Nação Guesa de Sousândrade. O texto é resultado da sua tese de doutorado, defendida na UFRN com orientação de Ilza Matias de Sousa, professora que a orientou também durante o mestrado.
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Com experiência nas áreas de Educação e Literatura, a professora Ana Santana desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, tematizando principalmente o lugar da literatura latino-americana, a performance literária e o letramento literário. A seguir, ela fala sobre a sua trajetória crítica e acadêmica, ressaltando a importância de Sousândrade como um autor cuja obra constroi-se a partir de múltiplas linguagens, "reunindo contribuições de diferentes culturas e tradições".
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De natureza errante ou a transgressão dos gêneros e territórios

NG: Por que você escolheu escrever A Nação Guesa de Sousândrade?

AS:
No mestrado (UFRN), numa disciplina de Wander Melo Miranda (UFMG), eu li um texto de Homi Bhabha que me provocou muito. Fiquei entusiasmada com o conceito de DissemiNação. Naquele momento, eu pesquisava a poesia de Adélia Prado, mas seguia outros caminhos. Depois de concluído o mestrado, passei a ler O Local da Cultura, de Bhabha. Lembro que, enquanto lia, ia fazendo a relação com autores brasileiros e percebendo como aquela leitura teórica convocava Oswald de Andrade. Por causa dele, lembrei de O Guesa, que conhecia de uma leitura superficial da ReVisão de Sousândrade, de Haroldo de Campos. Foi o suficiente para perceber naquela narrativa sousandradina muitas questões que estão na pauta das universidades hoje. A obra é mestiça, híbrida, elaborada por uma performance de serpente emplumada. Por isso é instigante, atual, visionária. Eu não tive como escapar, embora muitas vezes tenha tentado, amedrontada pelo assombro que é o poema épico de Sousândrade. Escrever sobre O Guesa só foi possível graças ao apoio da minha orientadora Ilza Matias de Souza e do acadêmico maranhense Jomar Moraes, responsável pela reedição da obra do poeta.

NG: No Canto X do Guesa, um personagem pergunta: "De qual natureza/ É o Guesa?" Qual resposta você daria para o seu leitor?

AS: O Guesa, como o próprio nome significa, é de natureza errante. O autor tem a marca da orfandade, do estranho, do híbrido, do mestiço que só se desenha pela errância. Sousândrade escreve uma narrativa em viagem que transita entre biografia e ficção, realidade e sonho. Escrita de sua própria invenção das culturas, O Guesa pode ser assim recuperado em sua dimensão de transgênero performático - uma transescritura que convoca diferentes linguagens, reunindo contribuições de diferentes culturas e tradições.

NG: Com este ensaio, você entra para um seleto grupo de autores que estudam Sousândrade – um dos escritores menos lidos e ainda meio à margem do nosso cânone literário. Dentre as leituras críticas que serviram de base para a sua pesquisa, qual você destacaria e por quê?

AS: O meu entusiasmo por O Local da cultura, de Homi Bhabha, deve-se às leituras anteriores que eu tinha de Silviano Santiago. Ainda no mestrado, por influência de Eneida Maria de Sousa (UFMG), interessei-me pelo conceito do entre-lugar. A ele, juntaram-se, ainda, hibridação (Canclini), mestiçagem (Gruzinski), estrangeiro (Kristeva), heterogeneidade (Polar), entre outros. Costurei-os com o conceito de performance, tomado por Graciela Ravetti (UFMG) como uma chave de interpretação da história da América Latina, revelando novos espaços de conhecimento cultural e literário. Evidentemente, segui as pegadas dos críticos da obra Sousandradina como Haroldo de Campos, Costa Lima, Frederick Willians, Sebastião Duarte, Luiza Lobo, Cuccagna, etc. Essas leituras me permitiram perceber que o nômade Sousândrade, se lido em seu tempo com mais interesse, teria antecipado as teorias sobre nação que somente tomaram corpo no século XX. O poeta maranhense, através da errância do Guesa, transgride as fronteiras tanto dos territórios político-culturais, quanto dos gêneros literários, concebendo língua e Nação como entidades plurais, configuradas entre apropriações e perdas. Se o grupo de leitores de O Guesa deixar de ser seleto, muito se há ainda que revelar dessa obra.
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O Guesa / "Canto Terceiro"
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As balseiras na luz resplandeciam
—oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, — na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
"Acordem, olhos meus, dizia, acordem!
"E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia p'ra as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no sol, que já s'inclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
— Está ele assombrado?... Porém, certo
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto,
Sobre as lagoas ao clarão da lua.
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sábado, 1 de agosto de 2009

