sábado, 20 de junho de 2009

Beleza exige respeito

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Texto publicado em 2003 no Rede de Letras da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, e apresentado na Mesa-redonda Luciano Bonuccelli: um olhar plural, promovida pelo MAC - Museu de Arte Contemporânea de Niterói/ Provincia di Lucca/ Istituto Italiano di Cultura - Rio de Janeiro, com a participação de Luciano Bonuccelli, Beatriz Resende, Cloves Dottori, Franklin Chang, Marco Lucchesi e Nonato Gurgel, em 2003 no MAC


I


Frente às fotografias de Luciano Bonuccelli – o seu olhar estético e histórico –, lembro dessa assertiva de Lygia Fagundes Telles que ora me serve de título. Acrescentaria que, quando aliada ao saber, a beleza exige ainda mais respeito. Essa assertiva da escritora paulista amplia sua dimensão ao contemplarmos as paisagens naturais, os cenários culturais e os retratos humanos que ganham ritmo e consistência frente à pluralidade desse olhar italiano. Se me detenho no Ritratti Paolo e Gabriele, 1997, (p. 108), a sábia postura do primeiro, sugerida na sua nobreza gestual, potencializa o sentido de reverência exigida frente ao belo.
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Para a concretude desse diálogo óptico, que se estabelece com base no respeito ao belo e no sabor do saber, Bonuccelli opera com a imagética barthesiana de A Câmara Clara. Nessa dimensão ensaística, a fotografia pode ser objeto de múltiplas práticas, mas Barthes vai destacar pelo menos três dessas práticas: olhar, suportar e fazer. Parecem ser esses os verbos que o artista italiano freqüentemente conjuga frente aos seus cenários e retratos. Paolo – o referente mor do ritratti – é o alvo da câmara dessa fotografia ambígua de luz e sombra. O registro dessa ambigüidade nos permite vislumbrar a porção apolínea de Paolo, em contraposição à dimensão dionisíaca que ostenta o escuro no qual a foto “encena” Gabriele. No jogo apolíneo e dionisíaco que tematiza essas imagens, atentemos para a operação visível de um signo que “sustenta” as duas imagens: as mãos dos garotos. Em contraposição à nobreza silenciosa das mãos em forma de pedestal – onde repousa o rosto de Paolo –, a mão direita de Gabriele anuncia o que de dionisíaco saboreia sua boca. Boca essa encoberta, num gesto ambíguo que tanto sugere a celebração do deboche, como propõe o espanto dionisíaco.

I I I

O diálogo óptico que se estabelece entre a câmara de Bonuccelli e o olhar de Paolo, sugere ainda uma imaginária proposição daquela leveza estetizada por Italo Calvino em Seis Propostas para o próximo Milênio. Esse diálogo óptico – entre a câmara e o olhar – suspende o peso, exclui a inércia. Na contemporaneidade, sabemos, o peso e a imobilidade caracterizam aquele olhar viciado das repetitivas imagens com as quais a mídia diariamente nos brinda. Na leveza deste ritratti, ao contrário, nada se repete nem pesa. Nessa imagética, o que é leve perpassa o imaginário do leitor – sujeito que viaja pelos meandros de outros dois imaginários: o imaginário do fotógrafo e o do seu próprio objeto, a imagem de Paolo.

I V
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O ritratti Paolo e Gabriele auxilia nos modos de ver. Re-inventa outras formas de olhar. Frente a essa leveza imaginária, exposta no diálogo com a exatidão da forma, a foto amplia nossa leitura do mundo. Essa outra visibilidade, essa ampliação perceptiva, nos chegam através do que a imagem emana de postura e ritmo. Além de leve e exata, esta é também uma imagética da multiplicidade – procedimento estético característico da poética contemporânea, aqui inscrita na presença de Marco Lucchessi. Essa idéia de multiplicidade nos remete à pluralidade temática e estética do olhar de Luciano Bonuccelli. Olhar que percebe com nitidez as formas e os tons que circundam sua “Strana Gioia di Vivere”.

A percepção óptica dessa “Strana Gioia de Vivere” pode ser lida nas imagens verticais e suaves que exibem a sonoridade fluída das paisagens da Serra de La Mia Terra (p. 80 e 81), ou nas formas que emanam do Muri de Lucca, suas estampas coloridas, em 1988 e 1993 (p. 27 e 31). A percepção imagética dessas formas dialoga com o moderno olhar benjaminiano:
“...o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima, num rosto humano”.
Nas fotografias de Bonuccelli, o olhar que capta a pluralidade de paisagens – nas figurações da natureza e da cultura – inscreve também a aquisição do ritmo. Essa aquisição nos remete ao “ritmo pessoal” (Barthes) das formas históricas e dos olhares humanos. Trata-se, portanto, de fotografias cuja visibilidade inscreve corpos do saber. Corpos esses conscientes de que, para haver criação, são necessários espaços, formas, cenários, performances.


