quarta-feira, 1 de julho de 2009

A pele azul da modernidade







Texto publicado nO Jornal de Hoje, Natal, 01/06/1998


O que será que o jeans esconde.
Henrique de Sousa



Aos 125 anos o Jeans tem o que comemorar.
De tecido rústico que cobria barracas, ele passou a traje mais universal usado pelo homem. Antes disso, o Jeans serviu como tecido-teto, foi céu de barraqueiro. Tátil, colou-se azul às peles operárias e aos corpos de trabalhadores no exercício de tarefas árduas e de exigência física, sendo depois assumido pela juventude ocidental. Transformou-se em signo do ser livre. O seu uso apontava para o desvio, a ruptura perante os costumes, o comportamento como elemento crítico.
.
"De jeans e camiseta, cabelo preso, aos gritos de "pega, mata e come!", Bethânia já foi musa da esquerda, tempos do show Opinião." - Assim o escritor Caio Fernando Abreu descreve a cantora baiana que invade, com força e fé, o Rio dos anos 60. Desde então, o próprio Caio F. e alguns dos seus personagens usarão muito Jeans como acontece, por exemplo, na novela "Pela Noite" do livro Triângulo das Águas (1983). A aceitação do Jeans por tribos diversas diz de um tempo no qual a liberdade era uma calça azul surrada, desbotada - “a velha calça desbotada ou coisa assim”, como cantava o rei Roberto Carlos nos anos 70; e registra um jeito de corpo desde quando a sedução passou a ser entoada nas dobras do “índigo blue, índigo blusão”, como cantava Gilberto Gil nos anos 80. No universo pop, parece que os artistas nascem vestidos de Jeans. Parece farda: Beatles, Led Zeppelin, Bob Dylan, David Bowie ("Blue jean"), Michael Jackson ("Billy Jean"), a capa do primeiro Cazuza solo... Cantores de todos os estilos usam e/ ou cantam o Jeans. Nem no sertanejo ele fica de fora: "bota cinturão chapéu/um jeans rasgado parou no balcão”, diz os versos da canção de Beth Guzzo.

Até conseguir a façanha de unir tantos estilos, patrocinar transformações e alcançar tamanha universalidade, o Jeans vestiu várias tribos. De trabalhadores a rockers, de marinheiros italianos a hippies e mineiros americanos, de artistas renomados a patricinhas dos shoppings, muita água (e muito pano) rolou. Em meados do século XX, através da música e do cinema, Elvis Presley e James Dean fizeram do Jeans um clássico - embora este tipo de vestuário só tenha subido às passarelas da moda na década de 70, através do estilista Calvin Klein. As histórias da mídia e dos costumes atestam tamanha aceitação. Seja o personagem do escritor Jack Kerouac ou os poetas beats americanos; seja a Marie personagem do filme de Godard ou o garoto do Nirvana; a escultura de David do Miguel Ângelo ou o sujeito anônimo do anúncio, todos tecem a sintaxe entre o Jeans, as formas e os gestos do corpo.

Musa da cultura de massa e da arte moderna, o Jeans e seus acessórios - cinto, bota, boné... - invadem publicamente os espaços da mídia, os palcos, as passarelas, os meandros da cultura. Invadem também as páginas poéticas de nossa produção literária contemporânea. Isto demonstra a epígrafe acima do poeta potiguar, e a poética de Maurício Arruda Mendonça em Eu caminhava assim tão distraído (Ed. Sette Letras, 1997): “velocidade é uma fissura da juventude/ solidão é um método maluco/ de saber quem está dentro de você/ quando a cidade inteira te odeia/ mas entre almas de jeans/ você segue”.

Seguimos todos. Independente de cores, raças e credos político ou religioso, a grande maioria azula-se assumindo sua pele Jeans. Se não mais como signo do desvio e da liberdade (embora o cineasta Kieslowski ainda afirme que "a liberdade é azul"), vitrines o exibem como objeto de culto. Principalmente para os que preferem caminhar à vontade, mesmo em ocasiões solenes. Portando curvas e traços, insinuando formas, revelando jeitos e demarcando ritmos, as cores do Jeans acenam para o próximo milênio. Rústico, leve, macio ou surrado, leva o Jeans um achado: a tradução do desejo. Tenho uma tia - católica, 76 anos - que usa Jeans até na missa. Ela jura ter conversado com Jesus num sonho. Como ele estava? Vestido de Jeans, claro.