segunda-feira, 1 de junho de 2009

Memorial de Rachel


Texto publicado com outro título no Jornal Dois Pontos, Natal, 11-17/09/93


Minha voz leva lampejos de
lâminas nos teus silêncios

(Gilka Machado)




Além de homenagear a epigrafada poeta paulista e a escritora cearense Rachel de Queiroz, o V Seminário Mulher & Literatura (CCHLA-UFRN) contemplou obras de escritoras outras, como: Clarice Lispector, Patrícia Galvão, Lya Luft, Tereza de Ávila, Ana C., Adélia Prado, Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles. Os estudos centrados em personagens como Iracema, Marília de Dirceu, Molly Bloom, Lady Macbeth e Diadorim, dentre outras, tornaram presentes autores como José de Alencar, Thomáz A. Gonzaga, Cervantes, Eurípedes, Joyce, Shakespeare e Guimarães Rosa, além de outros.

A literatura produzida no Rio Grande do Norte foi representada nas obras de Palmira Wanderley e Jacirema da Cunha Tahim. Apesar do alto nível organizacional e da programação bem elaborada e cumprida, o Seminário evidenciou uma enorme lacuna: a ausência de trabalhos relacionados às obras de Nísia Floresta, Auta de Sousa, Miriam Coeli e Zila Mamede – as escritoras mais representativas da nossa produção literária.



Rachel em Painel


Entre elogios e aplausos, Rachel de Queiroz, aos 82 anos, foi a presença mais festejada neste seminário. Homenageada com uma comenda pela Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço / Seção RN, ela não poupou memórias, sorrisos, fotos e autógrafos durante os três primeiros dias de Setembro. O seminário programou um painel especialmente dedicado à autora de O Quinze, no qual destacaram-se três palestras: “A trajetória ficcional de RQ” (Elódia Xavier, UFRJ); “RQ - Literatura e Política no feminino” (Eduardo de Assis Duarte, UFRN) e “RQ: Ideologia e Utopia” (Benjamin Abdala Jr., USP).

Após a apresentação desses temas, o público foi brindado com uma conferência da autora em estudo. Sob forma de debate / depoimento, a fala de Rachel – carregada de vitalidade e bom humor – satisfez a maior parte da platéia; mas irritou algumas feministas mais radicais. Insinuando sua porção oligárquica ao dizer que nunca precisou “romper barreiras” e que não gosta de feminista, a autora iniciou sua fala. “Não tenho deliberadamente a pretensão de apoiar as mulheres que escrevem”, avisou depois a 1ª mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras.



A memória da letra



Rachel de Queiroz estreou em 1927 colaborando em jornais, com o pseudônimo Rita de Queluz. Começou a escrever por acaso. Dentre as primeiras leituras, A cidade e as serras destaca-se como indicação materna, sendo Aves de Arribação outro título que remete às primeiras letras, por influência do mestre cearense Antonio Sales. A biblioteca materna, formada por Eça de Queiroz, Balzac, Machado de Assis, José de Alencar e Flaubert, dentre outros, teve forte influência na formação da escritora. Sua mãe idem: além de receber em casa os lançamentos literários da época, “era leitora de Górki e dos russos do final do século. Fui criada numa casa de intelectuais. Havia muita ideologia política na nossa casa”, afirma a ex-comunista que considera Olga Benário “intelectualmente superior ao Luís Carlos Prestes”.


Vivenciando as leituras do “sertão idealista de Alencar” num extremo e no outro “um realismo muito cru”, a autora buscou criar um “realismo light”. Tal criação partiu das vagas lembranças (aos 4 anos) da seca de 1915 – objeto de base para a escritura de O Quinze. Este livro de estréia foi escrito a lápis, à luz de lampião. A autora tinha 20 anos. Ela lembra que “escrevia escondida, deitada no chão”. O texto apaixonou Graça Aranha e “estourou” após a 2ª edição proposta pela Ed. Nacional. Encontra-se, hoje, na 53ª edição.

Comparando-se a Rousseau, Rachel diz rejeitar os livros: "não me lembro de reler um texto meu e achar que foi bonitinho". Repetindo não sentir o menor prazer em escrever, ela anuncia: "acho que já escrevi demais". A autora não demonstra interesse pela produção sequenciada, atrelada aos anseios editoriais. Cita, como exemplo desse empenho, o escritor Jorge Amado, cujas obras O sumiço da santa e Farda Fardão... ela denomina menores.

De outros escritores ela lembra através de fatos relacionados aos tempos do convívio alagoano com Jorge de Lima, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Valdemar cavalcante e Aurélio Buarque de Hollanda. Com eles compartilhou uma vida boêmia na qual literatura e política davam o tom. Mas vem dessa época o que ela considera a maior tragédia de sua vida: a perda da filha.