V


Inscrever-se ou afirmar-se, por meio da construção de imagens, é uma das múltiplas formas que a arte nos possibilita de realizar “aquela teatralização de si mesmo”, de que fala Roland Barthes em Como viver junto. Nas fotografias de Bonuccelli, essa “teatralização de si” é visivelmente lida, por exemplo, na postura descontraída e levemente aristocrática do ritratti de Raffaelle Carrieri (p. 95); ou na ambígua fantasmagoria – feminina e potente – do ritratti de La Zorria (p. 72), no qual a escuridão das vestes que encobrem o seu corpo contrasta com a clareza das nuvens ao fundo da foto. Noutro ritratti, a celebração do prazer e do ócio – advindos da informação e do saber – ostenta Pier Carlo Santini como âncora de sua própria “teatralização” (p. 99).

V I

A estetização dessas paisagens humanas, naturais e culturais, construídas por Bonuccelli, possibilita uma leitura estética e cultural dos registros que as compõem. De olho nos roteiros imagéticos do fotógrafo, embora sem a pretensão de desvelar suas intenções, acionamos este olhar. Trata-se, portanto, de um olhar sobre o olhar que vê um terceiro – mais especificamente o ritratti Paolo e Gabriele. Frente a esse ritratti, e após habitar as imagens e dialogar com os retratos de Bonuccelli, aciono minha porção barthesiana:
“...a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa”.
Pensativa e imaginária, eu diria. Ao ler o olhar silencioso que emana do ritratti Paolo e Gabriele, contemplo a afirmação de uma imagética frente a um mundo que se pensa; imersa numa vida que se imagina. Inscrição de um olhar antigo, cúmplice, no qual a celebração da diferença institui-se como uma prática afirmativa, contemporânea.



BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

___Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. “Pequena História da Fotografia” in: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 5ª ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Vol. I).

BONUCCELLI, Luciano. Fotografie. 1977 – 2000. Lucca – Italy: Maria Polini Fazzi Editore.


LA BELLEZZA VUOLE RISPETTO
Traduzione Katia D’Errico
I
Davanti alle fotografie di Luciano Bonuccelli – al suo sguardo estetico e storico – mi viene in mente quest’affermazione della scrittrice Lígia Fagundes Telles che uso qui come titolo. Aggiungerei che, quando unita al sapere, la belleza vuole ancor piú rispetto. Quest’affermazione aumenta la sua dimensione quando contempliamo i paesaggi naturali, gli scenari culturali ed i ritratti umani che acquistano ritmo e solidità davanti alla pluralità di questo sguardo italiano. Se mi soffermo sul RITRATTI Paolo e Gabriele, 1997 (p. 108), percepisco che il sapiente atteggiamento del primo e la sua nobiltà gestual rinforzano il senso di riverenza che il bello esige.

II

Affinché si concretizzi questo dialogo ottico, che si stabilisce in base al rispetto per il bello e al sapore del sapere, Bonuccelli agisce sulla immagetica dimensione barthesiana di A Câmara Clara. In quest’ottica, la fotografia può essere oggetto di molteplici pratiche, ma Barthes ne mette in rilievo almeno tre: guardare, sopportare e fare. Sembra siano questi i verbi che l’autore italiano spesso coniuga davanti ai suoi scenari e ritratti. Paolo – la figura principale del RITRATTI – è il bersaglio della camera di questa fotografia, la cui luce ed ombra suscitano ambiguità. Quest’ambiguità ci permette di intravvedere la parte apollinea di Paolo in contrapposizione alla dimensione dionisiaca che mostra la parte oscura nella quale la foto “sceneggia” Gabriele. Nel gioco apollineo e dionisiaco, tema di quest’immagine, notiamo l’operazione visibile di un segno che “sostiene” le due immagini: le mani dei ragazzi. In contrapposizione alla nobiltà silenziosa delle mani, in forma di piedistallo – su cui riposa il viso di Paolo –, la mano destra di Gabriele annuncia ciò che di dionisiaco assapora la sua bocca. Bocca coperta, in un gesto ambiguo che suggerisce sia l’esaltazione dello scherno sia lo sgomento dionisiaco.

