domingo, 26 de julho de 2009

“Eu, Getúlio”: fragmentos do modernismo republicano













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Uma primeira versão deste texto foi publicada nO Jornal de Hoje, em 1999, com o título "Natal no Museu da República". Esta forma final foi publicada na Revista Folhas de Relva, nº 4, Natal, 2002




Onde o Diabo joga damas com o destino, estás sempre aí,
bruxo abusivo e zombeteiro, que revive em mim tantos enigmas.

(Carlos Drummond de Andrade, sob fotos de Getúlio,
3º piso do Museu da República, Rio de Janeiro-RJ)



feito senha




Este texto tem por base as anotações feitas durante duas visitas (08 e 12/09/99) à exposição “Eu, Getúlio” - Museu da República, Palácio do Catete, Rio de Janeiro. Da primeira e despretensiosa “viagem” resultaram 19 notas - transformadas em texto para O Jornal de Hoje, Natal-RN. Em 44 anotações transformou-se a segunda “viagem”, devidamente premeditada. Entre as duas visitas, registrem-se as consultas aos diários de Getúlio Vargas, na biblioteca do CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio.

Meu texto - colado ao da mostra “Eu, Getúlio” - possui motivação dupla: a performance ambígua e sedutora do personagem principal - ele, Getúlio - e a assinatura pós-moderna da criação e curadoria da mostra, nas pessoas de Cafi, Marcello Dantas e Rico Lins, com destaque para o texto de Lúcia Lippi Oliveira, dentre outros. Esse elenco lê a estética getulista de vários ângulos, através de procedimentos diversificados, e aciona o leitor para que este intervenha na re-leitura do signo exposto. Olhar, ouvir, folhear, gravar e até encarar (uma máscara), são alguns dos verbos conjugados por quem lê a mostra, na sua proposta de atentar para um perene deslocamento do olhar.

“Eu, Getúlio” passa "o ponto e as luvas" ao espectador. A exposição estampa na parede - literalmente - as digitais do sujeito cuja identidade parece ser uma das senhas imprescindíveis para interpretarmos o país. É como se no final do século nos sentíssemos frente a uma radiografia da nossa história, na eterna busca de construir uma identidade nacional. Getúlio transformou-se em texto. Sua leitura é fundamental para a inscrição do Brasil nesse contexto globalizante. Independente de suas posições políticas e ideológicas, é importante ter a senha do caudilho de São Borja (RS) e seus 19 anos de poder durante dois períodos da história republicana brasileira, de 1930-1945 e 1951-1954.

Sobre o caudilho, lê-se no 3º piso do Museu da República: “Mudou conforme o vento: reacionário, revolucionário, ditador, fascista, liberal, nacionalista, trabalhista...” Essa mutação de Getúlio - apontando para vários vetores - incomoda. Sua ambigüidade parece ser a nossa cara. Getúlio reflete o país - esse acampamento provisório de raças que nos re-colonizam a cada regime governamental. Ele reflete/refrata os muitos Brasis e suas mutações.

No espelho no qual transformou-se a vida de Getúlio - e principalmente a sua morte - vê-se manchas do sangue herdado das 3 raças que pulsam dentro de nós. E não adianta adentramos o milênio sem encarar o espelho manchado e entender essa pulsação. Caso contrário, corremos o risco de não responder àquelas duas perguntinhas que os poetas Renato Russo e Cazuza elaboraram - em meados dos anos 80 -, bem no finalzinho desse século: Que país é esse ?(Renato) e por que é que a gente é assim? (Cazuza).



uma encenação pós-moderna




Muito do que aprendemos durante anos, nas aulas de história, sobre uma das fases mais importantes de nossa república, está exposto em “Eu, Getúlio” e pode ser observado em algumas horas. Neste pouco tempo o visitante sai da exposição do Palácio do Catete - Museu da República, no Rio de Janeiro, com informações fragmentadas do período da história republicana que vai de 1930 a 1954 - datas que correspondem à primeira chegada de Getúlio à presidência e ao seu suicídio em 24 de Agosto.

Aberta em 24/08/99 - 45 anos, portanto, após a morte do ex-presidente - a exposição “Eu, Getúlio” exibe o acervo de 1580 peças doadas pelas netas Celina e Edite Vargas ao Museu da República. Some-se a isso o próprio acervo do museu, que exibe da sala ministerial até o quarto no qual o líder do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) “escolheu” a hora e o gesto finais.

Encenação pós-moderna, a mostra prima - em seus 4 ambientes - pelo movimento, a sonoridade, a visão de formas e instalações, tendo como suporte os aparatos da virtualidade, da computação e do digital. Assim, nossos sentidos são acionados simultaneamente, proporcionando ao leitor uma gama de percepções e impressões que o introduzem rapidinho nos recompostos cenários republicanos, no clima da época. A mostra é um documento histórico e cultural, mas pode ser “lida” enquanto objeto artístico - espaço virtual de imagens em movimento (Ilza Matias).

Em “Eu, Getúlio” nada parece estático, morto. Tudo vibra. O leitor é atingindo por forte carga de informação histórica e minucioso senso estético. Cada lugar parece estar na sua coisa, como diria Gil numa de suas antigas canções. Algumas coisas, aliás, estão de fora. Pelo título da exposição, fica claro não haver alusões diretas à ditadura implantada com Filinto Muller ou a outros fatos obscuros do Estado Novo.

Sob iluminação discreta e certeira - vários tons, várias luzes e múltiplas cores -, lá estão as imagens de jornais e revistas da época. Estão também as vozes de uma mídia eletrônica que engatinha, trechos de filmes, fotografias republicanas, músicas do acervo da Rádio Nacional e do MIS, livros do homenageado, mobília do palácio republicano, documentos pessoais e públicos, fragmentos de diários, discursos ao vivo...

Os painéis em movimento, a iluminação projetada e os móveis de madeira parecem dispostos num cenário teatral. Nesta cena a realidade é estetizada, transformando-se numa narrativa que mistura as vidas pública e privada, o país real e o oficial, o homenageado e o leitor (afinal, há sempre um antepassado nosso “atingido” por aquelas imagens ainda em movimento; ou o próprio “leitor” sente-se “atingido”, caso ele possua, por exemplo, um carteira de trabalho e saiba quem a implantou no país).

Ao observarmos as performances de Getúlio (nas fotos, nos discursos do vídeo, do rádio) percebemos no quanto de teatralidade e encenação reveste-se o poder e seus discursos. Os gestos eufóricos, a tônica da sua linguagem, a postura de estadista... Tudo nos faz pensar que assim como os sentimentos são históricos, é possível que a gestualidade também seja. Ao vermos Getúlio discursar, é como se aquela gesticulação, aquele material sonoro e seus ritmos fizessem parte da produção estética e comportamental de uma determinada época... Fosse algo específico daquele contexto, embora possa ser “relido” num outro.


a identidade na entrada


Uma porta de vidro escuro dá acesso a 1ª sala de “Eu, Getúlio”. Adentrado o recinto, o leitor sente-se bruscamente transplantado para outro espaço-tempo. Essa percepção é provocada pelas ampliadas impressões digitais de Getúlio Dorneles Vargas - o cidadão. Documentos de identidade e fragmentadas imagens projetadas ao longo da sua vida também estão expostas. São fotografias sobrepostas, rostos que se transformam através de processos digitais - e que parecem dizer não apenas dos deslocamentos pessoais do sujeito, mas das identidades mutantes, em crise, sejam essas identidades do país ou do leitor.

Sérias ou risonhas, sombrias ou luzidias, estas imagens vão do teto ao chão, inscrevendo a assinatura do estadista que parece recepcionar o espectador. De alguma página, de uma cédula antiga... num documento qualquer... Conheço essa letra de algum lugar... É como se Getúlio passasse as luvas logo na entrada (essa sala - e somente ela - pareceu-me possuir um olor especial, inerente ao cenário. Segundo o guarda, a origem do cheiro tem a ver com o ar condicionado... ).

Nesse cara-a-cara com o “leitor”, Getúlio entrega-se. O cheiro do ambiente, a trilha sonora e as imagens denunciam o caudilho. Todos os nossos sentidos são acionados. Ele não tem nada a perder. Afinal, saiu da vida para entrar na história... Seu carisma é evidente. A profusão de fotos parece colocá-lo em movimento; os gestos do caudilho seduzem. Ícones do homem que instituiu o Estado Novo estão à vista: o charuto, o sorriso, os óculos, o chapéu, sua aliança, a cuia de mate...

Observa-se esse visual ao som do piano preto que pertenceu ao presidente - agora transformado em estatueta, uma das mais interessantes da mostra, sobre o próprio móvel. Acionado por computador, o instrumento entoa - ali no centro da sala - em bom volume, o repertório da era Vargas: Ernesto Nazareth, Villa Lobos, Mignone, Haroldo Lobo & Marino Pinto...

Não é brincadeira... Some-se a isso, objetos de uso pessoal e outras fotos - muitas imagens - do Getúlio filho-pai-marido-avô. Isso é só o começo... No final dessa sala há extratos do diário (1930-1942) exibidos numa pedra de mármore, numa movimentada projeção digital. Nesta, lê-se impressões que vão desde o gosto do gaúcho pela solidão até a falta de educação política dos brasileiros; ou mesmo as tentativas de definição, tipo essa: “adaptar-se quer dizer tornar a coloração do ambiente para melhor lutar”.

