sábado, 18 de julho de 2009

As metamorfoses de Leminski


Uma versão deste ensaio foi publicada, em forma de depoimento, na Revista Terceira Margem Tese: poesia, UFRJ, Ano X, N 15, Rio de Janeiro, Julho-Dezembro, 2006



Em seu livro póstumo Metaformose, o escritor Paulo Leminski escolhe o poeta latino Ovídio como forma, e elege a figura de Narciso como modelo mitológico de narrador. A história de Leminski com Narciso e Ovídio é antiga. Em 1975, o narrador do Catatau já anunciara: Anarquizo Narciso [1]. ...Todas as águas são de humor lunático... Amores de Narciso, preciso: sair do espelho. Narciso, o ausente no lugar [2]. Como lemos ao mergulhar nesta Metaformose, o velho anúncio do Catatau cumpriu-se: saído do espelho, Narciso deixa de se ausentar. Além disso, o mito inscreve-se no espaço da exterioridade, numa imagética da alteridade, nas figurações da diferença.

A escolha do mito de Narciso sugere uma certa porção romântica do Leminski enquanto poeta; embora ele releia o mito de forma bastante diferente da narrativa original. Nessa releitura, a mitologia é utilizada principalmente como forma; não como algo a partir do qual se postule a inscrição de uma verdade ou a defesa de algum discurso ideológico.

Narciso narrador personifica a leitura de um mito às avessas. Um Narciso de outra forma. Como figura mitológica que transita no território da lírica – suas luzes e sombras –, contemplamos aqui um Narciso nublado; às vezes, clarividente. Apesar de morrer de sede ao beber sua própria imagem, é interessante observar como nestas águas e formas recriadas, o mito relê outras imagens. Nessa releitura, ele aciona sua própria lição original: centrar o olhar apenas em si sufoca, mata. Invertendo a narrativa original do mito, a re-leitura leminskiana estetiza uma outra ordem mítica: faz com que o Narciso narrador, ao deparar com a visão do outro, sua diferença, construa outras formas de olhar que o façam mover-se em múltiplas direções.

Ovídio é uma das direções estéticas para onde se move Leminski. Dizendo assumir várias formas, o narrador do Catatau cita o autor de Matamorfoses já na primeira página desse primeiro livro de Leminski: dos exercícios de exílio de Ovídio é comigo [3]. Mais adiante o leitor desse “romance-idéia” – subtítulo do Catatau – é provocado com a seguinte pergunta do narrador: Não somos os ossos de Ovídio?[4] Não é difícil responder a indagação do autor e perceber os ossos – as formas – de Ovídio na poética de Leminski. Vejamos como a herança do arquivo de formas da tradição – principalmente os signos do imaginário grego – influi na inscrição da letra do poeta [5]:

...A literatura latina é pálido reflexo da grega, com a qual mantém uma relação espetacular, de original para espelho. Virgílio já está em todo Homero e Teócrito. ...Ovídio é uns alexandrinos... Em literatura, é a forma que é social. É o elemento material transmissível, a concretude do processo criativo. As formas é que são o material herdável. E da literatura grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus ‘designs’ de texto. Seus programas. Seu ‘software’ morfológico. Suas configurações desejáveis...

Embora Leminski associe Ovídio a uns alexandrinos, quer dizer, a uma espécie de filólogo daquele contexto histórico e estético, é também através do autor latino que chega ao poeta paranaense a rica herança dos programas advindos dos gregos. Ao confrontarmos o início do longo poema de Ovídio, cuja argumentação inscreve pedras transformadas em pessoas, com o começo desta Metaformose, percebe-se que entre aquele poema latino e esta prosa-poética latino-americana existe muito mais intertextos e simulacros do que supõe nossa infinita fome de simetrias – sejam elas formatadas através do poema, do ensaio, da carta ou da prosa. Vejamos primeiro os versos das Metamorfoses [6], de Ovídio, e em seguida o trecho inicial da Metaformose [7] de Leminski:

Antes do mar, da terra, e céu que os cobre/ Não tinha mais que um rosto a Natureza:/ Este era o Caos, massa indigesta, rude,/ E consistente só num peso inerte...

(Ovídio, Metamorfoses)


Antes do Caos, da Terra, do Tártaro e de Eros, antes das potestades que pulsam nas Origens, tenebrosas potências do abismo primordial...

(Leminski, Metaformose)


Aqui, embora a movência da "letra" de Leminski esteja associada ao ritmo do poema de Ovídio, o recorte vocabular do poeta brasileiro ainda muda; difere do recorte utilizado pelo poeta latino. Mais adiante, Leminski radicaliza no seu processo de criação. Abdicando do procedimento da intertextualidade – herança típica da modernidade –, o poeta aciona a construção de um simulacro, aquisição do autor pós-moderno (a fabricação de simulacros nos campos da arte e da cultura se dá exatamente num tempo no qual o conhecimento é também produzido através de processos de simulação, como atestam as máquinas da era da informática). Em Metaformose [8], esse procedimento da simulação tem no início do poema de Ovídio seu espelho, sua forma:

Antes do mar e da terra e do céu que tudo cobre, um só era o rosto da natureza no mundo, aquilo que chamamos Caos, massa rude e indigesta, apenas peso inerte, desconjuntada discórdia das sementes das coisas.

