quarta-feira, 3 de junho de 2009

O que dizem os olhos de quem narra





Reescrito a partir do ensaio publicado na
Revista Odisséia nº 06, Natal, UFRN, 1998



Onde seus olhos estão as lupas desistem
Ana C. A teus pés


Revestindo-se de uma postura cenográfica diante da fragmentação do sujeito e do seu espaço, e atenta à rápida mutação do real, Ana Cristina Cesar adere, em sua poética, a um procedimento de tomadas (no sentido cinematográfico) desse real. A poeta adota o olho como câmera a flagrar o que passa em velocidade. Essa visibilidade imprime no objeto fugaz a significação estética.

Através desse olhar, a poeta registra as multifacetadas Cenas de Abril, lê e recolhe informações em Correspondência Completa, “vampiriza” a tradição literária e cultural em Luvas de Pelica e institui a paixão e a celebração do outro em A teus pés. Nestes textos, o narrador criado a partir de um “olhar estetizante” (Ana C.) sabe ser a grande verdade uma ficção. Uma construção lingüística. Por isso, esse olhar que narra relaciona a informação que capta com elementos imaginários, tecendo uma narrativa que deseja do leitor cumplicidade e sintonia. Um leitor que, munido de humor e repertório, possa reler os signos do “vocabulário de formas” assumido nas produções estéticas da contemporaneidade.

Esse narrador de “olhar estetizante” apenas olha. Contempla. Passeia pelas “alamedas do olhar” alheio. Sua narrativa constrói-se a partir de fragmentos do real e do trânsito imaginário. Ele estetiza o real, confundindo os limites entre realidade e imaginação. A realidade virtual parece ser a quintessência disso, ao colocar a questão do real como forma de ordenação de possibilidades. Na percepção dessa realidade e na leitura desse olhar que narra, o leitor desvenda que o real consiste numa sintaxe histórica e existencial; numa organização gramatical e dialógica entre seres, formas, textos, signos, imagens, espaços...

A problemática do narrador


Podemos diferenciar o narrador clássico do narrador pós-moderno colocando em relevo questões que envolvem a sabedoria e a informação. Enquanto o narrador clássico é sábio e possui sua base na experiência vivenciada, o sujeito contemporâneo narra a partir da observação, da contemplação. Tem argumentos seu olho: informa. Este olho é um instrumento útil e prazeroso na construção narrativa. Como o estranho sujeito dos Cenários em Ruínas[1], quem narra na pós-modernidade é informado que:

Enquadrar, delimitar tudo pelo ângulo da visão, é a obsessão primeira destes indivíduos à procura de imagens, retratos de si mesmos e dos lugares que estão buscando. É por isso que vivem cercados por todo tipo de aparelhos ópticos. São homens do olhar: aqueles que vêem tudo como imagens.

A visão dessas “imagens” possibilita a conjugação dos verbos na narrativa da contemporaneidade: enxergar, enquadrar, estetizar. São essas as ações que se vinculam à metonímia do olhar, no lugar da metáfora da plenitude, como demonstram os narradores das micro-narrativas de Ana C. Vejamos:


As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos

Cenas de Abril, p. 60

O olho, como um balão bizarro, se dirige para o
infinito; no horizonte, o anjo das certitudes, e no
céu sombrio, um olhar interrogador

Luvas de Pelica, p. 118

Ao vincular-se à metonímia e à ação do olhar, esta poética procura re-ver o fragmento, reconhecendo haver na incompletude, no inacabado, menos beleza e mais problemas (Silviano Santiago). Observemos como esse sentido de incompletude revela-se, através do narrador estetizado em Luvas de Pelica[2]:

Perdi um trem. Não consigo contar a história completa.
...
Aflição de não poder retornar daquele ponto,
com toda a inocência de turista.

Também em Inéditos e Dispersos o narrador fruitivo da “Carta de Paris” testemunha o inacabado que é expresso através do desejo. Mas ali vê-se uma “saída” onde mesmo o incompleto e o provisório se mostram: uma saída de vida[3]. Com a narrativa incompleta, seu “desejo inacabado” (Ana C.) e tendo a inocência perdida, o narrador da pós-modernidade é justamente por isso o “mais problemático” (Silviano Santiago). Primeiro, porque ele não possui o domínio da narrativa, nem tem as “chaves do real” (Ana C.). Segundo, porque a estética do seu olhar é escapante, assim como também o é seu foco narrativo.

A complexidade desse narrador amplia-se na medida em que lidamos com um sujeito que escapa de si próprio. Ao invés de centrado em si, ele atinge o outro. É por este atingido. Como demonstra a leitura dessa poética, a intersubjetividade é posta em questão no próprio ato de narrar. Este narrador não personifica o bom retratista preocupado com o embelezamento (Aristóteles), nem narra tentando alcançar os sentidos da ordem e da distinção (Lukács). Não é o narrador sábio, experiente e aconselhador (Benjamin), nem expõe a neutralidade proposta pelo narrador realista. Também não atua, esse narrador, no nível do simbólico; mas na esfera da alegoria, do imaginário, da pulsão. Daí a problemática dessa narrativa dever-se à experiência estética do tropeço, do desfalecimento, da rachadura (Lacan).