A segunda sala é menor. Ao adentrá-la damos de cara com um antigo móvel três-em-um (conjugado de rádio, toca-disco e TV) em cuja tela projetam-se imagens de filmes da campanha de 1950: “Uma vida a serviço do Brasil” e “Ele voltará”. Esses filmes apresentam performances inusitadas. Numa delas Getúlio discursa empolgado na Bahia, inaugurando nossa 1ª refinaria de Petróleo. Próximo a este vibrante móvel de madeira - um dos prediletos do presidente, há um fichário temático de discursos e pronunciamentos que repousa silenciosamente iluminado. Do lado direito da sala há uma réplica volumosa da torre de petróleo Ipiranga. Ela impõe-se na sua verticalidade metálica, dialogando com a virtualidade do documentário “Estradas” que movimenta-se ao seu lado.

Recuando-se até o final deste espaço, encontramos um enorme livro virtual, aberto sobre a mesa. Com extratos da biblioteca pessoal de Vargas, numa projeção digital “folheada” pelo leitor, o livro registra dedicatórias tipo a do texto “Com o vaqueiro Mariano”: “A Getúlio Vargas - com sincera admiração e profundo respeito - oferece Guimarães Rosa. Rio, 1952”. Além do autor de Sagarana (1936), lê-se assinaturas de Manuel Bandeira, Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Hollanda, dentre outros escritores e intelectuais.

Sob a mesa com o grande livro, uma vitrine - sobre a qual circulamos - exibe outros tomos de Getúlio. Imagem inusitada: livros vistos sob um piso de vidro iluminado (Vale lembrar que, assim como Juscelino e Sarnei, o homem do Estado Novo tornou-se, na década de 40, imortal da Academia Brasileira de Letras. Vale também indagar: seriam os diários, os discursos e/ou a “carta-testamento” suas obras-prima?).



a polifônica era Vargas





A terceira sala apresenta quase a mesma densidade sonora e visual da primeira. Composta de 4 “instalações”, ela possui um simpático banquinho no qual nos sentamos - inocentemente - seduzido pelos sons e imagens do lugar: um antigo rádio com transmissores da época e um imenso telão no qual vê-se, em preto e branco, o vídeo “O Brasil e o mundo na era de Getúlio”. São imagens fortes que contextualizam o cenário sócio-político, artístico e cultural da época. O espaço inunda-se de imagens e sons: um locutor informa que uma rádio européia anunciou o final da 2ª guerra (1945); um outro locutor diz que a imprensa russa “abriu fogo rasgado das suas baterias contra o Brasil”; Hitler toma o poder; craques do futebol jogam ao som de Carmem Miranda ou Billie Holiday... Enquanto isso, enquanto Getúlio esbanja - no telão - gestos de tesão pelo poder. Há outras duas “instalações” nessa sala - a menor da mostra: as inofensivas - e quase despercebidas - vitrines, nas quais exibem-se comendas e insígnias do gaúcho e uma instalação chamada “Getúlio e você”. Hora de devorar a esfinge...

O leitor lembra o banquinho no qual o visitante senta-se inocentemente? Pois bem. A maioria dos leitores que adentra a sala vai sentando, olhar fixo no telão, sem saber que a experiência de encarar a máscara o aguarda logo ali pelas costas. Não é fácil encará-la - do outro lado da vidraça - na sua impassível autoridade desafiante. Basta um giro de corpo, e a republicana máscara populista dialoga com a nossa anônima máscara republicana que, dentre outros fatos históricos, pode lembrar o final de Olga Benário nos fornos de gás de Hitler, ou ainda o atentado da Rua Tonelero, por exemplo.

Na sua mudez de máscara - signo da persona - ela parece lembrar que em meio a golpes, torturas e atitudes populistas daquela modernidade, alguns dos seus feitos são bastante atuais: o voto secreto, o direito ao voto para mulheres, a licença-maternidade, a jornada de 8 horas para o trabalho, instituição da carteira de trabalho e do salário mínimo... Quanta ambigüidade abriga uma máscara, ou melhor: de quantas máscaras reveste-se o poder e seus discursos?

A 4ª sala dialoga de forma coerente com a 3ª. Parece anunciar um novo clímax da narrativa. Na entrada, vários personagens que não constam do roteiro das três salas anteriores entram em cena: uma colorida coleção de anônimos, registrados como Getúlio, dialogam num imenso telão vertical - do teto ao chão - introduzindo uma alegre e colorida polifonia ambiental. Alguns dos personagens que aparecem no telão relatam os motivos pelos quais ganharam o nome de Getúlio; outros narram histórias ou acontecimentos nos quais suas vidas se cruzam com a do populista republicano.

No imenso telão vê-se risos e lágrimas, em meio às falas de cidadãos pertencentes as gerações de 40, 50, 60 e 70. São todos Getúlios. “Totem - Nós, Getúlios” - esse, o nome da instalação - dialoga com os muitos Getúlios (a maioria em branco e preto) que revestem as paredes. Nestas existem pequenos nichos envidraçados nos quais podemos contemplar, dentre outros: um texto psicografado pela profª. Ignez Varella, uma réplica da carta-testamento, a caneta, uma página de agenda e a arma.

O dourado revólver repousa sob pano - com dobras - fortemente avermelhado. Interessante observar ser esse um dos espaços observados com certa rapidez. As pessoas pouco se demoram ali e passam a contemplar as muitas fotos do presidente quando em vida. Mas heis que, na minha 2ª visita, uma moça fotografa o seu acompanhante ao lado da arma. Desvio subitamente o olhar, ao perceber a inusitada imagem do revólver diretamente apontado para a face esquerda do sujeito que, acredito, dar-se-á conta da cena por ele estrelada quando da revelação da foto (ela revelará o virtual poder das mulheres).

Lê-se, nessas paredes finais, a capa da revista Manchete de 30/08/54, cuja chamada anuncia “Os funerais de Vargas em São Borja”, mais uma capa de O Cruzeiro e uma outra da revista Aquis que indaga: “Quem matou Getúlio?” A porção da mídia expõe-se ainda nos anúncios da época - tipo aquele de Nutrion, que exibe um desses sujeitos que investem no culto ao corpo, ou o comercial do talco Palmolive, estrelado por um bela garota de acentuada cintura. “Fragmentos de uma época” é o título desse acervo que insere o presidente no panorama sócio-político, artístico e cultural dos anos 30-40-50. O metonímico discurso artístico é lido na capa de O homem e o cavalo, de Oswald de Andrade, e na bela fotografia emoldurada do autor paulista. De Villa Lobos, há uma charge; e do escritor Monteiro Lobato, a capa original de A chave do tamanho.

Noutro nicho, lê-se a página original da agenda de Getúlio no dia 23.08.54. Lá está escrito, sem qualquer embaraço, um pequeno texto. Nele o presidente diz esperar que os militares mantenham a ordem, e que ele possa tirar uma “licença”. Anuncia em seguida: “Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver” - são as palavras finais, escritas antes da madrugada de 24 de Agosto.

Simpática e quase despercebida é uma cabine para gravação de depoimentos em vídeo. Com um banquinho, boa iluminação e equipamento simples, ela expõe um anúncio sugerindo ali apresentar-se pessoas que saibam alguma história ou piada, conheçam algum poema ou disponham de objetos que lembrem Getúlio... Durante o tempo que estive no local nenhum narrador ocupou a cabine.



ele queria ser Jesus?



Quando saía desta sala, um sujeito que acabara de vislumbrar o manuscrito da agenda de Getúlio disse-me ser tudo falso. Meio espantado, dei atenção às suas justificativas que tinham na morte de PC - Paulo Cesar Farias - e a namorada seus objetos de comparação. Referindo-se ao ex-assessor de Collor, perguntou-me ele: “Você acha que Susana o matou e depois suicidou-se?” Respondi que não. Ele, exaltado, retrucou: “E então? Como é que um homem inteligente e poderoso como esse ia se suicidar? É tudo teatro!”

Percebi ser seguido por meu interlocutor ao adentrar a Sala ministerial. Nesta, uma imensa mesa central exibe - demarcada - a pasta de cada ministério. 12 cadeiras postas em redor dialogam com a cadeira - reclinada, de 2 braços - situada à cabeceira da mesa. Sobre esta, algumas esculturas de tamanho médio; sob o teto, lustres iluminando de amarelo o recinto meio sombrio. Os móveis estão cercados por uma corda escura, impossibilitando o assento de algum possível “novo ministro”.

Pela amplitude do espaço, pelo tom solene do ambiente e pela quantidade de pessoas ali paradas, percebe-se que as pessoas adoram observar a sala. Elas demoram-se nas observações, circulam e conversam distraidamente. Aliás, por aqui há sempre alguém falando, contando histórias, fazendo observações. É também comum encontrarmos uma mesma pessoa que já esteve várias vezes naquele espaço, onde vemos rostos nostálgicos, expressões às vezes emocionadas. Um desses rostos anônimos afirma que “antes de GV nada havia no país”. E conclui: depois “os militares destruíram tudo”.

Ergo os olhos e percebo o colorido teto. Um anúncio avisa que, apesar dos retoques, sua decoração é original. Nesta destaca-se uma enorme composição que evidencia Baco e Ariadne. Tentei entender o que faria o Deus do vinho por sobre a mesa - e as cabeças - daquela República. Pensei na porção dionisíaca e labiríntica aflorando nos corpos do poder... Seria isso, vovô Nietzsche? O que acharia disso tio Ulisses?

Meu interlocutor, ainda descrente do suicídio de Vargas, aproxima-se ao ver-me contemplando A pátria - uma imensa tela de 1919, pintada por Pedro Bruno, apresentando o nascimento da República no Brasil. Situados atrás da cabeceira da mesa e de sua principal cadeira vazia, eu e a tela servíamos como interlocutores para o cidadão que se apresentou como natural de Vitória. Ao observar as 12 cadeiras em volta da mesa (e até manusear a pasta do ministério da marinha), o cidadão sentiu-se desconfortável: percebeu na dúzia de assentos uma possível alusão aos apóstolos do filho de Deus. Religioso, meu efêmero interlocutor, apesar de saudoso, foi intensamente implacável com aquela República. “Ele queria ser Jesus?” - foi a última frase que escutei antes de subir para o 2º piso da mostra.



o palácio e a ventura republicana



Segundo informou-me a baiana Alzenir Alves Serpa - funcionária do Museu da República -, o 1º piso (“Eu, Getúlio” e a sala ministerial) do atual Palácio do Catete era destinado aos despachos e ações de trabalho. A parte nobre - espaço destinado às recepções e festividades - ficava no 2º piso; enquanto o 3º andar era a parte íntima da família presidencial. Nele Vargas residia naquela madrugada de 1954.