A Letra Segundo C.L.



















Ressonâncias da Literatura Romanesca no livro A Mulher que Matou os Peixes



Texto apresentado no 5 Encontro de Literatura Infantil e Juvenil, Rio de Janeiro, UFRJ, 2008, e publicado no cd 5 Encontro de Literatura Infantil e Juvenil, 2008. v.1.


Eu gosto tanto de crianças,
eu gostaria tanto de publicar um filho chamado João
!

(Clarice Lispector, Um Sopro de Vida, 1978)


Escrita do perdão e do desejo

Este estudo tem como objetivo acionar uma leitura do texto A Mulher que Matou os Peixes, de Clarice Lispector, publicado em 1968, com capa e ilustrações de Carlos Scliar. Essa leitura é realizada através de um procedimento intertextual que leva em conta esse livro destinado ao público infanto-juvenil, mais dois outros cultuados volumes da autora: o romance A Paixão Segundo GH (1964), primeiro romance de Clarice na primeira pessoa, e a novela A Hora da Estrela (1977), o último livro publicado pela autora.

Essa novela ostenta, nas suas primeiras frases, uma tonalidade clara e afirmativa, lembrando a forma e a sintaxe de muitas histórias infantis. Após uma Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector) e dos 13 títulos que encabeçam a história de Macabéa, o narrador afirma: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”. Assim começa esse último texto da autora, no qual a morte é “personagem”, e que foi publicado no mesmo ano em que ela morre no Rio de Janeiro.

Tema recorrente na obra de Clarice, a morte é uma “personagem” de destaque nestas três narrativas. No livro destinado aos leitores infanto-juvenis, a morte vem impressa na afirmação do próprio título: A Mulher que Matou os Peixes. No romance A Paixão Segundo GH, a personagem G.H. – uma escultora de “classe alta” que vive numa cobertura do Leme no Rio de Janeiro – esmaga uma barata na porta de um guarda-roupa; vive uma via crucis da paixão onde o “crime” contra a “vida pessoal” é cometido em prol da própria vida. E na novela A Hora da Estrela, Rodrigo S. M. narra no final:

Então – ali deitada – teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. A morte que é nesta história o meu personagem predileto. (Lispector: 1977, p. 103)

Mas não será apenas a morte o personagem desta leitura. Para ouvirmos o que ressoa da literatura romanesca de Clarice Lispector, no seu livro A Mulher que Matou os Peixes, elegemos alguns dentre os múltiplos núcleos temáticos que engendram suas narrativas, como: a escrita do desejo e do perdão; o apreço pelo outro, o leitor, e sua configuração subjetiva; a sincronia que a autora cria entre os animais, os vegetais, os objetos cotidianos e sua escrita. Além desses núcleos temáticos, atentaremos para os intertextos criados por Clarice a partir dos seus próprios textos, e que também estruturam esta leitura.

Nas crônicas antes publicadas em jornal que compõem o livro A Descoberta do mundo, encontramos trechos de contos, embriões romanescos, textos que serão depois retomados por Clarice. Exemplar desse procedimento textual é o que acontece com o conto “Macacos”, do livro A Legião Estrangeira. Esse texto narra a história de Lisette, uma macaquinha que “tinha saia, brincos, colar e pulseiras de baianas. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra”. Muito bem acolhida e amada pela narradora, esta mesma Lisete (agora sem um t), reaparece em A Mulher que Matou os Peixes, ganhando a mesma descrição e a mesma pergunta feita pelo filho no conto de A Legião Estrangeira: “Você acha que ela morreu de brincos e colar?”

