terça-feira, 30 de junho de 2009

A chama do ensaio e a simetria da representação






Sobre Duplo Cego


Uma versão desta resenha foi publicada na Tribuna do Norte, Natal, 03/02/1998


“aspira... à arte: misto de estilhaço frio e efervescência”

Armando F. Filho


De belos título e projeto gráfico, Duplo Cego (Ed. Nova Fronteira, 1997) é o 16º livro de poemas do carioca Armando Freitas Filho. Detentor de um Prêmio Jabuti, traduzido para vários idiomas e países, referendado por críticos como Silviano Santiago e Flora Sussekind e curador da obra da poeta Ana Cristina Cesar, Armando atravessou as 4 últimas décadas sem engajar-se em “legendas indeléveis”. Essa liberdade estética e política é responsável pela projeção de uma poética que, sintonizada com as nuanças artísticas e os procedimentos culturais e contemporâneos, destaca-se por um primoroso trabalho com a sintaxe textual em contraposição ao “esteticismo da palavra”.

Duplo Cego traduz, através dessa exatidão sintática (e "com o rigor de tigres"), dois núcleos temáticos acionadas pelo poeta: o exercício do ensaio e as formas da representação. Por isso, os 43 textos do livro dividem-se em duas partes - “Do ensaio” e “Da representação”. Num tempo no qual os efeitos e os procedimentos da representação são questionados e re-dimensionados, e do ensaio cobra-se a imersão de uma força imaginária, através do diálogo entre informações teóricas e formais com experiências subjetivas e reflexões pessoais, nada mais pertinente que estetizar essa problemática crítica num contexto poético. O próprio autor escruta as questões em exercício. Segundo Armando, “...o ensaio, hoje, anda incorporando mais livremente a especulação, a incerteza, a contingência de quem o faz, sem os rigores metodológicos e os fatalismos teóricos de antes” (4ª capa de “Escritos da Inglaterra”, Ana C., Ed. Brasiliense, 1988).

Crença na crítica e na criação balizam este Duplo Cego. Na primeira parte do livro, “Do ensaio”, Armando medra a inscrição de sua poética, através do introdutório “Sobre Pedra”. Nesse poema resplende uma escrita “sem horizonte à mão”, que desdenha “legendas” e demonstra saber de cor a “cara fechada” “da cantaria”. Em seguida, o belíssimo “Escritório” traz os livros como tema. Inscreve os “livros lidos, relidos” e os “cerrados, cegos de mim que vão fundo/ mesmo ficando parados - à espera/ e que apenas as traças atravessam”. Nada romântico, “Limite” sugere um sujeito que ensaia sua experiência estética calcada no rigor poético e na consciência analítica do seu fazer literário: “...não posso escrever/ na linha da arrebentação”.

“Do ensaio” prossegue estetizando a "crítica" poética proposta por Armando. Através de títulos, epígrafes e referências in-diretas, o poeta mantém cerrado intertexto com autores e artistas de diferentes contextos. Ao nomeá-los, ele recorta, de certa forma, um "cânone" particular composto por estilos e estéticas díspares onde se inscrevem Clarice Lispector, Duchamp, J. D. Salinger, Drummond, Murilo Mendes, Ângela Melim, Ana C. e João Cabral. Esses nomes surgem em textos como “Rubin”, “Cesar”, “Lispector” e “Para João, com amor e sordidez”, onde figurações de afeto e chumbo dimensionam o espaço imaginário.


Reciclando o recorte poético
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Na segunda parte - “Da representação” - são poetizados temas e leituras concernentes ao cotidiano, aos afetos e avios. Aqui a existência é re-lida sob o signo da memória, do testemunho, do desejo. Poemas como “Casa fechada”, “Dor” e “Sem nome” ratificam essa escrita na qual o interlocutor é, muitas vezes, personagem e ponto de partida para o desdobramento do tema. São textos sintonizados com os efeitos da simulação, os sentimentos da falta, as formas inacabadas.

Essa sintonia entre efeitos, sentimentos e formas caracteriza um espaço-tempo no qual vivemos “sem o segredo de ferrugem/ das fechaduras/ nem o drama de chaves perdidas/ e dos indistintos dias desertos de escrita/ que passaram sem saber”. Mas sabe-se, no poema “Zerando” (4ª capa), do poeta “tão fixo e travado/ como no começo de tudo”, abrindo “veias” e “gavetas”. Como leitores deste autor que vem publicando a 37 anos, desejamos que suas veias e gavetas continuem abertas e que, página a página, corpo a corpo, revelem-nos a poesia contemporânea de cada dia. Essa abertura ajuda-nos a imaginar respostas e perguntas para o in-questionável questionário “do destino - quem? Qual?” (“Em tempo real”).

Reciclando o recorte vocabular da poesia como faz, por exemplo, Augusto dos Anjos no seu belo livro Eu (1902) ao utilizar-se de vocábulos da esfera biomédica, Armando introduz no cenário estético e cultural deste final do século o seu Duplo cego (1997). Transportado do contexto da medicina para o universo artístico, Duplo Cego deixa de ser o teste médico no qual nem o pesquisador sabe quem está recebendo o produto ou o placebo, nem o paciente sabe quem está administrando. Essa relação médico-produto-paciente sugere, de certa forma, a relação autor-obra-leitor e, ao transformar-se em título deste volume, o teste aciona uma das mais caras atribuições do bom poeta em todas as épocas: a necessidade de reciclar o idioma, de dar novo entusiasmo à linguagem. No belo teste de formas e linguagens propostas por Armando, o leitor percebe que em terra de cego quem lê o duplo vê.