O antigo Palácio Nova Friburgo foi construído entre 1858 e 1867, tendo como arquiteto Gustav Waehneldt. O café e o trabalho escravo eram as duas riquezas do primeiro proprietário do palácio - o barão de Nova Friburgo. Homem rude, rico e muito viajado, o barão tinha nas viagens um meio de educar-se. A viagem e sua pedagogia instauradora da diferença... Destas viagens, o barão trazia louças, espelhos e objetos de arte, transportados em navios oriundos basicamente da Europa. Como o mar do Flamengo era bem mais próximo ao Catete e o barão possuía muitos escravos, dá para ver que tudo consistia numa operação simples e duradoura.

Adentrar os compartimentos do Palácio é uma aventura fascinante. A suntuosidade do ambiente e a conservação dos móveis e mobílias tornam a empreitada digna de um “acontecimento”, para a vida de nossa retinas tão fatigadas. Haja imagens e reflexos e reflexões... A viagem começa pelo 2º piso. Uma capela decorada com motivos religiosos e telas de São Sebastião e Santa catarina, recepciona o leitor. Este irá depois perambular por 6 salões fartamente decorados com motivos, mobílias e objetos de arte oriundos, principalmente, da França e da Itália.

O salão de banquetes é o ambiente predileto do visitante. Local onde ele permanece, nesse piso, por mais tempo. Lá, a mesa continua posta com sua louça republicana de cores azul e branca. De Deodoro a Getúlio, todos fartaram-se por aqui. Amplia o tom de nobreza do ambiente a sintomática tela “Foi num dia triste”, de Antônio Parreiras, cuja influência italiana “defendia uma arte fundada nas manchas de cor”.

Do teto desse salão, numa decoração colorida, a deusa Diana a tudo contempla, com olhos que parecem ainda caçar algo perdido por sobre as cadeiras - ora vazias - daquela mesa. Mas bom mesmo é contemplar a imensa cristaleira, encomendada na França pelo barão de Nova Friburgo. Imponente, o móvel guarda relíquias pertencentes a vários presidentes que habitaram o palácio.

Na entrada do 3º piso o leitor é bem recepcionado: “O Sr. pense, o Sr. ache. O Sr. ponha enredo” - diz a citação do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. É o texto do escritor mineiro que abre a exposição “A ventura republicana”. Aqui, painéis de políticos como Silva jardim e Deodoro da Fonseca nos encaminham a uma sala - ao som de “Língua” (Caetano Veloso) - na qual lê-se textos de vários autores brasileiros. Um dos mais destacados é esse da Hilda Hilst: “de cima do palanque, de cima da alta poltrona estofada, de cima da rampa, olhar de cima”. Lima Barreto não deixa por menos: “A rainha da Inglaterra reina mas não governa. No Brasil, os presidentes da República reinam e governam”.

As salas seguintes apresentam muitos objetos, retratos e esculturas de ex-presidentes. Algumas, meio pesadas não só no bronze, mas principalmente nas suas fisionomias de poder. Há nestas salas uma “mixagem” de várias vozes da Bíblia e do Brasil, com destaque para: Pero Vaz de caminha, Glauber Rocha, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Cruz e Sousa e habitantes de Canudos, dentre outros. Vem de um destes últimos uma das frases mais instigantes, de 1897: “A República não está na Bíblia”. Depois de atravessar várias salas e até um túnel artisticamente produzido, retomamos novamente o objeto dessa escritura: “O chefe”. “O pai dos pobres”. “O escravo do povo”. Ele - Getúlio. Na sala ouve-se, sintomaticamente, Carmem Miranda cantar: “Alô, alô, responde se gosta de mim de verdade...” Mara-vilhoso!

Perambulamos por um corredor em direção ao último espaço do museu: os aposentos do Presidente. O local onde há exatos 45 anos ele “escolheu” a hora e o gesto. Na entrada ouve-se uma voz grave que lê a carta-testamento, com trilha sonora de fortes efeitos especiais. O ambiente possui iluminação tênue, de tons amarelados. Alguém reclama da luz... Uma imensa reprodução da fotografia de Getúlio e Roosevelt (ex-presidente dos EUA), em Natal, 1943, recepciona o leitor. Essa imagem potiguar é a única tela no quarto do Presidente. A decoração é simples; o ambiente tem ar austero. A mobília é até um pouco rústica, se confrontada com a suntuosidade dos salões do 2º piso, e mesmo com o design mobiliário da época. Isso também parece confirmar a doxa: Getúlio morreu pobre.

O quarto do suicídio. Alguns permanecem por mais tempo por aqui. Repito o gesto de um senhor emocionado e toco o colchão. Atento para uma senhora que conversa com o filho, e repete para mim o que acabara de mencionar: “Ele ofereceu o sangue por nada”. Quando me vê anotando sua fala, explica-se: “Porque os que estão no poder não deram continuidade ao que Getúlio começou”. Uma jovem paulista informa vir sempre ao local. Diz que herdou da mãe a paixão por Getúlio, e que aprendeu a amá-lo lendo O tempo e o vento, do Érico Veríssimo. Sugere, repetida vezes, eu ler a obra do escritor gaúcho.

Neste espaço estão os ícones mais fortes do museu: a camisa - de listras brancas e cor de vinho - ainda ostenta a mancha de sangue no bolso por sobre o peito; um mine-holofote de luz amarelada focaliza um vitral no qual vê-se, de pé, a bala sobre macio tecido vermelho. Um discreto - e quase escondido - Coração de Jesus a tudo observa na sua doce contemplação. E a gente vai ficando. Permanece no ambiente um tempo maior que o previsto... Vai tocando, olhando, perambulando pelo quarto. Parece haver nos que ali se demoram uma busca. Como se a permanência trouxesse uma senha, informasse algo que buscamos e não sabemos exatamente o que seja.


alamedas populistas



Ainda com Getúlio na retina, no ouvido e na pele, passeio pelas alamedas do Palácio do Catete, onde Jô Soares lançou este ano O homem que matou Getúlio Vargas. Lembro do horário eleitoral no qual políticos do PTB - herdeiros do legado do caudilho de São Borja - relembram seus feitos.

Perscruto, no passeio pelas alamedas - do palácio e do olhar alheio - os diversos tipos que circulam pelos jardins neste final de tarde, pós data de nossa Independência. Dois violeiros entoam o velho Lula Gonzaga, num banquinho solitário; noutro, uma garota confere seus cartões com endereços de agenda; babás pilotam coloridos carrinhos de bebês... Velhinhos contemplam o quieto lago poluído, as altas palmeiras republicanas, sob o mudo olhar dos guardas imóveis.

Ambiente arborizado, pouco barulho e uma grande vantagem: pouquíssima possibilidade de assalto. As luzes acendem e as pessoas continuam adentrando as alamedas do Palácio. São passantes de todas as classes e idades, que apenas contemplam enquanto caminham. Como o tempo, eles não param. Lembro da professora e ensaísta Beatriz Resende: qual seria o desejo de um político ao implantar o núcleo do seu poder num bairro popular como o Catete? Aqui Getúlio continuará eternamente próximo de duas coisas que tanto amou: as marcas do poder e do povo - destinatário de sua carta-testamento. Nesta, lê-se no final: “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. ...saio da vida para entrar na história”. Ao entrar, transformou-se na própria.



domingo, 19 de julho de 2009

Eu sei que vou te amar

Uma versão desta crônica foi publicada no Jornalzinho do Sebo Vermelho, ano III, n 26, Natal, Dez, 1994

A assertiva Eu sei que vou te amar tornou-se internacionalmente conhecida a partir da década de 1960, quando Vinícius de Moraes e Tom Jobim compuseram, em 1966, a canção que se tornaria um dos principais clássicos da Bossa Nova. Em 1985, o cineasta carioca Arnaldo Jabor utilizou a referida expressão como título do seu oitavo filme.

Com Fernanda Torres e Thales Pan Chacon no elenco, o filme Eu sei que vou te amar teve o seu roteiro publicado pela editora Record, em 1986; e levou o prêmio Palma de Ouro de Melhor Atriz do Festival de Cinema de Cannes, também em 1986. Segundo a lenda midiática, a atriz - que não foi buscar o tal prêmio - seduziu o juri principalmente por causa de uma cena dramática na qual ela chora, come maçã e discursa próximo a uma geladeira aberta.

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Takes esquizos, tomadas literárias, planos afetivos



Tendo como cenário uma casa moderna projetada por Oscar Niemeyer, o drama de Jabor é extremamente psicanalítico e dialógico. Trata-se de um cinema com tomadas literárias, no qual o verbo conjuga-se como imagem, ritmo, ação. Podemos dizer que a linguagem verbal é a terceira personagem do filme. O diretor começou a fazer cinema por motivação literária; e sua formação estética inclui leituras de poesia (João Cabral), teatro (Brecht, Artaud) e ensaios (Walter Benjamin).