Clarice dizia haver três coisas para as quais ela nasceu e pelas quais ela “daria a vida”: amar os outros, escrever e criar filhos. Dizia também que esta ação de amar os outros é tão vasta que inclui perdão até para si. Sua literatura é permeada por essa escrita do perdão, onde o desejo é combustível para a ação narrativa. Nessa escrita, inusitadas conexões são criadas entre Deus e as baratas, os milagres e os crimes, a fome e a mesa “para homens de boa vontade”, a condição dos santos, dos criminosos e as epifanias.

As epifanias surgem em meio a um cotidiano áspero, repetitivo, e remetem à idéia de iluminação oriunda do universo religioso. Ostentando um tom que oscila entre o confessional que deseja a coisa dita e o religioso que contém a coisa (mesmo que essa coisa seja uma barata ou um rato), essa escrita do perdão é audível nos gêneros pelos quais Clarice transitou e no grande arquivo de formas que ela construiu: romances, contos, novelas, crônicas, cartas e textos da Literatura infanto-juvenil.

Essa escrita do perdão pode ser mensurada na recorrência a títulos e frases que remetem ao substantivo perdão e ao verbo perdoar. Além disso, essa escrita apresenta um recorte vocabular que remete ao universo religioso, e que inclui palavras como milagre, culpa, medo e salvação. Nem a própria Bíblia fica de fora. No seu “processo de reconquista do humano através do inumano” (Nunes: 1976), a narradora G.H. cita a Bíblia, e indaga por que este livro se preocupou tanto com os imundos:
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...Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos?...o imundo é a raiz... (Lispector: 1977).

O recorte vocabular que remete ao universo religioso e à porção romântica de Clarice Lispector, em plena modernidade, é também audível em crônicas densas como “Perdoando deus” ou “Cem anos de perdão”, do livro póstumo A Descoberta do Mundo. Esse mesmo recorte ressurge num tom mais leve, de timbres bíblicos, no conto “A repartição dos pães”. Neste conto do livro A Legião Estrangeira, ouvimos:

Lá fora Deus nas acácias. ...Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte...Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos. (Lispector: 1977, p. 29)

O recorte vocabular dessa escrita do perdão invade o espaço romanesco da autora. “Perdão é um atributo da matéria viva” – essa é uma assertiva da narradora de A Paixão Segundo G.H. Ao invés de matar os peixes, ela esmaga uma barata que leciona fecundação e nojo. Mas não é apenas na literatura romanesca da autora que o perdão vira “personagem”. Concluída a leitura de A Mulher que Matou os Peixes, o leitor descobre que a narradora precisa do perdão de quem ouve ou lê. No fragmento 146, ela dissera: “Então me dêem perdão”. E o último fragmento – 148 – é composto de uma única pergunta que ratifica essa necessidade de perdão da parte de quem narra: “Vocês me perdoam”?

Com essa pergunta a autora encerra sua narrativa de poucos fatos e repleta das muitas repercussões desses fatos na vida de quem narra e de quem lê. O texto de Clarice traduz um forte apreço pelo outro, pelo ritmo alheio, pelo leitor e sua respiração. Ela sabe do poder de, ao escrever, interferir nessa respiração, com um simples modo de pontuar, como diz o narrador de A Hora da Estrela. As vozes que narram nesses textos atestam o desejo de amar o outro, de compreender a diferença que marca a subjetividade alheia, despertando na autora a necessidade de uma certa “compreensão sagrada” (Caio F.) – e ás vezes sangrada - das pessoas, dos bichos e das coisas ao seu redor.

Nesta literatura é audível um incessante diálogo da autora com os animais, com os objetos e as máquinas cotidianos. Nesse sentido sua arte dialoga com as produções contemporâneas que se interessam mais pelo que está em volta, no entorno; e não por verdades abissais, distantes do cotidiano; embora as reflexões possibilitadas pelos textos de Clarice estejam longe de se restringirem ao registro ou a documentação desse cotidiano.

