sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ilza contra a melancolia da letra
















Jackson Pollock

Entrevista publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 06-07/03/1999


A profª. natalense Ilza Matias de Sousa viveu durante quase 3 décadas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Graduada em Letras Clássicas (UERJ), defendeu na UFMG, em 1987, Figuras e cenas brasileiras: Leituras semióticas de Papéis Higiênicos - dissertação de mestrado centrada na obra do poeta Sebastião Nunes. Em 1993 ela defendeu, na mesma UFMG, Arte Amorosa e Devoração Literária - tese de doutorado acerca das tendências da ficção contemporânea.

Atualmente, Ilza é professora do Departamento de Letras da UFRN, e dá aulas no Curso de Mestrado em Literatura Comparada. Sob sua orientação várias dissertações foram defendidas com preceitos e conceitos que, além de qualificar a produção dos alunos, atestam o grau de competência da professora. Produtora de um texto sintonizado com as vertentes contemporâneas da academia, a profª. Ilza Matias publica em jornais, livros e revistas do país. Dentre as publicações recentes, destaca-se “A astúcia do dragão e a sabedoria da raposa: o alegre cinismo da ficção borgiana” (Borges em dez textos, Sette Letras, RJ, 1998). Indicada pela Revista CULT, a obra traz textos de autores nacionais e internacionais.

Para esta primeira entrevista concedida a um jornal natalense, foram realizadas quatro sessões na UFRN e no Hotel Residence, onde Ilza reside. Ali, em meio a viajantes de passagem e hóspedes outros, ela convive com Foucault, Derrida, Baudrillard, Marc Augé, Otávio Paz, Benjamin, Barthes, Hannah Arendt, Freud, Lacan, poetas, cientistas, místicos e escritores. Sintonizada com a velocidade dos autos na av. Salgado Filho e com o ritmo de seu exílio interno, Ilza cultiva a espiritualidade e o humor na escrita e no processo de orientação acadêmica. No corpo, ela porta tons coloridos; na mente, o antídoto contra a melancolia dos discursos canônicos. Próximo roteiro: um curso sobre o imaginário dos viajantes na literatura.

A seguir, a fala da profª. que, de olho na “paisagem eletrônica” e nas mutações contextuais, vê no horizonte da ficção a literatura como lugar do sujeito humano e de sua inteligência imaginante, em face às inteligências artificiais que produzem imagens digitais..

Nonato Gurgel: Recentemente a Editora Sette Letras lançou Borges em dez textos, sendo um desses textos de sua autoria. O que possibilita o “alegre cinismo da ficção borgiana”?

Ilza Matias: Talvez o fato de Borges ser latino-americano, argentino ... E, como todos nós, nascido entre espelhos e máscaras coloniais que transformam os processos de identidade, inclusive literários e artísticos, em uma espécie de teatro, um drama latino-americano (algumas vezes uma grande farsa nacional, outras, representação trágica, cruel, existencial e humana). O alegre “cinismo” da ficção borgiana - assim o concebo no ensaio publicado em Borges em dez textos - é expressão de uma prática ficcional que implica um profundo reconhecimento disso.


NG: Como se dá esse reconhecimento na "letra" borgiana?

IM: Um (re)conhecimento ativo sustentado pelo alegre cinismo, sofisticado e consciente de sua própria literariedade, via aberta, em primeira instância, por um método poético (o termo aqui não tem a ver com o sentido estrito de “poesia”, tradicionalmente circunscrito a versos, sons, rima, metro). Uma imaginação poética que faz da obra do autor mais que um testemunho dos espelhos que refletem nossas máscaras e nossos rostos mestiços: uma intérprete, em última instância, que subverte através do humor. Esse é o theatrum philosoficum encenado, na modernidade, por Borges.


NG: Na sua opinião, qual é o papel que Borges desempenha neste theatrum?