O roteiro do longa é simples: um jovem casal encontra-se, após três meses de separação, para uma prestação de contas afetivamente desfalcada e existencialmente produtiva. As palavras – fugidias – são o único meio de “fechar as contas”. Mas elas - as palavras - não dizem nem podem tudo nesta narrativa de takes esquizos e planos abissais que tentam fazer uma espécie de radiografia da mente apaixonada. Haja risos, lágrimas, gritos, perguntas, cobranças... Haja útero e colhão! Neste encontro, os discursos amorosos dos três (inclua-se o espectador / leitor) incursionam por vários planos do real e da imaginação; mergulham nas memórias em ruínas; adentram o universo do delírio.

Em Eu sei que vou te amar, o lirismo e a delicadeza são desamparados pela potência dos fatos. Os corpos e as almas misturam-se. Os gêneros e as consciências também misturam-se. A verdade vira uma "nojeira filosófica" inventada por monges punheteiros da idade Média. Saber o que é o ser da paixão vira fissura: há patologia na bondade? Obedecer faz pesar a consciência? Na desconstrução dos discursos e cenários afetivos, a beleza erige, mas faz desmilinguir. O corpo fala; às vezes urra.

Ele, que não suporta ser amado, mergulha num cartesianismo inconvincente, e manda esta: “... me separei de você porque te amava demais...” Ela, claro, foi à forra. Deu de mamar - o seu leite sagrado - para um executivo que encontra na rua, no dia da morte da sua avó. Ainda educada para ser uma esposa prendada, tinha “mania de ser feliz”. Foderam-se no final. Afinal, tal qual o sentimento amoroso em fragmentos, as palavras dilaceram. Edificam. Neste roteiro dramático, elas - as palavras - parecem concretizadas nos gestos daquele polvo contraído e pleno na praia final.

Segundo a poeta Ana Paula Oliveira, a imagem do polvo final sugere o sentimento amoroso, no que este possui de curvo, gosmento, indesgrudável, quando de posse do ser humano. Sugestão de quem lê Hilda Hilst e Ana C; pegada de quem mergulha fundo no universo dos afetos e nos meandros das paixões; mirada de quem adentra - bliss - o esplendor e os descompassos da linguagem. Porque, ao ser dita, a frase Eu sei que vou te amar inscreve, no ato de sua pronúncia, a ação futura que a assertiva anuncia: o amor no tempo presente.



sábado, 18 de julho de 2009

As metamorfoses de Leminski


Uma versão deste ensaio foi publicada, em forma de depoimento, na Revista Terceira Margem Tese: poesia, UFRJ, Ano X, N 15, Rio de Janeiro, Julho-Dezembro, 2006



Em seu livro póstumo Metaformose, o escritor Paulo Leminski escolhe o poeta latino Ovídio como forma, e elege a figura de Narciso como modelo mitológico de narrador. A história de Leminski com Narciso e Ovídio é antiga. Em 1975, o narrador do Catatau já anunciara: Anarquizo Narciso [1]. ...Todas as águas são de humor lunático... Amores de Narciso, preciso: sair do espelho. Narciso, o ausente no lugar [2]. Como lemos ao mergulhar nesta Metaformose, o velho anúncio do Catatau cumpriu-se: saído do espelho, Narciso deixa de se ausentar. Além disso, o mito inscreve-se no espaço da exterioridade, numa imagética da alteridade, nas figurações da diferença.

A escolha do mito de Narciso sugere uma certa porção romântica do Leminski enquanto poeta; embora ele releia o mito de forma bastante diferente da narrativa original. Nessa releitura, a mitologia é utilizada principalmente como forma; não como algo a partir do qual se postule a inscrição de uma verdade ou a defesa de algum discurso ideológico.

Narciso narrador personifica a leitura de um mito às avessas. Um Narciso de outra forma. Como figura mitológica que transita no território da lírica – suas luzes e sombras –, contemplamos aqui um Narciso nublado; às vezes, clarividente. Apesar de morrer de sede ao beber sua própria imagem, é interessante observar como nestas águas e formas recriadas, o mito relê outras imagens. Nessa releitura, ele aciona sua própria lição original: centrar o olhar apenas em si sufoca, mata. Invertendo a narrativa original do mito, a re-leitura leminskiana estetiza uma outra ordem mítica: faz com que o Narciso narrador, ao deparar com a visão do outro, sua diferença, construa outras formas de olhar que o façam mover-se em múltiplas direções.

Ovídio é uma das direções estéticas para onde se move Leminski. Dizendo assumir várias formas, o narrador do Catatau cita o autor de Matamorfoses já na primeira página desse primeiro livro de Leminski: dos exercícios de exílio de Ovídio é comigo [3]. Mais adiante o leitor desse “romance-idéia” – subtítulo do Catatau – é provocado com a seguinte pergunta do narrador: Não somos os ossos de Ovídio?[4] Não é difícil responder a indagação do autor e perceber os ossos – as formas – de Ovídio na poética de Leminski. Vejamos como a herança do arquivo de formas da tradição – principalmente os signos do imaginário grego – influi na inscrição da letra do poeta [5]:

...A literatura latina é pálido reflexo da grega, com a qual mantém uma relação espetacular, de original para espelho. Virgílio já está em todo Homero e Teócrito. ...Ovídio é uns alexandrinos... Em literatura, é a forma que é social. É o elemento material transmissível, a concretude do processo criativo. As formas é que são o material herdável. E da literatura grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus ‘designs’ de texto. Seus programas. Seu ‘software’ morfológico. Suas configurações desejáveis...

Embora Leminski associe Ovídio a uns alexandrinos, quer dizer, a uma espécie de filólogo daquele contexto histórico e estético, é também através do autor latino que chega ao poeta paranaense a rica herança dos programas advindos dos gregos. Ao confrontarmos o início do longo poema de Ovídio, cuja argumentação inscreve pedras transformadas em pessoas, com o começo desta Metaformose, percebe-se que entre aquele poema latino e esta prosa-poética latino-americana existe muito mais intertextos e simulacros do que supõe nossa infinita fome de simetrias – sejam elas formatadas através do poema, do ensaio, da carta ou da prosa. Vejamos primeiro os versos das Metamorfoses [6], de Ovídio, e em seguida o trecho inicial da Metaformose [7] de Leminski:

Antes do mar, da terra, e céu que os cobre/ Não tinha mais que um rosto a Natureza:/ Este era o Caos, massa indigesta, rude,/ E consistente só num peso inerte...

(Ovídio, Metamorfoses)


Antes do Caos, da Terra, do Tártaro e de Eros, antes das potestades que pulsam nas Origens, tenebrosas potências do abismo primordial...

(Leminski, Metaformose)


Aqui, embora a movência da "letra" de Leminski esteja associada ao ritmo do poema de Ovídio, o recorte vocabular do poeta brasileiro ainda muda; difere do recorte utilizado pelo poeta latino. Mais adiante, Leminski radicaliza no seu processo de criação. Abdicando do procedimento da intertextualidade – herança típica da modernidade –, o poeta aciona a construção de um simulacro, aquisição do autor pós-moderno (a fabricação de simulacros nos campos da arte e da cultura se dá exatamente num tempo no qual o conhecimento é também produzido através de processos de simulação, como atestam as máquinas da era da informática). Em Metaformose [8], esse procedimento da simulação tem no início do poema de Ovídio seu espelho, sua forma:

Antes do mar e da terra e do céu que tudo cobre, um só era o rosto da natureza no mundo, aquilo que chamamos Caos, massa rude e indigesta, apenas peso inerte, desconjuntada discórdia das sementes das coisas.

Talvez motivada por essa visível herança formal, exemplificada no simulacro fabricado a partir do modelo, na apresentação de Metaformose a poeta Alice Ruiz pede para o leitor não confundir o texto de Leminski com o de Ovídio. Segundo a esposa do poeta, Metaformose seria a outra forma transformada por uma leitura. Uma interpretação ‘através das formas’ numa linguagem que também mudou [9]. Além de mudar a linguagem – que, assim como a forma e o sentido são também históricos e sociais –, o poeta optou também pela mutação da noção de gênero literário. Para criar a densidade poética do seu texto, o autor opera com a ruptura ao eleger a prosa como forma. Enquanto Leminski opta pela sintaxe coleante (Ana C.), da prosa, seu ritmo veloz, Ovídio utiliza-se, ao narrar suas Metamorfoses, do hexâmetro datílico – verso latino formado de seis células métricas chamadas dátilo[10].


A ruptura de gêneros e a mutação lingüística – patrocinadas por Leminski – apontam para a densidade poética dessa prosa onde os mitos e suas figurações projetam-se na mente do leitor com uma nítida sensação de velocidade. Essa rápida projeção mental dos mitos possibilita a reconstrução do signo lingüístico – uma das potencialidades inerentes do fazer poético – e a produção de imagens que articulam a criação de um sentido onde se lê múltiplos sentidos (ou a simultaneidade de todos os sentidos possíveis).

Na leitura que aciona de Metaformose, o poeta e compositor Arnaldo Antunes diz ser esse um texto inclassificável como gênero, e indaga: narrativa ou reflexão? poema em prosa ou ensaio? ficção ou texto didático?. [11] É possível que o exercício da ruptura de gêneros acionado pelo poeta que biografou Jesus faça com que o texto de Metaformose seja um pouco disso tudo que Arnaldo indaga. Para nós, trata-se principalmente de uma prosa-poética produtora de significantes, através dos quais a língua mais celebra e goza que anuncia o sentido.

Desde o Catatau (1975), Leminski sempre rompeu com a noção de gênero literário, e demonstrou sua predileção pelo monólogo. Metaformose (1994) é também um instigante monólogo, cujo título – desentranhado de um poema do próprio Leminski, feito nos anos 60 – já anuncia essa ruptura. A partir do título, o poeta re-constrói, assim como no Catatau, uma usina de signos, sons e formas; o que nos remete a uma pluralidade de significantes, como: meta, metáfora, morfologia, metamorfose, forma...

