domingo, 19 de julho de 2009

Eu sei que vou te amar

Uma versão desta crônica foi publicada no Jornalzinho do Sebo Vermelho, ano III, n 26, Natal, Dez, 1994

A assertiva Eu sei que vou te amar tornou-se internacionalmente conhecida a partir da década de 1960, quando Vinícius de Moraes e Tom Jobim compuseram, em 1966, a canção que se tornaria um dos principais clássicos da Bossa Nova. Em 1985, o cineasta carioca Arnaldo Jabor utilizou a referida expressão como título do seu oitavo filme.

Com Fernanda Torres e Thales Pan Chacon no elenco, o filme Eu sei que vou te amar teve o seu roteiro publicado pela editora Record, em 1986; e levou o prêmio Palma de Ouro de Melhor Atriz do Festival de Cinema de Cannes, também em 1986. Segundo a lenda midiática, a atriz - que não foi buscar o tal prêmio - seduziu o juri principalmente por causa de uma cena dramática na qual ela chora, come maçã e discursa próximo a uma geladeira aberta.

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Takes esquizos, tomadas literárias, planos afetivos



Tendo como cenário uma casa moderna projetada por Oscar Niemeyer, o drama de Jabor é extremamente psicanalítico e dialógico. Trata-se de um cinema com tomadas literárias, no qual o verbo conjuga-se como imagem, ritmo, ação. Podemos dizer que a linguagem verbal é a terceira personagem do filme. O diretor começou a fazer cinema por motivação literária; e sua formação estética inclui leituras de poesia (João Cabral), teatro (Brecht, Artaud) e ensaios (Walter Benjamin).

O roteiro do longa é simples: um jovem casal encontra-se, após três meses de separação, para uma prestação de contas afetivamente desfalcada e existencialmente produtiva. As palavras – fugidias – são o único meio de “fechar as contas”. Mas elas - as palavras - não dizem nem podem tudo nesta narrativa de takes esquizos e planos abissais que tentam fazer uma espécie de radiografia da mente apaixonada. Haja risos, lágrimas, gritos, perguntas, cobranças... Haja útero e colhão! Neste encontro, os discursos amorosos dos três (inclua-se o espectador / leitor) incursionam por vários planos do real e da imaginação; mergulham nas memórias em ruínas; adentram o universo do delírio.

Em Eu sei que vou te amar, o lirismo e a delicadeza são desamparados pela potência dos fatos. Os corpos e as almas misturam-se. Os gêneros e as consciências também misturam-se. A verdade vira uma "nojeira filosófica" inventada por monges punheteiros da idade Média. Saber o que é o ser da paixão vira fissura: há patologia na bondade? Obedecer faz pesar a consciência? Na desconstrução dos discursos e cenários afetivos, a beleza erige, mas faz desmilinguir. O corpo fala; às vezes urra.

Ele, que não suporta ser amado, mergulha num cartesianismo inconvincente, e manda esta: “... me separei de você porque te amava demais...” Ela, claro, foi à forra. Deu de mamar - o seu leite sagrado - para um executivo que encontra na rua, no dia da morte da sua avó. Ainda educada para ser uma esposa prendada, tinha “mania de ser feliz”. Foderam-se no final. Afinal, tal qual o sentimento amoroso em fragmentos, as palavras dilaceram. Edificam. Neste roteiro dramático, elas - as palavras - parecem concretizadas nos gestos daquele polvo contraído e pleno na praia final.

Segundo a poeta Ana Paula Oliveira, a imagem do polvo final sugere o sentimento amoroso, no que este possui de curvo, gosmento, indesgrudável, quando de posse do ser humano. Sugestão de quem lê Hilda Hilst e Ana C; pegada de quem mergulha fundo no universo dos afetos e nos meandros das paixões; mirada de quem adentra - bliss - o esplendor e os descompassos da linguagem. Porque, ao ser dita, a frase Eu sei que vou te amar inscreve, no ato de sua pronúncia, a ação futura que a assertiva anuncia: o amor no tempo presente.