De volta às reminiscências literárias, Rachel traça um painel confuso e bem humorado de Graciliano Ramos. Diz que quando escrevia Angústia, o autor bebia muito, era extremamente pessimista, achava tudo negativo com relação à sua obra. Conta ainda que, terminado o livro, Heloísa (esposa do autor) a procurara, dizendo ter Graciliano jogado fora os manuscritos da obra. Foi Rachel a salvadora dos originais que seriam publicados em 1936. Quando Graciliano publicou Vidas Secas, ocorreu outro episódio marcante: a autora de As três Marias chama de desgraçado o Velho Graça; diz que a saga de Fabiano e Sinhá Vitória acabou com ela, considerando a perfeição do estilo do autor. Para ela, esse estilo tornou-se um peso para o escritor Ricardo Ramos: Ricardo carregava nos ombros a carga de ser filho de Graciliano.


"Larga disso"


Chama-se Memorial de Maria Moura o livro lançado por Rachel em Natal. Escrito durante três anos ("deu muito trabalho"), o texto teve seu final transformado por sugestão da irmã da autora. Para esta, Maria acabaria triste e solitária. Admitindo que todos os seus livros acabam em trânsito, a escritora cearense lembra a opinião de Ariano Suassuna sobre a sua personagem baseada na rainha Elisabeth I: "Não admito que você compare Maria Moura com aquela galega desgraçada" - disse o autor de O auto da Compadecida.

Indagada acerca de sua profissão, a escritora respondeu que esse negócio de talento é fora da noção de masculino e feminino. Para ela existe o indivíduo, a pessoa. E radicalizando, concluiu: "eu nunca me considerei uma mulher". Mais radical ainda ela foi e deu mostra de pessimismo quando indagada acerca de conselhos para autores iniciantes. "Larga disso!" - foi a resposta, acompanhada de gargalhada geral da platéia.

Para a escritora cearense, a arte não pode nunca ser engajada. Com base nesse raciocínio, ela assegura ser a literatura feminista, assim como a engajada, de segunda categoria. De primeira categoria parece ser a Academia Brasileira de Letras. A imortal afirma que a instituição fundada por Machado de Assis é uma casa democrática. Na sua opinião, a política não pesa na ABL e, no reino dos literatos, a convivência alisa as arestas.


A seguir, uma breve cronologia elaborada em 2004 sobre vida e obra de Rachel de Queiroz.


1910 – Nasce em Fortaleza na casa de sua bisavó Miliquinha. Com 45 dias muda-se para Quixadá.

1925 – Formatura no Curso Normal. Inicia a carreira de jornalista. Publica o folhetim “A história de um nome”.

1930 – Publica O Quinze.

1931 – Recebe, no Rio de Janeiro, o Prêmio Fundação Graça Aranha pelo livro O Quinze. Ajuda a fundar uma sede do Partido Comunista no Ceará.

1932 – Casa-se com José Auto da Cruz Oliveira, no sítio do Pici. É fichada pela polícia de PE, como agitadora política. Escreve João Miguel, segundo romance.

1937 – Publica o romance Caminho de Pedras. Decretado o Estado Novo, seus livros são queimados. Acusada de subversão, a autora é presa por três meses no quartel do Corpo de Bombeiros.

1939 – Publica o romance As três Marias, e recebe o Prêmio da Sociedade Felipe D`Oliveira.

1942 – Publica Brandão entre o mar e o amor – Romance em parceria com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Aníbal Machado.

1944 – Inicia o trabalho como cronista da revista O Cruzeiro, onde permanece até 1975.

1953 – Ganha o Prêmio Saci com a peça Lampião.

1957 – Recebe, da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da sua obra.

1961 – Recusa o convite do presidente Jânio Quadros para ocupar o cargo de Ministra da educação.

1969 – Recebe o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil, com O menino mágico.

1975 – Publica o romance Dora, Doralina.

1977 – Como primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, ocupa a cadeira n 5, tendo Bernardo Guimarães como patrono.

1992 – Publica Memorial de Maria Moura.

1993 – Recebe o Prêmio Camões e o Prêmio Juca Pato.

1998 – Publica Tantos Anos, em parceria com Maria Luíza Queiroz, sua irmã.

2002 – Lança Falso mar, falso mundo (Crônicas).

2003 – É inaugurada a Casa de Cultura Rachel de Queiroz, em Quixadá (CE).

2003– Morre aos 93 anos no Rio de Janeiro.