sábado, 4 de julho de 2009

Dicionário na estante de poesia















Resenha publicada no Suplemento Literário ano 38 / n 1268
Belo Horizonte (MG), Maio 2004


Dos dicionários, nada do ritmo linear que os caracterizam, mas as “formas breves” que os inscrevem. Da poesia, um pouco da forma; muito da madureza requerida no trabalho com a porção significante da linguagem. Da prosa, alguns lances sintáticos e o ritmo coleante. É assim Dicionário Mínimo de Fernando Fábio Fiorese Furtado: um livro repleto de trapaças estéticas – alegorias bem humoradas e de múltiplos tons -, construídas em cima dos códigos da cultura e dos signos da linguagem. Essa subversão estética e histórica, sabemos, é uma das forças motrizes das boas obras de arte, desde a modernidade.


Essas trapaças e simulações modernas, remetem a autores como Jorge Luís Borges, cuja obra subverte - de forma cínica e bem humorada - os códigos da arte e da cultura. Essa subversão não é gratuita. Ela diz muita da identidade latina num mundo mensurado pela nossa condição periférica. No Dicionário de Borges, por exemplo, o poeta argentino assume por que, dentre os demais gêneros literários, prefere a Enciclopédia. É bastante conhecida a leitura borgeana dessa forma que copila o saber como “gênero” literário. O sonho e o diálogo também são lidos pelo poeta de Fervor de Buenos Aires como “gêneros”; o que, convenhamos, torna mais interessante a leitura, e convoca sua excelência, o leitor, com todo o seu repertório estético e cultural. Por essa lente poética e platônica, Borges faz uma leitura insólita do livro e do labirinto como metáforas do universo – essa imensa biblioteca, cujas estantes de poesia acabam de receber este Dicionário... de Fernando Fiorese – poeta e ensaísta com doutorado em Semiologia pela UFRJ, e professor da UFJF.


"A ideía de um dicionário perfeito é
absurda, pois os matizes da alma
humana são inumeráveis"

Jorge Luís Borges (1899 - 1986)

Depois da excelente recepção crítica do seu vigoroso Corpo Portátil (2002), Fernando Fiorese nos brinda com um texto que, ao desautomatizar o real e expor suas cáries e fraturas, requer um leitor aparelhado para truques e desvios. Eles começam pelas orelhas do livro. Assinadas por um típico decano das antigas, elas ostentam uma “grandiloqüência vocabular” que pode ser mensurada na leitura de termos e expressões como, por exemplo, “função parlatória”, “prolóquio”, “encômios” e “opúsculo”.
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Uma outra sonoridade, mais leve e elegante, é audível na medida em que o leitor troca o “surrealismo” da orelha pelo moderno recorte vocabular do poeta. Borgianamente falando, este Dicionário... leciona que, no terreno da autoria e da paternidade, paira sempre alguma sombra que indaga; o que nos induz a desconfiar de alguns trechos sólidos e lineares, do próprio livro, e de suas referências – sejam elas um catálogo americano sobre uma marca de cadeira dos anos 20, ou as próprias orelhas do referido volume. Alguns dos verbetes e das imagens que o compõem, são recorrentes na poética do autor. É o caso, por exemplo, do verbete “espelho”, artefato que constitui-se num dos principais temas da poética de Borges, sendo lido pelo autor de Ficções como algo temeroso, "monstruoso". Filiado a essa leitura borgeana, Fiorese vê e inscreve o espelho como um “assassino suave”; e essa visão remete-nos ao “Espelho enigma em punhal”, de Corpo Portátil, onde Narciso desiste de si e mergulha no informe alheio e luzidio.


De olho nos “ossos” de alguns mitos que engendram a poética de Fernando Fiorese, percebemos que algumas imagens e palavras parecem bem mais acesas e ganham melhor "ossatura" neste Dicionário... de 2003. Em sua travessia poética, o poeta e o verbo parecem transitar de mãos dadas, ou passear de “bicicleta” de um livro para outro. Exemplo concreto dessa lúdica imagética da travessia que habita os dois últimos livros do poeta é a “Torre”. Esse denso verbete constrói-se a partir das formas da carta e do poema, e ainda vem acompanhado de uma nota de pé-de-página. No trecho em prosa do referido verbete, lemos:


“...a torre aniquila qualquer geometria, qualquer curva, qualquer reta, para afirmar-se como ponto de vigia. A torre não dialoga nem com o horizonte... A torre é monológica, intransitiva, inabitável para quem tem olhos. A torre é uma forma que só interessa quando abolida...”


Não seria essa torre-verbete (repleta de visibilidade) a mesma “torre abolida ao primeiro acorde” (ave sonora) que ouvimos no poema “Durvalino, dançarino imóvel”, de Corpo Portátil? Dos versos desse livro de 2002 aos verbetes do Dicionário Mínimo, de 2003, alguns vocábulos ganharam visivelmente em madureza. É o exemplo da palavra “queda”. Transformada em verbete, ela aciona aqui a sua "vocação" divina inscrita desde o Gênesis: “Foi uma esfoladura no joelho de Deus. Ainda quando decai, nos domina”. No livro anterior, uma queda seduz o pequeno acolhedor de anjo...


Borgeanamente falando, todo autor está fadado a escrever um mesmo e único livro, ad infinitum. Isso assusta; isso assombra e assalta. Daí, “o assalto” da “palavra” e a “compilação de assombros” que inscrevem este Dicionário Mínimo – belo volume de poemas - verbetes. Para qualquer estante de letras.