Dentre os poetas da chamada geração marginal, Leminski destaca-se como o autor mais sintonizado com os procedimentos da língua e com o uso da forma. Segundo ele, o poeta já nasce limitado por um duplo signo: a língua e um estoque de formas. Mas o poeta não faz disso um drama. Ao contrário: ele usa os limites, as crises do seu tempo e seus paradoxos como matéria-prima, como fontes de criação. O poeta transforma a crise em substância. De posse do arquivo de formas da tradição, ele rompe com a noção de gênero literário, simula estilos, recicla ditos, relê mitos e provérbios recriando a estrutura da língua.

Diferentemente do monólogo polifônico do Catatau, não há em Metaformose o uso da palavra-montagem ou processos de afixação ou justaposição vocabular, procedimentos estéticos também utilizados por autores como Guimarães Rosa. Metaformose é um texto no qual a concisão da linguagem, a pontuação dos períodos simples e a construção de pequenos parágrafos possibilitam o exercício da síntese e até de clareza, se comparado ao Catatau. Ao contrário da sintaxe brusca e cortante do seu romance-idéia, a construção sintática de Metaformose apresenta-se bem mais fluida.

Por meio dessa fluidez, Leminski salta de um mito para outro, de uma lenda para uma divindade, de uma fábula para um provérbio. Faz com isso desabrochar do mito, da lenda e da fábula a estrutura de sua narrativa. Nesses saltos, o poeta mergulha no vasto arquivo imagético de nossa imaginação e nas formas do imaginário grego.

A agilidade com a qual Leminski mergulha e salta de um tema ou de um espaço para o outro sugere a nossa perene necessidade de deslocamento e mutação. Essa necessidade pode ser configurada no desejo de um outro ângulo de visão, ou na vontade de uma outra forma perceptiva. Esse desejo de uma outra visibilidade ou percepção manifesta-se de várias maneiras. Uma delas, por exemplo, é quando o ritmo do espaço por nós habitado deixa de dialogar com a “percussão” e com os gestos do nosso corpo. Ou seja: quando a disritmia, a aspereza ou a falta de velocidade nos fazem perder o tom, é hora de acionar a nossa capacidade intuitiva e arquitetar, como nas artes marciais, outros golpes. É hora de mirar noutra direção; momento de voar para outro espaço. Como faz Perseu nas Metamorfoses. Ou como ensina Narciso nesta Metaformose.


NOTAS


[1] LEMINSKI, Paulo. Catatau. 1989. p. 123.
[2] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1989. p. 49.
[3] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1989. p. 13.
[4] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1989. p. 63.
[5] LEMINSKI, Paulo. Anseios Crípticos 2. 2001. p. 11.
[6] OVÍDIO. Metamorfoses. Cit. 2000. p. 35.
[7] LEMINSKI, Paulo.Op. Cit. 1998. p. 15.
[8] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1998. p. 29.
[9] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1998. p. 08.
[10] OVÍDIO. Op. Cit. 2000. p. 25.
[11] ANTUNES, Arnaldo. 40 Escritos. 2000. p. 133.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Há um fio narrativo na voz em off, ouça





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Texto publicado na Revista pequena morte. Antologia comemorativa de dois anos. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2008.


Leonardo Gandolfi lançou no entanto d`água, o seu primeiro livro de poemas, em 2006. Há nesse livro uma voz que se constrói às vezes meio secreta, aparentemente leve, dialogando em vários tons. Alguns desses tons são mais agudos, outros menos; e outros há com ecos de porão e rua. Essas pistas vocais, seus andamentos e alguns compassos paisagísticos estão presentes com vigor na sua nova lavra de poemas (“Os espiões”, “– Todas as minhas coisas são tuas” e “Mande nem que seja um telegrama”).


Nessas novas paisagens textuais, o poeta confirma-se exímio na fabricação de títulos e versos, na retirada do peso da linguagem e na construção de personagens poéticos em trânsitos narrativos. Para erigir a oralidade dessas micro-narrativas, ele garimpa versos banais de canções populares, recicla nomes de narrativas comuns, recorta o discurso de personagens bíblicos, ouve ecos da tradição literária. Nessa audição, o poeta brinca com a aparente rigidez dos gêneros e põe, no contexto dialógico do poema, o assassino do filme B, a mulher instruída, o músico, o detetive do romance policial e a sua propensão a “perceber essa mesma ponta de felicidade/ resignada se abater sobre cada um deles.” ("Os espiões").


Nessa inversão estética e contextual, não é exatamente a personagem que mata, o homem que toca, a instrução feminina ou os meandros do crime que interessam: o poeta se apossa do que esses personagens possuem, no cerne da sintaxe, de precioso – a fala da deriva, os prazos e as pausas do desvio silencioso, o discurso da sedução da linguagem. Essas são as armas de quem relê alguma partida na qual, mais do que saber, o ser pensa e atua: “Penso num carro de retrovisor partido/ lançando-se urgente por estradas,/ avenidas, cidades, crianças, canções”(“Mande nem que seja um telegrama”).


A uma geração de autores sem credos nem manifestos pertence Leonardo. Nenhuma sombra metafísica ronda sua página. Se a sua poesia inicial sugere a inscrição do "sangue derramado do carneiro” ou do assassino “como condição de leitura”, o seu poema possui a saúde de não evocar aura, ideologia, bula estética (Isso dá um alívio!). Por isso, a sua linguagem inunda o ouvido da paisagem, rompe com “os hábitos da percepção”. Sua poética é feita de avisos do corpo para ouvir a voz em off – legião – da paisagem e suas cores: “O que está em vermelho indica o começo do caminho”. (“Mande nem que seja um telegrama”).


Os espiões

(“Dans un moi dans um an”, Françoise Sagan)

Escreviam cartas como se cortassem
as unhas. Atenção e distração redobradas.
Ao meu filho, além de um revólver,
eu deixo certa propensão tocante
para o arrependimento e para a deserção.
Aliados ou não, foram indispensáveis.
Minha estátua de sal já está pronta,
mas seria preciso pelo menos outros 27 anos,
agora de diligência, para a gente começar a pensar
em algo como lealdade ou remissão.
Em vários outros momentos podemos
perceber essa mesma ponta de felicidade
resignada se abater sobre cada um deles.
O que – verdade seja dita – já é alguma coisa
numa época em que nada se abate sobre nada.



– todas as minhas coisas são tuas


Quando fiz Do you know the way to San Jose ,
preparei algumas variantes que acabaram
ficando de fora da versão final, gravada
em 1968 por Dionne Warwick. A mais importante
delas talvez tenha sido uma pequena quebra
de andamento mais ou menos na metade da música,
indicada sobretudo por uma mudança de nota
no terceiro dos cinco trompetes que, naquele
instante, preenchiam os espaços em branco. Isso,
apesar de rápido, sempre me remetia a um tempo
em que meu pai me levava ao bar a meio quilômetro
da nossa casa. As notas de um piano que eu nunca
mais ouviria. Anos depois, toda vez que toco
Do you know the way to San Jose , penso no meu pai,
mãos no bolso. A música que fiz com certeza
não fala disso, a suspeita a um só tempo oportuna
e desacreditada que nos separa dos nossos. Frio
antigo e úmido que, como depois percebi, da ação
até a demora não leva nem mesmo alguns segundos.

Mande nem que seja um telegrama

(“Half away”, W.H. Auden)


O que está em vermelho indica o começo
do caminho. E em amarelo, sua metade.
Já estas indicações são possíveis campos
de batalha e as letras em gótico marcam
lugares de interesse apenas arqueológico.
É essa a minha herança, a minha divisa.
Aceitar do novelo a linha, um catálogo
dos nomes, datas, barcos que me levam
para atrás das promessas e do esquecimento.
O tal sujeito vai contigo até a torre
de tiro. Daí em diante terá que ir sozinha.
Numa semana ou duas as coisas podem
mudar. Em Bigsweir procure por Kelpie
e não deixe que um tal de Mr. Wren
te veja, senão tudo vai por água baixo.
Não mandarei nenhum telegrama ou qualquer
coisa do tipo. Toda batalha, eu sei,
é perdida e se ainda penso ou falo
algo é só para confirmar que sigo
dentro do incêndio, avançando pela parte
mais superficial do dia, sem olhar
para trás à procura de pistas ou marcas
do que achamos que ainda é nosso.
Faz mais de um ano e nada. Para todos
os efeitos ninguém se lembra de você.
Algo mais? Ótimo. Agora pode ir.
Quando lembro da minha outra vida,
a que não foi secreta porque nunca
correu o risco de ter sido o oposto disso,
penso num carro de retrovisor partido
lançando-se urgente por estradas,
avenidas, cidades, crianças, canções.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A escrita do eu no tempo da indiferença





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Resenha publicada em 2006 no Forum Virtual O que é literatura - PACC/UFRJ

http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/resenhas_escrita_eu_indiferenca.php

I



Para “narrar” uma grande parte da odisséia intelectual e existencial que é a dilacerada história do eu na cultura do Ocidente, o professor e escritor Ronaldo Lima Lins relê, em seu décimo livro – A indiferença pós-moderna (Editora UFRJ, 2006) –, alguns dos nomes mais representativos do cânone formado em torno desse “eu trincado”, ou dessa escrita do “eu diante do eu”, como criativamente cognomina o autor.



Essa releitura feita pelo autor conecta atos políticos e históricos; sintoniza reflexões acadêmicas e produções estéticas; associa fatos sociais a discursos subjetivos de diferentes contextos e áreas da criação e do saber (Literatura, Filosofia, Teoria, Cinema, Pintura, Arquitetura...). Nessas conexões, o autor remete à era clássica, à instauração da democracia e à criação dos fundamentos da educação. Além disso, ele elabora uma crítica à alienação produzida pelo sistema capitalista; detona a “ausência de qualidade” das vanguardas do início do século XX; lê a universidade como “pólo de reflexão” e investiga, dentre outros temas complexos e contemporâneos, a subjetividade bélica deste início de milênio globalizado.