III

Il dialogo ottico che si stabilisce tra la camera di Bonuccelli e lo sguardo di Paolo, suggerisce anche un’immaginaria proposizione di quella leggerezza estetizzata da Italo Calvino in Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millenio. Questo dialogo ottico – tra la camera e lo sguardo – interrompe il peso, esclude l’inerzia. Contemporaneamente, sappiamo, che ciò che pesa ed immobilizza caratterizza quello sguardo viziato delle ripetitive immagini che i mass media ci regalano quotidianamente. Al contrario, nella leggerezza di questo RITRATTI, niente si ripete né pesa. In esso ciò che è lieve sfiora l’immaginario del lettore – il quale viaggia nei meandri di altri due immaginari: l’immaginario del fotografo e quello del suo proprio oggetto.

IV

Il RITRATTI Paolo e Gabriele aiuta i modi di vedere. Re-inventa[1] modi di guardare. Davanti a questa leggerezza immaginaria, mostrata nel dialogo dall’esattezza della forma, la foto amplia la nostra lettura del mondo. Quest’aiuto visivo e quest’ampiezza percettiva ci arrivano per mezzo di ciò che l’immagine emana in atteggiamento e tono. Oltre ad essere lieve ed esatta, questa è anche una immagetica della molteplicità – procedimento caratteristico della poetica di Marco Lucchesi –, e che ci rimanda alla pluralità tematica ed estetica dello sguardo di Luciano Bonuccelli. Uno sguardo che percepisce, con nitidezza, le forme ed i suoni che circondano la sua “Strana Gioia di Vivere”.

La percezione ottica di questa “Strana Gioia di Vivere” può essere letta nelle immagini verticali e soavi che esibiscono la sonorità fluida dei paesaggi della Serra (LA MIA TERRA - p. 80 e 81), o nelle forme che emanano da Muri (LUCCA – p. 27 e 31), le sue stampe colorate, del 1988 e 1993. La percezione immagetica di queste forme stabilisce un dialogo con il moderno sguardo benjaminiano: “... l’ambiente ed il paesaggio si rivelano soltanto al fotografo che li sa captare nella loro manifestazione anonima, in un viso umano”. Nelle fotografie di Bonuccelli lo sguardo che capta la pluralità dei paesaggi – della natura e della cultura – marca anche l’acquisto del “ritmo personale” (Barthes) delle forme e degli sguardi umani. Si tratta, quindi, di una visibilità che marca i corpi del sapere. Questi corpi sanno che, affinché si abbia una creazione, ci vogliono spazi, forme, scenari e performances.

V

Perpetuarsi o affermarsi, attraverso costruzioni di immagini, è una delle molteplici forme per cui l’arte ci dà la possibilità di realizzare “quella teatralità di se stesso”, di cui parla Roland Barthes in Como viver junto. Nelle fotografie di Bonuccelli, questa “teatralità di se stesso” è visibilmente letta, per esempio, nell’atteggiamento naturale e lievemente aristocrático del RITRATTI di Raffaele Carrieri (p. 95); o nell’ambigua fantasmagoria – femminina e potente – del RITRATTI La Zorria (p. 72), nel quale il colore scuro dell’indumento che copre il suo corpo contrasta con il chiarore delle nuvole sul fondo della foto. In un altro RITRATTI (p. 99), l’esaltazione del piacere e dell’ozio – risultanti dall’informazione e dal sapere – mostra Pier Carlo Santini come l’ancora della sua propria “teatralità”.

VI

L’estetizzazione di questi paesaggi umani, naturali e culturali, costruiti da Bonuccelli, rende possibile una lettura estetica e culturale dei registri che li compongono. Attento ai percorsi della immagetica del fotografo, malgrado senza la pretesa di svelarne le intenzioni, azioniamo questo sguardo. Si tratta, quindi, di uno sguardo sullo sguardo che ne vede un terzo – più specificamente il RITRATTI Paolo e Gabriele. Davanti a questo RITRATTI, e dopo aver interagito con le immagini ed aver dialogato con i RITRATTI di Bonuccelli, aziono la mia parte barthesiana: “... la Fotografia è sovversiva, non quando suscita terrore, turba o persino stigmatizza, ma quando è pensierosa”. Io direi pensierosa ed immaginaria. Nel leggere lo sguardo silenzioso che emana dal RITRATTI Paolo e Gabriele, considero l’affermazione di una immagetica messa davanti ad un mondo che si pensa, ed immersa in una vita che s’immagina. Affermazione di uno sguardo antico e complice, nel quale l’esaltazione della differenza s’istituisce come una pratica.



[1] Inventa di nuovo, crea altre possibilità.