Esse diálogo com o entorno não exclui as estações que passam e alteram as formas de sentir, nem a cidade onde o corpo transita lendo, cheio de fé, a paisagem que diz, promete, muda. A natureza, as plantas, os vegetais são um capítulo à parte no universo clariceano. No conto “A repartição dos pães”, as frutas e os vegetais apresentam humores e ciclos, e como os humanos também se protegem na sua subjetividade úmida, inexplicável, como faz os pepinos: “pepinos se fechavam duros sobre a própria carne aquosa”. Ouçamos, do livro A Mulher que Matou os Peixes, o discurso que elege o universo vegetal como tema e parceria dessa narrativa:

Planta, se a gente pegar com jeito, as folhas delas parecem cantar. E falam com a gente. O quê? Depende de a gente estar triste ou alegre, com fome de beleza e de conversa. (Lispector: 1974, p. 51/52)

Deve ter sido por motivo dessa “fome de beleza e de conversa” que o filho Paulo perguntou, quando Clarice morava em Washington, por que ela não escrevia um livro para crianças. A autora ficou emocionada, lembrou dos coelhos de sua infância e publicou, em 1967, O Mistério do Coelhinho Pensante. Depois, vieram os textos A Mulher que Matou os Peixes (1968) e A Vida Íntima de Laura (1974), formando a trilogia de textos publicados em vida para o público infantil e juvenil.

Essa trilogia de textos produz um inusitado intertexto. Habituada a expor a sua porção metalingüística nos textos romanescos (principalmente em seus dois últimos textos de ficção, A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida), Clarice constrói em A mulher que matou os peixes dois fragmentos – 33 e 34 – a fim de exercitar uma espécie de metalinguagem para leitores mais jovens. Referindo-se ao coelho e ao livro que o elege como personagem, ela diz:

Coelho tem uma história muito secreta, quer dizer, com muitos segredos. Eu até já contei a história de um coelho num livro para gente pequena e para gente grande. Meu livro sobre coelhos se chama assim: “O mistério do coelho pensante. (Lispector, 1974, 19)

Seriam a porção materna e a sintonia com os animais responsáveis pela geração desses tons reflexivos e repletos de afetos pelo humano? Coelho que pensa, peixe que morre sem voz, galinha que possui vida íntima... A literatura de Clarice é assim: seja no texto romanesco, seja na literatura infantil e juvenil, existe uma esfera do inumano que é toda permeada de bichos, estrelas, vegetais, objetos, máquinas (máquina de escrever, guindaste) e coisas. “Eu juro que a coisa tem aura”, diz Ângela em Um Sopro de Vida (Lispector, 1999, p. 103). “Ela humaniza as coisas”, diz o autor acerca de Ângela que deseja escrever um “romance das coisas”.

Haja bichos! A Mulher que Matou os Peixes serve de pré-texto para Clarice falar de barata logo no primeiro fragmento: “Até deixo de matar uma barata ou outra”. Mas não pára por aí: no fragmento 23, elas estão de volta, as baratas, quando a narradora diz haver pago a um homem para “matar baratas”. Impossível não lembrar da famosa barata com quem G.H. interage, enxergando o vazio interior e o deserto no qual transita ao olhar o animal, aprendendo a “amar mais o ritual de vida que a si próprio”.

Mas nem só de peixe e barata faz-se a narrativa de A Mulher que Matou os Peixes. Este livro serve de pré-texto para Clarice falar também de ratos e lagartixas e coelhos e patos e cachorros e macacos... É vasta a fauna criada pela autora neste texto onde quem narra assume seu crime na primeira linha do primeiro fragmento: “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”.