Nesta releitura da narrativa do “eu trincado”, o autor traça um roteiro que parece dar mais atenção ao período que vai do século XVII ao XX, com bastante ênfase para os “personagens” e “as ações” do século XVIII. Neste período, o saber é lido como um “instrumento de percepção”. É também nesse contexto que a esperança de justiça social inscreve-se como utopia, e os mais corajosos, a exemplo de Rousseau, iniciam a aventura do mergulho interior. Nestes cenários dos setecentos, fica claro, os sentimentos cedem, cada vez mais, lugar às ideologias.



Com base nos diálogos que empreende entre as formas artísticas e culturais e as idéias produzidas nesses séculos, o autor constrói dessa dimensão temporal uma leitura subjetiva onde a consciência corpórea ganha uma moderna visibilidade: Alguma coisa no século XIX, dramático nas suas dores, chegava aos ossos e se mostrava insuportável. É o que afirma o autor no texto que abre “o tríptico da identidade moderna”.



Muito desse drama que se instaura nessa metáfora da forma óssea pode ser lido nas páginas de alguns dos ícones intelectuais e estéticos para os quais o autor vem há anos direcionando suas lentes. São, portanto, esses ícones, os nomes mais representativos do “cânone” particular do autor, e que fundamentam A indiferença pós-moderna: Rimbaud, Rousseau, Kant, Hegel, Sartre, Camus, Malraux, Baudelaire, Benjamin, Lukács, Adorno e Hannah Arendt, dentre outros. O intertexto com a “letra” e as idéias desses autores possibilita a Ronaldo a tessitura de reflexões que tornam fluída a leitura deste ensaio onde nem a leitura dos olores nem o 11 de Setembro ficam de fora.



Assim, o autor conecta – em seus ataques à obscuridade, à alienação e ao caos –, os estratagemas produzidos por Dona Razão (Nada seríamos sem a razão do século XVIII.). Além dessas conexões, ele traz para o seu corpus as sincronias críticas produzidas a partir de procedimentos irônicos, e não deixa de registrar o diálogo entre as atitudes históricas e as formas do imaginário cultural.



II



A literatura ganha um bom espaço em A indiferença pós-moderna. Pela recorrência aos nomes de Paul Auster, Amoz Oz e Coetzee, por exmplo, dá para entender porque, dentre as formas literárias analisadas, o romance é lido como gênero aparentemente mais promissor do que a poesia. Apesar disso, são as formas poéticas e a vida do visionário poeta Rimbaud quem mais espaço ganham no texto inicial – “o escuro”.



É com clareza que Ronaldo Lins lê a inscrição moderna do poeta das Iluminations na nossa tradição literária e comportamental, a ponto de escrever a seguinte assertiva: ...o século XVII não podia gerar Rimbaud. Do texto de Rousseau, o autor de O Felino Predador (2002) ouve os tons filosóficos na narrativa literária por ele escrita, e lê em suas “paisagens” internas a “coragem solitária” de quem transita entre o luxo e a miséria às vezes gerados pela falta de interlocução. Isso, com “a vantagem de dispor de si próprio”.



Na leitura que empreende do recolhimento de Rousseau, Ronaldo vê no refúgio individual e nos mergulhos subjetivos do autor de Les Confessions uma manifestação contrária às tensões que o cenário burguês começava a provocar no reluzente século XVIII. Entre as luzes e sombras dos "cenários em ruínas" contemporâneos, A indiferença pós-moderna é um texto muito distante dos escritos oriundos das trevas da Idade Média, quando o perdão e a caridade davam “ibope”; quando a igreja ditava a sua narrativa divina como modelo de sabedoria e verdade.



Tendo como objetos de reflexão a indiferença e o individualismo contemporâneo, afirmados através da ideologia científica, o autor lê a retirada da morte na cena moderna e desta empreende uma leitura através da qual evidencia sua inclinação para outros modos de celebrar a vida. Nessa crítica da modernidade são também evidenciados os “dispositivos humanos”, como a simpatia e a amizade atrofiadas pela era moderna. A crítica inclui também os princípios subjetivos desta era que, apesar de ser reconhecida como ambivalente e brutal, é também, segundo o autor, “marcada pelo encantamento da utopia” (?).



Através de tais princípios, o autor constrói uma crítica ao ritmo veloz da contemporaneidade e às suas poucas possibilidades de criar estruturas. Segundo o autor, há um ritmo para que o pensamento se estruture. Ultrapassado um limite, a inteligência se debilita, rateia, não funciona. Escritor de um tempo avesso às transgressões, Ronaldo mune-se de ironia e reflexão, mesmo quando mergulha na esfera dos afetos ou quando transita pelo universo entrecortado de silêncios da teologia. Embora o amor e o misticismo, o amor e a fé dialoguem na leitura desta Indiferença..., seu autor sabe habitar um espaço de demolição e crítica. Neste contexto, a indiferença reluz em meio a uma “nova solidão”. Esse sentimento constrói-se a partir da maturidade intelectual de quem leu em Platão a difícil lição do encontro entre a ação e a teoria.



Apesar do mal estar que essa consciência possa gerar, é alentadora a leitura do mestre: a angústia sempre alimentou o movimento para frente. Fala de quem sabe que o tempo da “procura” não acaba. Principalmente depois que ele, o autor, reagiu (e venceu) àquele assaltante carioca cuja indiferença, ao invés de paralisar, intensificou a escritura movente que é A Indiferença pós-moderna.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os abismos da pele e as superfícies da alma

Uma versão deste texto foi publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 05 de Fevereiro de 1999





os poetas Celso da Silveira e Eli Celso


INCIDÊNCIA
Para Eli Celso

Um sol de sal
tão vertical
sobre meus dias.
...

Myriam Coeli



Nenhum poeta potiguar publicou tanto em 1998 quanto Eli Celso. Primeiro ele lançou Ensaios Minimalescos, pela Boágua Editora, batizando de João Antonio Cajado Botelho seu irônico e bem humorado "quase heterônimo". A "ironia amarga" deste João, segundo o próprio Eli, estaria inscrita no último guru de uma linha cuja sucessão inclui autores como Hume e Cioran, dentre outros.

Em seguida, Eli Celso lançou Não & círculo - texto incluído no volume Ceia das Cinzas, um livro publicado com os poetas Iracema Macedo e André Vesne. E, por fim, veio a público Reminiscências do Tártaro, texto escrito na década de 80, incluído num livro em parceria com Celso Boaventura Jr e suas Lamentações.

A esses três títulos lançados em 1998, some-se o texto “Labiríntica ou cidade delenda!” - belíssimo escrito em prosa dedicado a seu pai, o escritor Celso da Silveira (vide vídeo), e publicado em Range Rede (Revista de Literatura, Rio de Janeiro, nº 3, 1998). Nesta revista, o poeta potiguar integra um elenco de peso, onde destacam-se autores como Benedito Nunes, Merquior e Dario Restrepo, neste número especialmente dedicado a Jorge Luís Borges.

Além dos três títulos acima mencionados - Ensaios Minimalescos, Não & Círculo e Reminiscências do Tártaro -, a bibliografia de Eli Celso ostenta outra tríade de publicações: Elogio das Figuras Borradas (1991), Vale Feliz (1991) e Rua do Coração Perdido (1995). Este último livro, incluído na coletânea Gravuras foi, juntamente com Vale Feliz, lançado com a participação de Iracema Macedo e André Vesne (o poeta Celso Boaventura também participa da coletânea Vale Feliz). Para 1999, Eli planeja iniciar a escritura de sua tese de doutorado em Literatura Comparada (UFRJ), além da publicação de Driftings, Rotations e Translations - livro com poemas em inglês, a ser lançado pela editora Boágua.


No horizonte da poesia



Natal
Sem aura nem ideologia, a poética de Eli Celso não distingue temas nobres ou menores. Diz o poeta: Estou sempre me colocando fora das distinções maniqueístas de sagrado x profano. As coisas são o que são, dê-se o nome que se quiser a elas. E como o algo que são, não deveriam ser discernidas. Esse trânsito indiscernível pelo universo da palavra permite uma pluralidade de leituras. Dos aspectos da virtualidade às minúncias concernentes ao universo das pulgas; do martírio colorido de Frida Khalo aos mares de Jasão; das reminiscências da bisavó Dondon às prostitutas de Maxaranguape; tudo pode ser estetizado no poema deste exímio leitor de Murilo Mendes e Myriam Coeli - mãe do poeta, e autora dos seguintes livros de poesia publicados na década de 1980, em Natal: Vivência Sobre Vivência, Cantiga de Amigo e Inventário.

Herdeiro dessa "vivência" poética, cuja "incidência" solar verticaliza o sal, a cal, o vento, o sangue, a sombra, Eli produz uma "letra" cuja estetização parece ser mediada por uma linguagem que sonoriza os abismos da pele e as superfícies da alma. A produção dessa linguagem alegórica diz muito das formas do deserto e das paisagens eletrônicas habitadas por imagens velozes. De olho nessas figurações mutantes, o poeta anuncia que algo se prepara na Rua do Coração Perdido:

E queria dizer que algo se prepara,
que a metamorfose
ruge e fia,
que a metamorfose
lã e zela.
Faz cera e cala.
Asa.
Zera.


O poema de Eli é construído sem catecismo teórico nem bula vanguardista. Nele, podemos ler uma intensa intimidade do poeta com o signo verbal e suas nuanças. Sua poética ostenta um visível apreço pelo trabalho com a sintaxe, além da presença dos procedimentos da re-leitura da tradição literária, da reminiscência e da ficcionalização da memória.


