segunda-feira, 18 de outubro de 2010

“As ruínas circulares” IV – o duplo


Assim como o sonho e o eterno retorno, o tema do duplo é também um dos procedimentos estéticos mais recorrentes nos enunciados fantásticos. Borges faz uso desse tema em toda a sua poética. Essa consciência do duplo faz-se presente no conto “As ruínas circulares”.

Neste conto do volume Ficções, o sonhador vê a cada sonho a construção do outro a que se propõe sonhar. Diz o narrador: “Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e ângulos”. Como sabemos, no final da narrativa o sonhador compreende “que ele também era uma aparência que outro o estava sonhando”. Era, portanto, o duplo de outro atemporal e anterior a ele.

Tamanha consciência do outro, possibilitou a Borges o exercício de vários textos relacionados à temática do duplo. Dentre essas narrativas destacam-se “Borges e eu”, “A Outra Morte” e “Sur” como textos que nos quais acontece essa representação do duplo. As semelhanças físicas, os processos telepáticos e a possibilidade de desdobramento do eu destacam-se como formas visíveis dessa representação.

Eu é um outro, diz a lição de Rimbaud। Essa possibilidade de um eu desdobrar-se em outro é a forma utilizada pelo autor de “As ruínas circulares”. Como vimos, o homem vindo do sul teria que sonhar um outro e “impô-lo à realidade”. Ele compartilha essa empresa com o Deus Fogo e sonha um homem “pensado entranha por entranha”.

domingo, 10 de outubro de 2010

"“As Ruínas Circulares” III – o sonho


“As Ruínas Circulares” é um conto do gênero fantástico, cuja narrativa é formatada em torno de três temas: o sonho, o duplo e o eterno retorno. Desses temas, o sonho é, sem dúvida, o mais freqüente neste conto que é uma usina onírica. Há nele ma profusão de sonhos caóticos, amorosos, premeditados... Um homem sonha outro homem: “Era um Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado.”

A temática do sonho perpassa toda a narrativa de Borges – um sonhador que dizia sonhar todas as noites. Ele assumia retirar dos sonhos alguns argumentos para os seus contos, e publicou em 1976 o Livro dos Sonhos. Os sonhos são textos atemporais lidos por Borges como um gênero antigo.

Segundo Freud, o sonho dá acesso ao inconsciente. A matéria prima de que se constroem os sonhos são os desejos inconscientes, embora os estímulos sensoriais também influam na tessitura dos sonhos. No conto, o homem sonhado desperta por fim: “Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.”

sábado, 9 de outubro de 2010

Sobre “As Ruínas Circulares” II


O círculo e o fogo. Prestem atenção neles dois. Na narrativa de “As Ruínas Circulares”, esses dois signos destacam-se como representativos do enunciado criado por Borges. O círculo e o fogo. Alusões a esses signos são freqüentes, como demonstra o recorte vocabular desse conto lido como texto representativo do gênero fantástico.

Em torno do círculo e sua forma, selecionamos o seguinte recorte: recinto circular, o sol, cântaro, anfiteatro circular, amoedar o vento, disco da lua... Já o signo “fogo” inscreve e acende, dentre outros, as expressões seguintes: cor do fogo, incêndios antigos, deuses incendiários, templo incendiado, o próprio fogo, culto do fogo...

Segundo o Dicionário de Símbolos, o círculo é o signo da Unidade de princípio, e também do céu. Remete, portanto, a coisas distantes. O círculo diz das abstrações e suas sangrias. Ratifica buscas infindas. Já o fogo, remete a libertação. Segundo o mesmo dicionário, algumas raças entram no fogo a fim de libertar-se do condicionamento humano. Com base nesta leitura, inferimos que o fogo pode queimar o clichê do corpo petrificado. Corpo de gesto rígido, autoritário. Engessado pelo capitalismo social que nos consome nas paradas do consumo e da repetição.

Este fogo libertador das ruínas está presente na poética do fogo de Bachelard: “antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem.” Este mesmo homem – mítico, sonhador, esanguentado – que no conto de Borges sonha e caminha “contra as línguas do fogo”.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sobre “As Ruínas Circulares” I



Alguém já disse que o escritor argentino Jorge Luís Borges teve em si próprio o seu grande personagem. Segundo o poeta Haroldo de Campos, Borges era uma metáfora da literatura; confundia-se c0m a própria obra. No dizer de vários críticos, o universo borgiano é concebido como um livro, uma biblioteca. A formatação desse universo leva em conta a estética do sonho e os meandros da imaginação, em sintonia com as estruturas do mito e a releitura da tradição.

Publicado em 1944 no volume Ficções, o conto “As Ruínas Circulares” possui elementos e procedimentos que o caracterizam como um texto fantástico. No prólogo do livro, o autor avisa: “Em As Ruínas Circulares tudo é irreal”.

Esse “irreal” é estetizado através de três temas: o sonho, o duplo e o eterno retorno. Os dois primeiros temas, além de concernentes à literatura de Borges, estão diretamente relacionados com o universo da literatura fantástica. Como acontece com o texto fantástico, a narrativa deste conto rompe com a ordem cotidiana, ao projetar o objetivo de sonhar um coração que se lê simulacro.

O objetivo de sonhar um homem

O homem taciturno e ensanguentado, vindo do sul, arrastou-se até ao recinto circular – um templo incendiado. Chegando ali sentiu que as feridas haviam cicatrizado e que a sua “imediata obrigação era o sonho.”As tarefas do seu corpo seriam dormir e sonhar. Seu objetivo: sonhar um homem e impô-lo à realidade. No começo, os sonhos eram caóticos; depois, de “natureza dialética”. Surgiram sonhos com alunos (fantasmas) que foram descartados por aceitar passivamente o que o homem doutrinava. O homem optou pelos que arriscam, apesar das contradições. Ele decide ficar com apenas um aluno “de feições afiladas, repetindo as do seu sonhador.”

O sonho com um coração e um deus múltiplo

Surge uma catástrofe: o homem deixa de sonhar. Sente a “intolerável lucidez da insônia.” Compreende ele ser árduo modelar a matéria de que se compõem os sonhos, e os abandona. Purifica-se nas águas do rio, adora deuses planetários. Pronuncia um nome poderoso e dorme. Ao dormir, sonha com um coração pulsando amorosamente durante 14 noites. Na 14ª noite ele roça o coração. Roça por dentro e por fora. O homem Foi sonhando paulatinamente até chegar ao esqueleto. Até chegar às pálpebras, ao homem inteiro adormecido – o Adão de sonho. Depois sonha com um deus múltiplo chamado Fogo e que havia sido cultuado no templo circular. Este deus agiria magicamente animando o fantasma sonhado pelo homem.

O homem vê em si e no filho a condição de simulacro

Só eles dois – o homem sonhador e o deus múltiplo – julgavam ser de carne e osso o fantasma sonhado. Depois de cultuar o fogo, refez o homem o seu lado direito e pensou no filho: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.” O homem atinge o seu propósito: consegue uma espécie de êxtase. Vê no filho a condição de simulacro, teme pelo futuro do mesmo.
O final anuncia a leitura de sinais: nuvens, céu rosa, fumaça e fuga das bestas. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas. Chegada da morte. Reza o final: “Com alivio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.