Talvez motivada por essa visível herança formal, exemplificada no simulacro fabricado a partir do modelo, na apresentação de Metaformose a poeta Alice Ruiz pede para o leitor não confundir o texto de Leminski com o de Ovídio. Segundo a esposa do poeta, Metaformose seria a outra forma transformada por uma leitura. Uma interpretação ‘através das formas’ numa linguagem que também mudou [9]. Além de mudar a linguagem – que, assim como a forma e o sentido são também históricos e sociais –, o poeta optou também pela mutação da noção de gênero literário. Para criar a densidade poética do seu texto, o autor opera com a ruptura ao eleger a prosa como forma. Enquanto Leminski opta pela sintaxe coleante (Ana C.), da prosa, seu ritmo veloz, Ovídio utiliza-se, ao narrar suas Metamorfoses, do hexâmetro datílico – verso latino formado de seis células métricas chamadas dátilo[10].


A ruptura de gêneros e a mutação lingüística – patrocinadas por Leminski – apontam para a densidade poética dessa prosa onde os mitos e suas figurações projetam-se na mente do leitor com uma nítida sensação de velocidade. Essa rápida projeção mental dos mitos possibilita a reconstrução do signo lingüístico – uma das potencialidades inerentes do fazer poético – e a produção de imagens que articulam a criação de um sentido onde se lê múltiplos sentidos (ou a simultaneidade de todos os sentidos possíveis).

Na leitura que aciona de Metaformose, o poeta e compositor Arnaldo Antunes diz ser esse um texto inclassificável como gênero, e indaga: narrativa ou reflexão? poema em prosa ou ensaio? ficção ou texto didático?. [11] É possível que o exercício da ruptura de gêneros acionado pelo poeta que biografou Jesus faça com que o texto de Metaformose seja um pouco disso tudo que Arnaldo indaga. Para nós, trata-se principalmente de uma prosa-poética produtora de significantes, através dos quais a língua mais celebra e goza que anuncia o sentido.

Desde o Catatau (1975), Leminski sempre rompeu com a noção de gênero literário, e demonstrou sua predileção pelo monólogo. Metaformose (1994) é também um instigante monólogo, cujo título – desentranhado de um poema do próprio Leminski, feito nos anos 60 – já anuncia essa ruptura. A partir do título, o poeta re-constrói, assim como no Catatau, uma usina de signos, sons e formas; o que nos remete a uma pluralidade de significantes, como: meta, metáfora, morfologia, metamorfose, forma...

Dentre os poetas da chamada geração marginal, Leminski destaca-se como o autor mais sintonizado com os procedimentos da língua e com o uso da forma. Segundo ele, o poeta já nasce limitado por um duplo signo: a língua e um estoque de formas. Mas o poeta não faz disso um drama. Ao contrário: ele usa os limites, as crises do seu tempo e seus paradoxos como matéria-prima, como fontes de criação. O poeta transforma a crise em substância. De posse do arquivo de formas da tradição, ele rompe com a noção de gênero literário, simula estilos, recicla ditos, relê mitos e provérbios recriando a estrutura da língua.

Diferentemente do monólogo polifônico do Catatau, não há em Metaformose o uso da palavra-montagem ou processos de afixação ou justaposição vocabular, procedimentos estéticos também utilizados por autores como Guimarães Rosa. Metaformose é um texto no qual a concisão da linguagem, a pontuação dos períodos simples e a construção de pequenos parágrafos possibilitam o exercício da síntese e até de clareza, se comparado ao Catatau. Ao contrário da sintaxe brusca e cortante do seu romance-idéia, a construção sintática de Metaformose apresenta-se bem mais fluida.

Por meio dessa fluidez, Leminski salta de um mito para outro, de uma lenda para uma divindade, de uma fábula para um provérbio. Faz com isso desabrochar do mito, da lenda e da fábula a estrutura de sua narrativa. Nesses saltos, o poeta mergulha no vasto arquivo imagético de nossa imaginação e nas formas do imaginário grego.

A agilidade com a qual Leminski mergulha e salta de um tema ou de um espaço para o outro sugere a nossa perene necessidade de deslocamento e mutação. Essa necessidade pode ser configurada no desejo de um outro ângulo de visão, ou na vontade de uma outra forma perceptiva. Esse desejo de uma outra visibilidade ou percepção manifesta-se de várias maneiras. Uma delas, por exemplo, é quando o ritmo do espaço por nós habitado deixa de dialogar com a “percussão” e com os gestos do nosso corpo. Ou seja: quando a disritmia, a aspereza ou a falta de velocidade nos fazem perder o tom, é hora de acionar a nossa capacidade intuitiva e arquitetar, como nas artes marciais, outros golpes. É hora de mirar noutra direção; momento de voar para outro espaço. Como faz Perseu nas Metamorfoses. Ou como ensina Narciso nesta Metaformose.


NOTAS


[1] LEMINSKI, Paulo. Catatau. 1989. p. 123.
[2] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1989. p. 49.
[3] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1989. p. 13.
[4] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1989. p. 63.
[5] LEMINSKI, Paulo. Anseios Crípticos 2. 2001. p. 11.
[6] OVÍDIO. Metamorfoses. Cit. 2000. p. 35.
[7] LEMINSKI, Paulo.Op. Cit. 1998. p. 15.
[8] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1998. p. 29.
[9] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit. 1998. p. 08.
[10] OVÍDIO. Op. Cit. 2000. p. 25.
[11] ANTUNES, Arnaldo. 40 Escritos. 2000. p. 133.