Esta poética sugere um leitor que, a exemplo de Borges, recria a existência, confundindo os limites entre a memória emocional de quem lê e as figurações do memorial produzido pelo contexto sócio-cultural. O poeta transforma em arte esse manancial - as memórias, as leituras e as cidades. Para isso, ele cataloga potências e patologias que confundem a memória, e reconhece uma imagética de cidades recentes que sucumbem às cidades da memória. Essa estetização memorialística inscreve-se em textos como “Primeira visão”, de Reminiscências do Tártaro:


...na jornada
Das minhas dúvidas, que cruzam
Por pontes
Repletas de memórias



Izmir


Também o eu poético de “O globo líquido”, do livro Não & círculo (1998), aviva o fio memorial. Esse fio parece perpassar toda a poética de Eli Celso, erguendo-se do pó memorialístico à forma estética, através da poesia: a memória se arranja/ em alvéolos de barro. Outra característica marcante desta poética é a pluralidade de eus estetizados. Eus que atuam, de formas múltiplas e alternadas, pelos abismos da pele e nas superfícies da alma. São eus que celebram a alegria da carne letrada e a melancolia dos sorrisos no motim de homens de gesso.

Nos livros do poeta percebe-se estes eus que, descentralizados, evidenciam o outro na busca de inscrição da diferença. Esses eus profundos e de superfícies parecem abrir mão da internalizada postura dos românticos e dos que, intitulando-se “modernos”, sequer enxergam aquele outro interno, seu duplo, que o habita. A poética de Eli celebra a mutação da alteridade, poetizando seus motivos mais inusitados. Exemplo disso são o eu poético de “Sombras, ó Tu...” com sua audível tonalidade religiosa, o "narrador" rebelde e bem humorado de “O Clitóris da História”, o eu lírico e amoroso de “Uma estrada de coisas mortas”, e a dicção filosófica da voz narrante de “Perpendicular”, como podemos ler nessses textos que compõem o volume Não & círculo.

Estetizando vários eus (diferentemente daquele autor cujo texto repete ad infinutum uma mesma voz), Eli fabrica um polifônico horizonte ficcional onde o fingimento literário é urdido de forma a recriar várias personas. O leitor ama essa polifonia que possibilita, a cada poema, uma outra voz. Ela torna-se viável porque o poeta, sedimentado num catatau de leituras, lança mão da própria literatura como instrumento de criação. Mestre em Tecnologia Educacional, com Licenciaturas em Matemática e Física, e com trânsito pela Medicina, o poeta domina um bom arquivo de formas, e ordena um utópico espaço existencial em meio ao caos que nos circunda.


O poema a seguir, do livro Reminiscências do Tártaro, deixa entrever alguns ângulos polifôncios deste horizonte poético. Nele, a matéria memorialística, a forma mítica e a luz apolínea dialogam inscrevendo o contexto estético e existencial de quem escreve e lê neste final de milênio.

Após peregrinar
Pela matéria inerme,
Nasci do útero de Leto.
E no Tártaro fiquei
Porque não sei.
Empurrei pedras, fiz ofício
De vazio, cuspi meus dedos
Desabados em conflitos
De meus fantasmas.
Todos os dias o sol me engolia.
Todos os dias se arredondavam mais as rochas.
Todos os dias eu repetia
O que nunca fazia igual.
Me fazia desigual, todos os dias.



Em Informação da Literatura Potiguar, o ensaísta e professor Tarcísio Gurgel refere-se ao poeta Eli Celso da seguinte maneira: "Bastante culto, utiliza-se anarquicamente de sua formação filosófica para chegar ao osso da indagação poética. Além disto, usa com habilidade a ironia para demonstrar como encara as alternativas de jogar o jogo da vida numa sociedade nada lírica."



terça-feira, 14 de julho de 2009

De ouvido atento ao redor










Texto publicado na Revista Suíte Rio, ano 3 . n 12 - Rio de Janeiro, abr/maio, 2006


Pop, cult, eclética, pós-moderna. Esses são alguns dos adjetivos com os quais a cantora carioca Marisa Monte foi saudada pela crítica, em 1989, ao lançar um vinil intitulado com o próprio nome, depois de divulgar as canções numa intensa relação com o palco e o público.

Nesse primeiro trabalho, ela inovou ao optar pela noção de multiplicidade. Mostrou-se à vontade ao entoar gêneros e ritmos díspares – samba, pop, jazz, xote, rock –, e já sinalizava a diva que viria a ser na década seguinte, quando inscreveu-se como intérprete da poesia urbana e contemporânea de Arnaldo Antunes (“Comida”, “Flores”, “Alta Noite”...), e depois como compositora no CD Mais.

Esse talento para compor ficou cada vez mais audível nas cinco das treze canções que compõem Verde anil amarelo cor de rosa e carvão. Considerado um clássico de nossa música contemporânea, este CD de 1994 tem participações de Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Laurie Anderson e Época de Ouro, dentre outros, e nele Marisa canta “Ao meu redor” – uma bela canção na qual Nando Reis, ainda como membro dos Titãs, inscrevia sua marca diferencial. Entoados, portanto, desde o século passado, os sons e as imagens que estão ao redor da cantora continuam a dar o tom da sua trilha. Prova disso são estes dois CDs solos, que vêm à luz após a maternidade de Marisa, e cujos títulos sugerem um diálogo entre os seus roteiros estéticos e existenciais: Universo ao meu redor (sambas) e Infinito particular (pop).


As formas demoram


Ao contrário da maioria dos artistas que demarcam os prazos midiáticos de seus lançamentos, Marisa demora na produção de sua obra. Ela sabe que a construção das formas artísticas e culturais requer tempo e maturação. Enquanto geram seus ritmos, suas imagens e rimas, as formas demoram na construção do diálogo entre o espaço e o tempo. Isso demonstram as 27 canções que agora vêm a público após Crônicas, memórias e declarações de amor, de 2000. Entre essas duas safras-solo, Marisa produziu trabalhos de antigos sambistas; produziu também o CD que gravou em parceria com os tribalistas em 2002, quando mergulhou no nosso imaginário afetivo. Nesse mergulho, fez o país inteiro resgatar a sua porção lúdica e entoar o fato de ter como melhor amigo o próprio ser amoroso ("Velha Infância").

Parir fez bem à cantora. Sua voz está cada vez mais leve. Seus timbres e nuanças imprimem uma cadência particular às canções; e ela arrasa na viagem que faz, por exemplo, no “Bonde do Dom” e em “Satisfeito” (belíssimos sambas em parceria com os tribalistas Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown). Essa cadência é também audível na interpretação de sambas como “Três Letrinhas” (Moraes e Galvão, de Acabou Chorare, 1971) e “Vai saber?” Nessa última canção, Adriana Calcanhoto celebra sua fé na dúvida e na linguagem contraditória dos amantes, e cria um universo musical onde ressoa a precisão marítima de Caymmi e a suavidade vocal de João Gilberto. A canção é um marco.

Para construir a sua cadência marcante, Marisa capta e recria a “atmosfera do samba”, através do diálogo com a Velha Guarda de escolas cariocas. Para reciclar o pop, a cantora opta pela competência melódica (“Pra ser sincero” e “o rio”), audível nos arranjos de Philip Glass, Eumir Deodato e João Donato, e nas composições de seus parceiros mais recorrentes: Arnaldo e Brown.

Fã de estúdios, gerânios e eletrodomésticos, a cantora alia a seus projetos estéticos o domínio técnico e vocal, o ecletismo de um repertório que não pára de se reinventar e uma excelente recepção pública. Coisas de quem ouve como reza o barulho do rio, e de quem assume ir aonde a leva sua voz. Materializada em sons e sins, ela (en)canta um universo particular onde “a alma aproveita pra ser a matéria e viver”.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Surto com rajadas de água lusa



















Uma versão deste texto foi publicada em março de 2009 em:
http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=3&type=5&id=522



Com capas coloridas e título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa (2009), de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, a obra narra um surto psicótico da autora, e tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície no qual vivemos, onde a memória e o referente ganham uma importância antes creditada apenas ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:


Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.


"To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. A narrativa é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nele, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras, cancela shows, visita hospitais. Surta com a lucidez e os roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.


Em sua viagem lusa, a autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas, as cenas midiáticas e as figurações contextuais ao seu redor, ela contata uma dimensão psíquica antes relacionada à loucura. Hoje, o contato com essa dimensão é cada vez mais administrado no meio social, seja através do uso de pílulas ou por meio da criação de siglas como TOC e outros transtornos mentais (será mesmo verdade que, ao nomear, o homem perde o medo do que desconhece?).


Como nas canções, a escrita de Adriana Calcanhoto possui leveza e humor – ingredientes raros em nossas letras geralmente comprometidas em representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir, sentir prazer, pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro. Diz muito da nossa condição doída, das identidades em trânsito nesta primeira década do milênio. Mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”
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Toda criação requer uma ruptura com a ordem vigente. Concluída a leitura deste livro, lembro de Nise da Silveira e do seu Museu do Inconsciente. Lembro também de Van Gogh, Gauguin, Byron, Tolstoi, Antonin Artaud, Schummam, Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário... São tantos os nomes, na história da arte e da cultura, que ultrapassaram os limites do que chamamos normalidade... Haveria nesses criadores e na própria Saga... de Adriana alguma centelha daquela espécie de "loucura divina" que Platão lia como fundamento de toda criação?


domingo, 12 de julho de 2009

"Minha música não quer pouco"



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Entrevista publicada na Revista Suite Rio, ano 2 - n 9, Rio de Janeiro, 2005



“Minha música não quer pouco”. Com esse verso, a cantora e compositora Adriana Calcanhotto finaliza o cd A fábrica do poema, e inscreve um dos seus lemas. Conhecida nacionalmente a partir dos anos oitenta, ela é autora de outros cultuados títulos da nossa música, como: Senhas, Maritmo, Público, Cantada e, dentre outros, Adriana Partimpim. A ótima recepção desse último cd motiva o atual show da cantora, cuja direção ela divide com Hamilton Vaz Pereira e Leonardo Neto.

