segunda-feira, 29 de junho de 2009

Lirismo sem transcendência








Entrevista publicada em 2004 no Fórum Virtual O que é literatura – PACC/UFRJ - http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/index.php
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O poeta, ensaísta e professor de Estudos da Tradução Paulo Henriques Britto (PUC – Rio) é reconhecido como exímio tradutor. Nas três últimas décadas, ele traduziu autores de diversos contextos e das mais diferentes estéticas, como: John Donne, Emily Dickinson, Wallace Stevens, Elizabeth Bishop, Susan Sontag, John Updike, Frank O'Hara, Philip Roth, Thomas Pynchon, Ian McEwan, Henry James, Jack Kerouac, Faulkner e Byron, dentre outros. Ao todo, são mais de 80 livros traduzidos.
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Nascido no Rio de Janeiro, em 1951, ele é autor de quatro livros de poesia: Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar Claro (1997) e Macau (2003). Com esse último, lançado pela Companhia das Letras, o autor recebeu o prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2004 e o Prêmio Alceu Amoroso Lima - Poesia 2004.
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A seguir, o poeta, contista e tradutor lança o seu olhar sobre a poesia contemporânea. Autor que considera a leitura de Dickinson, Drummond e Pessoa, dentre outros, como parte importante do seu "processo de formação intelectual, emocional e moral", Paulo Henriques destaca, dentre outros temas, os procedimentos estéticos de sua poética. Além disso, fala sobre Paraísos Artificiais, o seu primeiro livro de contos, lançado em 2004.
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NG Dentre os autores acima traduzidos, com quais deles é possível estabelecer relações estéticas com a poesia que você produz e por quê?
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PHB: Desses poetas, o que mais marcou meu trabalho foi provavelmente Stevens, porque o descobri por volta dos vinte e poucos anos, quando ainda estava desenvolvendo um estilo próprio. Dele o que mais guardei foi o apreço pelo apuro formal, mas além disso tenho em comum com Stevens uma visão do mundo que recusa qualquer transcendência. Traduzi Byron e Bishop quando já tinha definido minhas opções estéticas, mas sem dúvida os anos que passei trabalhando com as obras deles tiveram o efeito de reforçar minha predileção pela associação entre forma fixa e linguagem coloquial.
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NG Você vê utilidade no fazer poético, ou compartilha da leitura leminskiana da poesia como inutensílio?
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PHB: A meu ver, a arte não tem nenhum objetivo que não o de proporcionar prazer estético. Mas é claro que ela pode fazer muito mais do que isso, inclusive ajudar o fruidor a desenvolver uma visão menos estreita da existência e do mundo.
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NG Embora em contextos e formas diferentes, você utiliza, como Byron, "a língua coloquial de sua classe e de sua época". Na sua poesia, a linguagem cotidiana e seus ritmos dão o tom, como ouvimos explicitamente em textos como "De vulgari eloquentia", de Macau (ler abaixo). De onde advém essa altíssima taxa de oralidade que perpassa toda a sua poética?
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PHB: São várias fontes, mas as principais são os meus mestres modernistas - Pessoa, Bandeira, Mario, Drummond, Cabral, bem como os poetas modernos de língua inglesa; e a grande música popular dos anos 60- Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros, além de grandes letristas do rock, como Bob Dylan e Jim Morrison.
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NG – Além do tom reflexivo, sua poética ostenta uma forma metalingüística que muito elucida seu processo de criação. Gostaria que você comentasse acerca desse e de outros procedimentos estéticos de sua poética.
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PHB: Creio que o gosto pela metalinguagem é comum à maioria dos poetas brasileiros (e não só os brasileiros) do século XX. É ao mesmo tempo sinal de consciência profissional - pois poesia é, acima de tudo, linguagem, e nada mais lógico do que ela voltar-se sobre a linguagem - e sintoma de crise - pois na medida em que a poesia se volta cada mais sobre si mesma, mais estreito se torna seu público. Embora pratique a poesia metalingüística, cultivo também a tradicional temática do lirismo, ainda que de modo contido e autoconsciente. Tento evitar os excessos do cerebralismo cool que caracteriza parte da produção contemporânea (que parodio em alguns poemas do meu último livro) e também os excessos de um neo-romantismo que começa a se afirmar nas últimas décadas.
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NG Quais poetas e prosadores você destaca na literatura brasileira contemporânea?
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PHB: Temos muitos nomes excelentes no Brasil hoje. Para só citar alguns, e me restringindo aos com menos de sessenta anos, entre os poetas eu destacaria Carlito Azevedo, Cláudia Roquette-Pinto, Nelson Ascher, Eucanaã Ferraz, Antonio Cicero, Alexei Bueno e Heitor Ferraz Mello. Na prosa, temos, entre muitos outros escritores de qualidade, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cristóvão Tezza, Antonio Carlos Vianna e André Sant’Anna.
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NG Gostaria que você falasse sobre Paraísos Artificiais – o seu primeiro livro de contos.
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PHB: Comecei a trabalhar num livro de contos em 1972, quando estudava cinema na Califórnia. Cheguei a aprontar cerca de trinta, mas já no Brasil comecei a retrabalhá-los, e no final só sobraram um ou dois do tempo dos originais, mais uns cinco que fiquei escrevendo e reescrevendo nos anos 70. Nos anos 90, publiquei alguns deles em revistas literárias e escrevi mais um, e a Companhia das Letras se interessou em lançá-los em livro. No final de 2003 aprontei rapidamente uma novela, "Os sonetos negros", e dei o livro por completo, mais de trinta anos depois de iniciá-lo. Como se pode imaginar, o livro não tem uma unidade de estilo ou de visão; os primeiros contos foram escritos por um rapaz de vinte e poucos anos, e a novela por um homem com mais de cinqüenta anos. Nos primeiros são visíveis as presenças de Beckett e Kafka, os escritores que eu mais lia na época; "Coisa de família", que levou cerca de dez anos para ficar pronto, é do tempo em que eu estava descobrindo Gombrowicz; e “Os sonetos negros” foi sugerido pela leitura e tradução dos contos de Henry James e também pelo romance Possessão de A. S. Byatt, que traduzi em 1992.

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DE VULGARI ELOQUENTIA

A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
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Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
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Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",
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todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.