sábado, 27 de junho de 2009

Na esquina de todos os tons




Publicado no jornal O Poti, Natal, 29/10/2000



Neste final de século, a leitura do espaço e do sentido da visão ganharam dimensões inusitadas. A arte e a pele contemporâneas parecem muito mais atentas ao que visivelmente as circundam do que às abstrações temporárias e metafísicas. Por isso tem sido cada vez mais constante a leitura de uma noção do espaço sobreposta ao movimento do tempo. Parece claro: ser da ordem do visível é parâmetro para lermos o milênio que se anuncia.

De olho nesse tipo de visão centrada na pele e na dimensão espacial, João Bosco lança Na esquina (Sony Music) - seu 16º álbum. O projeto dá continuidade à parceria iniciada em As Mil e Uma Aldeias (1998) com o poeta Francisco Bosco. Pai e filho encontram-se Na esquina para sonorizar e celebrar o potencial lírico-imagético que transita por este temido e desejado espaço urbano.

Na esquina cartografam-se cores e gestos, peles e músculos; são audíveis os fragmentados tons urbanos que sonorizam a trilha do transeunte. Haja “palavra que batalha”; salve tanto ritmo: cariri cambará tororó mambulê... Com quantas esquinas e gêneros musicais desenha-se um país? Samba, rumba, bolero, reagge, balada... Esta é a esquina de todos os tons. Aqui alguns ritmos podem dobrar uma esquina estética, anunciando mutações musicais. Assim sendo, um samba transforma-se em frevo (no belíssimo “Dia de Festa”); uma melodia “cheirando a Cuba” anuncia algo “Beirando a rumba”. Dessas mutações surge o primeiro reagge do repertório de João - “Mama ‘Palavra” - canção que ritma ideologicamente o signo sócio-cultural que todo verbo sugere (e faz imaginar Elis Regina entoando um dos gêneros ausentes no seu repertório). Além desses ritmos, destaca-se um antigo “True Love” porteriano que se transforma, nesta esquina sonora, numa bosquiana balada que diz sua “razão de ser” na novela das sete: “Amar, amar”.

a nobreza do lamento ancestral

Na esquina resgata do imaginário latino o bolero, a balada e sua lírica tradição na história da MPB. “De coração na mão”, João simula “Passos de amador” - canção inserida na linha da “nobreza romântica” que possui em Dolores Duran um de seus ícones. Em seguida resgata-se, nesta esquina do milênio, o terreiro de Clementina de Jesus. Esse resgate musical acontece através de um batuque no qual o canto de João empresta à palavra de Francisco o lamento ancestral, estetizando a perda: “Eu enfeitei tua palavra/ E fui correndo te esperar/Lá na esquina da promessa/ com quem manda acreditar”.


Na esteira de sambas históricos como “Incompatibilidade de Gênios “ e “Nação”, a canção “Doce sereia” celebra a exuberante alegria desses antigos clássicos, com um refrão cuja oralidade dá notícias de nossa cordial tradição tropical: “Vamos juntos nadar/ Na maré cheia/ Quem não morre no mar/ Morre na areia”. Ressalte-se ainda o pujante arranjo de Jaques Morelenbaum e o “auxílio luxuoso” de Marçal (cuíca, caixa, agogô e surdo), presentes em outras faixas.

Uma releitura de nossa cordialidade pode ser ouvida nesta esquina - território musical onde acordes os mais variados convivem de forma democrática com outros ritmos e os belos solfejos de João. Nesse espaço de ruptura musical deparamos - de ouvido - com o contemporâneo canto falado de “Ditodos”. Mistura de samba-rap, esta canção resgata a tradição musical brasileira de reler ditos e máximas, pondo na boca do ouvinte a palavra “feito uma moeda condenada”. Assim, “Pé de caixeiro é bola de cristal”; e se quem brinca com água dá luz, “Quem planta fogo/ Colhe pé de queimadura”.

Apesar de apontar para a cartografia do cenário urbano, Na esquina sinaliza o espaço sertanejo em canções como “Cego Julião” e “Flor de Ingazeira”. Nesta última melodia entoam-se espaços e esquinas de cidades nordestinas como Mossoró, Caicó e Juazeiro. Na musical geometria destes lugares, o poeta desenha o “mapa das manhãs paradas do amor”, sem esquecer o “sol que persegue o retirante” na sua ressecada odisséia nordestina. O ritmo da forma é também audível na sutilíssima “Flor de Ingazeira”. Brotada na oralidade do sertão ela floresce, “na esquina”, em meio à sonora paisagem concreta.

No solo interno no qual se desenvolve a sintaxe dos afetos e se constrói a geometria das identidades do novo milênio, o corpo poderá a tudo ler independente do tempo. Se o contemporâneo plugou-se à pele do espaço e às formas do virtual, qualquer coisa pode estar em qualquer lugar: “Tá no celular, tá no jornal, tá no andar”. Pode estar na palma ou na linha das mãos que mapeam o encarte deste belo CD. Pode estar bem ali zanzando sarabandando, como forma de dobrar e inscrever a esquina sonora do milênio.