No estudo que empreende em torno do universo imaginário de Clarice Lispector, Benedito Nunes diz que “os bichos constituem”, na obra da autora, “uma simbologia do ser“ (Nunes: 1976, p. 125). Essa constituição simbólica nos remete ao conto “Uma história de tanto amor”, onde a narradora disserta acerca do destino da galinha. Narrando que ser comida é o destino de quem nasce galinha, ela atenta para o poder do olfato e lembra que ninguém brinca com o cheiro de uma galinha viva, abaixo das asas...

Para a narradora, os homens e as galinhas não podem ser curados de serem homens e galinhas. Sua lição nos ensina que quando a gente come bichos, fica parecido com eles – os bichos comidos. Mas o apogeu da voz que narra acontece quando ela ressalta o prazer de ter uma galinha muito querida incorporada em si. “Só continuavam a viver os pintos que tinham alma mais forte”, leciona a mulher que matou os peixes, depois de assumir que já comprara “muitos pintos e a maioria morreu”.


A leitura que retira do universo interior


Segundo Walter Benjamin, a história do livro infantil demonstra, desde os seus primórdios, a predominância e a importância das cores no universo dessa literatura. No entanto, na reflexão que empreende entre as imagens coloridas e as xilogravuras em preto e branco de vários autores europeus, o pensador alemão assim escreve, levando em conta a percepção infantil:

A imagem colorida faz com que a fantasia infantil mergulhe sonhando em si mesma. A xilogravura em branco e preto, reprodução sóbria e prosaica, tira a criança de seu próprio interior. (Benjamin: 2002, 64/65).

Para Benjamin, o valor original da xilogravura em branco e preto é “equivalente ao das gravuras coloridas e desempenha função complementar”. Com base nesta leitura, nos aproximamos dos desenhos de Carlos Scliar que ilustram o livro de Clarice para leitores infantis e juvenis, já que o livro não contém nenhuma imagem colorida.

Composto de 148 fragmentos irregulares, que tanto podem ter uma como 17 linhas (como atesta o fragmento 110), A Mulher que Matou os Peixes é um livro que propõe, em certos aspectos, uma leitura semiótica; isso, se pensarmos nessa ciência dos signos como aquela que investiga todas as linguagens possíveis, e não apenas a linguagem verbal, o objeto de análise da lingüística.

Essa proposição semiótica é ratificada pela supremacia imagética dos desenhos de Carlos Scliar que dialogam, durante toda a narrativa, com a escrita da autora. Esse diálogo é produtivo e acompanha as sugestões da escrita verbal, a ponto de algumas páginas serem tomadas apenas por imagens, e não haver nelas nenhuma palavra. Isso acontece, por exemplo, nas páginas 12, 15, 26, 54, 56 e 57, dentre outras.

No livro A Mulher que Matou os Peixes, todos os animais são desenhados com a mesma cor preta, num tom levemente acinzentado. Em sintonia com a leitura perceptiva e pedagógica, proposta por Benjamin, através das cores preto e branco da xilogravura de diferentes séculos, podemos inferir que a escrita produzida por Clarice, juntamente com as imagens sombrias de Scliar, no branco da página, possibilitam ao leitor uma retirada do seu universo interior.

Ao ser retirado desse universo interior, o leitor desperta e retorna para o mundo que o cerca na sua materialidade colorida e concreta. Esse retorno possibilita a experiência de outras formas, a audição de novos ritmos, a percepção de outros sons. Para o registro dessa experiência, Clarice cria uma ilha como signo no final da sua narrativa. A forma da ilha remete geralmente ao espaço da utopia, ao universo rico de possibilidades narrativas e existenciais. “Essa ilha é um pouco encantada”, diz a narradora. Ela sabe do potencial sensorial e afetivo que esse encantamento aciona no imaginário do leitor.

Na materialidade do texto, esse leitor depara, além da ilha, com as imagens da fauna da qual Clarice lança mão para a sua escritura, como vimos na parte I deste estudo. Sabemos da predileção da autora por ratos, baratas e peixes. Mas existem muitos outros animais que ela transforma em personagens do livro A Mulher que Matou os Peixes. Dentre as imagens dessa fauna, destacamos, nas páginas 50 e 51, os peixes habitantes da ilha, cujo silêncio “é atravessado pelos sons característicos dos habitantes animais e vegetais” (Lispector: 1974).