Problematizando o problemático “enquanto categoria objetiva do conhecimento”, Deleuze aposta nele como capacitado para “solucionar seus próprios problemas” [4] e sugere:

Devemos... romper com o longo hábito de pensamento que nos faz considerar o problemático como uma categoria subjetiva de nosso conhecimento, um momento empírico que marcaria somente a imperfeição de nossa conduta, a triste necessidade em que nos encontramos de não saber de antemão e que desapareceria com o saber adquirido.

Lendo a ensaísta de Deleuze e a poética de Ana Cristina, percebemos que a problemática do narrador pós-moderno envolve a possibilidade de experimentar a interação entre sua subjetividade e a do outro - a causa do desejo. A leitura dessa intersubjetividade - que possui esse outro como parâmetro - é um dos elementos constitutivos dos discursos históricos e estéticos das poéticas e das narrativas contemporâneas. Sem noção de hierarquia, essa leitura intersubjetiva traz o eu e o outro para o mesmo campo de sensibilidades, coordenando-os, justapondo-os, e não subordinando-os. Dessa forma, coloca-os numa problemática linha de tensão co-existencial.

eu é um outro

O narrador pós-moderno distingue-se também do narrador romântico (séc. XVIII), cuja atuação é mediada pelo olhar (vidente?) de um Eu absoluto e definido. Para entendermos melhor essa destinção, recorremos a Nelson Brissac Peixoto, no livro Cenários em Ruínas[5], Segundo ele,

o eu contemporâneo é uma construção imaginária. Não existe uma identidade inerente, original, que possa ser restabelecida. Ela é desde logo construída como uma imagem. Ela está construída como uma imagem. Ele está sempre querendo fazer esta construção, substituindo-a por outra imagem.

Estas imagens proliferam nos eus estetizados por Ana Cristina. Neles ecoam também outras vozes. Imagético, esse eu narrante da contemporaneidade é fragmentado, mutante. Metonímico, ele sabe que sua existência só se torna viável como parte de um outro que falta; um outro imaginado, desejado. Sintonizado com este outro, o narrador atenta para a leitura do corpo e sua fala, cujas fendas captam/repassam a informação de um “eu mínimo” (Lasch). Este eu habita um espaço oscilante de imagens, no qual a realidade e a ficção se cruzam. Trata-se de um eu que perdeu a onipotência, e cuja “subjetividade se parece com um roubo inicial” (A teus pés).

A atuação do narrador pós-moderno é, portanto, indireta. Por centrar-se no outro, e não em si, esse narrador lança um olhar presente, dando voz para si e tecendo “conjeturas sobre a vida do outro”, como diz Silviano Santiago. Para o autor de Nas Malhas da Letra, o outro é a “meta do deslocamento lingüístico”, já que a “linguagem poética existe em estado de contínua travessia” para ele. Esse "deslocamento" e essa "travessia" remetem ao detetive de Cenários em Ruínas que, através da investigação do outro está, na verdade, em busca de si mesmo, de sua história. Tal qual o outro nos poemas e nas micro-narrativas de Ana C., cujos narradores são objetos do desejo de nossa mira. Como aquela voz que anuncia o “gozo narrativo” (Barthes) das “Primeiras Notícias da Inglaterra” (A teus pés):

Beberico
os nevoeiros ingleses em mim e por fora
(e o amor se germanizando todo)

ou como nas impressões colhidas pela voz que narra “atrás dos olhos das meninas sérias”, (A teus pés), informando:

Aviso que vou virando um avião. (...)
Não me afogo mais... Não olho
para trás e sai da frente que esta
é uma rasante: garras afiadas e pernalta.



No primeiro trecho, a intersubjetividade envolvendo o sujeito e a mutação do espaço no qual ele atua é mediada sob o signo amoroso. Já a voz que informa, no segundo trecho, tem o outro como referencial óptico; anuncia um olhar que rejeita o passado, enquadrando numa “rasante” o que vem pela “frente”.

Essa busca do outro inclui o desejo de suprir a falta, o isolamento e o vazio; desejo esse que desliza na cadeia ininterrupta de informações que se repetem, transformam-se em simulacros, geram o texto. Como ocorre na “Carta de Paris” (Inéditos e Dispersos). Nela Ana rescreve, de olho nas “luzes trêmulas dos trópicos”, o poema “O cisne” de Baudelaire: As cidades mudam, mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo.

Perdido, silencioso, mutante é o poético narrador contemporâneo. Sua identidade é refeita porque ele está sempre em transição. A busca de construção dessa identidade - instável, provisória - acontece a partir do olhar, e leva em conta dados referenciais e imaginários. Semelhante identificação caracteriza estranhos sujeitos perdidos de suas origens. São sujeitos sem passado muito definido e, às vezes, desterritorializados. Eles perambulam por espaços que os colocam quase sempre em situações de dúvida; às vezes, em situações de perdas. Isso é típico do narrador de A teus pés que, por vezes, atravanca “agora, nesta contramão”. Assobia!

[1] Peixoto. Cenários em Ruínas. 1987. p. 155.
[2] Cesar. Luvas de Pelica. 1980.
[3] Cesar. Inéditos e Dispersos. 1985. p. 81.
[4] Deleuze. Lógica do Sentido. 1988. p. 57.
[5] Peixoto. Op. Cit. p. 212.