Ouçamos a seguir a moça, cujo canto – cosmopolita e contemporâneo – faz parte da trilha sonora de um tempo no qual a arte e a cultura de massas, a raiz e a antena, a infância e a maturidade, dialogam sem subordinação. Sobre Partimpim, a passagem do tempo e a conexão com as artes, a artista lança aqui o seu olhar, cuja visão traduz uma das “letras” e vozes que mais expressam a cultura e a subjetividade produzidas neste início de milênio.


NG – Para criar seu heterônimo Partimpim, você dialogou com nomes como Hokusai (ilustrador japonês) e Fernando Pessoa (poeta português). Qual é a contribuição desses artistas para a sua criação atual?

AC - É enorme. Suas relações com seus outros, seus desprendimentos quando se transformam em outros, tudo isso foi e é muito rico para mim.


NG – Seu “piston cretino” é um dos “personagens” que mais se destacam neste show. Gostaria que falasse sobre a criação e a utilidade desse instrumento.

AC - Esse é um dos instrumentos criados por Walter Smetak (1913-1984) e que, segundo ele, é o único instrumento que inventou onde não procurava um som nobre e sim algo engraçado e infantil. Construímos o Pistom Cretino para o show a partir das instruções de Smetak e eu adorei fazer isso, adoro qualquer tipo de proposição na linha “faça você mesmo”.


NG – Quais são as diferenças entre o público de Adriana Calcanhotto e a platéia deste show “Adriana Partimpim”?

AC - Do ponto de vista etário, o público Partimpim atinge um espectro muito maior. Na platéia tem crianças, velhinhos, adultos, tem de tudo. Esses públicos diferentes reunidos num teatro se auto-contaminam e o resultado é encantador.

NG – "Encantador" é o diálogo audível em seu trabalho com os múltiplos campos da arte. Principalmente com o artista plástico Hélio Oiticica e com os poetas. Poetas de diferentes contextos e estéticas, como: Antonio Cicero (“Água Perrier”, “Inverno”, “Pelos ares”), Waly Salomão (“A fábrica do poema”, “Remix século XX”), Mário de Sá-Carneiro (“O outro”) e, dentre outros, Ferreira Gullar (“O ronrom do gatinho” e “Dono do pedaço”). Gostaria que comentasse a sua relação com as outras artes, a poesia e os seus parceiros.

AC - Sempre tive dificuldades para respeitar as fronteiras entre as linguagens, nunca achei que isso funcionasse ou mesmo existisse na prática. Sou sinestésica e acredito que todo artista, em maior ou menor medida, também o é. Gosto de me deixar impactar por autores e inventores de qualquer linguagem e me deixo permear por eles quase como um exercício de aprendizagem, de humildade e de poesia.

NG – Num desses seus "exercícios" estéticos e existenciais, você teve uma sacada genial: relacionou a passagem do tempo à perda das certezas. E os ganhos? Haveria algum em amadurecer?

AC - Amadurecer é ganhar. Perde-se a juventude, as certezas vão-se embora, mas ganha-se experiência, rugas, peso e alguma autoridade. Hoje em dia, quando alguém me pede algo que considero chato ou absurdo eu digo – não posso fazer isso, sou uma senhora – e ninguém ousa retrucar, rs,rs.

NG – A idéia do heterônimo é ligada às noções de pluralidade, de multiplicidade – conceitos que têm muito a ver com as identidades deste contexto. Quais cores, imagens e palavras você usaria para pintar um painel do seu tempo?

AC - Acho que pintaria um painel como um borrão de algo que passou em alta velocidade, e usaria todas as cores. O tempo em que vivemos parece ser o mais veloz que consegue ser e mesmo assim anseia por mais rapidez. Eu gosto dessa idéia, mesmo com seus exageros e com o nível de superficialidade que parece predominar; prefiro o privilégio de viver em um tempo assim do que num tempo de marasmo. É bem verdade que não temos muitas alternativas já que as mudanças que precisam ocorrer têm de se darem rápido antes que o planeta seja exterminado.

NG – Partimpim é um sopro de vida nas imposições feitas pelo mercado globalizado. Em que sentido esse sopro alcança Adriana Calcanhotto, a outra?

AC - Nesse momento, quando tenho eventualmente que lidar com alguma coisa do trabalho Calcanhotto, sinto que há mais frescor, parece ser uma grande novidade pra mim e acho que isso é muito bom. O próximo trabalho Calcanhotto estará fatalmente marcado pela experiência Partimpim, principalmente no que diz respeito ao que posso obter dos músicos em suas performances em termos de liberdade e humor, e também em relação a mim. Acho que adquiri uma soltura maior como performer. Em relação ao mercado vi que mesmo sendo muito difícil é possível furar alguns bloqueios ainda que um projeto como este seja apenas um grãozinho de areia.

NG – É possível que outros heterônimos (“uma segunda pele”) venham a conviver com Adriana Partimpim?

AC - É terrívelmente provável, rs,rs....






sábado, 11 de julho de 2009

Macondamérica: cidade-continentexto




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Resenha publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 23/09/1998

Em Macondamérica - a paródia em Gabriel Garcia Marquez (Ed. Leviatã, 1993), a profª. e ensaísta Selma Calasans Rodrigues analisa a obra do escritor Gabriel García Marquez por um enfoque paródico. Para realizar sua empreitada, a autora re-lê, além de outros textos, o texto bíblico, as Crônicas da Conquista da América e o mito de Édipo. Segundo ela, esses textos estruturam a narrativa de Cem anos de solidão.

O livro de Selma divide-se em 4 capítulos. No primeiro, “Autoparódia na formação da obra”, a autora analisa as fases da produção de García Marquez e os procedimentos utilizados na construção do seu texto (principalmente a autoparódia e os intertextos que o autor mantém com escritores como Kafka, Hemingway e Faulkner, dentre outros). Neste capítulo, Selma sugere que no estudo da obra de GM sejam incluídos os contos de Ojos de perro azul - textos denominados pelo escritor Vargas Llosa de “pré-história morbosa”. Selma discorda deste autor colombiano, alegando que estes primeiros textos de GM ainda jovem e que têm a morte como tema recorrente, são fundamentais para a compreensão do seu desenvolvimento posterior.

Cem anos de solidão: Ficção das Índias” - o 2º capítulo de Macondamérica, rastrea os textos das Crônicas da Conquista da América no romance. Texto sedutor que lida com questões como “mestiçagem: ideologia e discurso”, este capítulo impulsiona o ritmo da leitura do livro ao analisar nossas origens latinas. Esta parte do livro revela também a clareza com que Selma dialoga com outros saberes, além da literatura, como a história, a antropologia, a religião, a sociologia, a estética...
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Criticando a discriminação do Positivismo, em relação a excelência das raças puras, ressaltando os fatos que motivaram uma nova visão das Américas (a 1ª guerra, as vanguardas européias, a revolução mexicana), atentando para a carnavalização bakhtiniana como estética identificada com o discurso latino-americano e relacionando alquimia e literatura, Selma ressalta nossa “vocação antropofágica” (O personagem José Arcadio, sabemos no final, “foi antropófago”) e explica o porquê de um século solitário. Ainda neste capítulo, a autora discorda de Graciela Maturo, que tenta associar a obra de Gabriel Garcia Marquez a “uma filosofia cristã” e ao discurso alquímico. Diferentemente de Graciela, Selma lê o texto de Gabriel Garcia Marquez numa crítica perspectiva alegórica, o que possibilita múltiplas leituras da narrativa.

Revelando ser Cem anos de solidão estruturado a partir do texto bíblico, Selma enumera em “Macondo: do Gênese ao Apocalipse” os mitemas bíblicos que compõem a narrativa de Gabriel Garcia Marquez. Ao ler a inversão paródica operada pelo autor, Selma Calasans discorda novamente de Graciela Maturo que, num estudo sobre o mito em GM, apresenta posição oposta; isso porque a leitura de Selma utiliza-se do mito enquanto significante lingüístico e não como uma “crença”.

O 4º e último capítulo - “O mito de Édipo” - traça um histórico desse mito por um prisma antropológico e psicanalítico, através do qual a autora analisa o caráter simbólico da linguagem. Trabalhando com idéias do tipo “duplos paródicos”, e estudando as relações entre “matriarcado, machismo e dependência”, a autora analisa a família Buendía como núcleo fechado em si próprio, numa intensa relação incestuosa. Segundo Selma, o mito de Édipo ...cumpre sua função ao aludir a uma crítica global da História do Continente, pois levanta o problema da sua dependência política, do esquecimento fundamental das origens e do fechamento “incestuoso” ao resto do mundo, também não desejável.

Na década na qual o Brasil e a América comemoram datas tão significativas, relacionadas a seus descobrimentos, nada mais instigante que a leitura de um texto que, desvelando as origens, as formas e leituras do continente, revela para seus filhos a possibilidade de criação de sua identidade através de uma linguagem própria.
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Neste espaço no qual o sujeito busca eternamente respostas para sua solitária condição política e humana, resta a lição visionária dos conquistadores, cujas mentes eram estimuladas pela leitura - ação a que este livro de Selma Calasans nos impulsiona, através da interpretação de um continente cuja forma espelha seu conteúdo. Neste sentido, são as senhas de Macondamérica um topos desejante para quem lê. E principalmente para quem vive por estas plagas.