Nas páginas 54 e 55 os desenhos de Scliar dialogam com os “cardumes de peixes pequenos e grandes”. E as imagens que “inundam” as duas páginas seguintes, são sugeridas pelo texto da autora que assim narra: “no mar da ilha também tem cardumes de botos ou delfins: parecem com uma baleia pequena”. Por que será que um livro que fala de peixes no seu título dedica tantos páginas para outros animais, e como é que botos ou delfim remetem à baleia?

São muitas as perguntas sugeridas pelo texto de Clarice e múltiplas as possibilidades de respostas. A leitura das imagens de Scliar auxilia nas perguntas de quem lê, ao vermos em meio aos peixes, traços que dão idéia de movimento, imagens de tonalidades díspares, desenhos irregulares e que sugerem as formas distorcidas da “baleia pequena” em seu movimento. Ou seja: as imagens do desenhista ampliam as possibilidades de experiências vivificadas pelo leitor, auxiliando com mais vigor na construção das formas do seu imaginário.

Os últimos desenhos de Scliar possuem como tema este universo de peixes e águas em movimento. É dele, após o pedido de perdão da narradora, a bela imagem final do casal de peixes que se movimenta na mesma direção. As formas se arredondam, na página 59, e a autora continua explorando a ilha, embora prometa voltar para os bichos. E aí surge um dos temas mais caros na escrita de Clarice, seja no seu texto romanesco ou neste livro destinado aos leitores infantil e juvenis: o medo. Parra registrar essa relação entre bichos e medo, ouçamos o que diz a narradora:

Eu fico muito ofendida quando um bicho tem medo de mim, pois sou corajosa e protejo os animais. Quem de vocês tiver medo, eu cuido e consolo. Porque sei o que é o medo que as crianças têm porque já fui criança. Até hoje ainda tenho medo de certas coisas. (Lispector: 1974, p. 60)

Este medo parece estar relacionado com as experiências, às vezes radicais, vivificadas pelos personagens de Clarice; experiências essas que levam em conta os diálogos dos seus corpos com os espaços pelos quais transitam, como acontece com o espaço que tece e mata Macabéa nA Hora da Estrela. No trânsito por estas três narrativas, as experiências do medo e da morte na vida de quem narra se fez presente, possibilitando outras formas de relações entre corpos e espaços.

Nas conexões tecidas entre os três textos, atentamos para as variadas formas e os múltiplos tons construídos pela autora. De ouvido na tonalidade romanesca – que oscila entre o confessional e o desejante –, e atentos aos tons que a autora utiliza para pedir perdão em seu texto destinado ao público infantil e juvenil, percebemos como os tons da fala interferem no peso que é dado aos fatos. Com base nessa audição, sugerimos ser possível ao leitor ouvir ressonâncias dos aspectos textuais da romancista nos seus escritos de Literatura Infanto-Juvenil. Ou aquela imagem dos dois peixes no final, após o pedido de perdão, seria obra do acaso?


BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. “Livros infantis velhos e esquecidos” In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas cidades, 2002.

BIBLIOTECA Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil. V. 14. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 2006.

CAMPEDELLI, Samira Y. & ABDALA Jr., Benjamin. Clarice Lispector. São Paulo: Abril Educação, 1981. (Literatura Comparada).

GOTLIB, Nádia Battella. “No território da paixão: a vida em mim” In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo GH. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

LISPECTOR, Clarice. A Mulher que Matou os Peixes. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

______. A Paixão Segundo GH. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

______. A Hora da Estrela. 22. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

______. A repartição dos pães / Macacos. In: A Legião Estrangeira. São Paulo: Ática, 1977. (Nosso Tempo).

______. Um Sopro de Vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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______. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

NUNES, Benedito. “O mundo imaginário de Clarice Lispector” In: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 93. (Col. Debates 17)