IM: Ele desempenha o papel de um filósofo cínico, ao modo de filósofos da antigüidade grega, indiferente às conveniências sociais, escapando de enveredar num humanismo impotente ou de conferir à ficção a capacidade de salvação da realidade. O alegre cinismo borgiano desmascara e fere de morte o discurso “pedagógico” da nação e do sujeito nacional, articulando um discurso performativo (cf. HOMI BHABHA) que intervém e lança sombras sobre a ilusão de transparência que aquele primeiro engendra. A alegria que se desprende da atuação borgiana assemelha-se às notas agudas de um violino, num canto libertador, um tanto de tango, um pouco de pátria, muitíssimo de sutileza, sagacidade e criação artística, nas noites argentinas.


NG: Com qual autor brasileiro você faria uma paralelo em relação a esse “alegre cinismo” que põe em jogo o “discurso pedagógico”?

IM: De pronto me vem o nome de Oswald de Andrade. A antropofagia oswaldiana, a meu ver, traz o mesmo caráter de encenação de onde salta o alegre cinismo autoral para instaurar o teatro de mímicas da cultura brasileira, também rompendo com a ilusão da verossimilhança realista na discussão dos acontecimentos históricos coloniais e pós-coloniais.


NG: No "Manifesto Antropofágico", Oswald diz: "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Nessa sua leitura, como ele estetiza esses “acontecimentos históricos”, já que seus roteiros antropofágicos não se atêm a conceitos de realidade objetivante e independente do sujeito observador?

IM: Com prodigiosa imaginação criadora, Oswald coloca-nos diante do paradoxo do espelho, da realidade e ao mesmo tempo irrealidade das imagens que nascem e morrem no mesmo ato, através de nossos processos de identificação nacional e de nossas confrontações culturais. O jogo de máscaras e reflexos remete-nos a uma identidade problemática encontrando-se com a alteridade em cenas múltiplas e fugidias. Oswald não cria o mito da pátria. Usa recorrentemente a perspectiva da criança, a dimensão da infância a fim de desautorizar uma possível militância na sua postura crítica. É o homem alegre que escreve.
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Figurações da ficção contemporânea


NG: Com base nas reflexões de sua tese Arte Amorosa e Devoração Literária, como você analisa a ficção contemporânea?

IM: Nesta tese, busquei pensar na ficção contemporânea como protagonista de uma história de relações e vínculos interculturais que se dariam sob a forma de eróticas e anteróticas entre autores, literaturas e povos: amor, amizade, filias, fobias, manias compondo o imaginário dessa produção que – situada dos anos 70 para cá – se converteria num desejo de imitar o outro (pastiche), mas num campo de ambigüidade mimética atravessado por desvios, rupturas, por um despedaçamento desse outro que é imitado. Isso feito com singular subjetividade, extrema liberdade de criação e variedade de perspectivas, desfazendo qualquer identificação equívoca com uma ficção epigônica que assentasse suas práticas no modelo servil entre mestres e discípulos.


NG: Nesse exercício de subjetividades, o que você estudou ao eleger a ficção como personagem dessa história?

IM: Estudei as figurações que essa ficção toma do ponto de vista institucional e simbólico enquanto máquina literária (produção, circulação, editoração, recepção). E do âmbito de uma dramática autoral, feita de jogos e pactos imaginários e simultaneamente de desdobramento de projetos ficcionais que tratam a experiência do tempo e da história em representações fragmentárias, procurei traçar uma configuração da “casa de ensaios”, enfatizando aspectos sociais e a “imagerie” cultural. Isso com base em parentescos fictícios, noções de herdeiros, fortunas críticas, domínios literários, controle de bens simbólicos. Uma “Casa de las Americas” flutuante, sem centro e sem periferia fixas, sem dentro e fora delimitados, numa localização territorial móvel.


NG: De olho nesses princípios de descentralidade e de mobilidade, quais autores você reuniu nesta “Casa de las Americas” flutuante?

IM: Reuni ali Osman Lins, Silviano Santiago, Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll (brasileiros), Ricardo Piglia (Argentino), Julien Barnes (europeu). Hoje, seis anos depois, vejo que minha visão crítica foi muito coerente e conseqüente. Continua dificílimo circunscrever um único paradigma estético, literário, e em vista disso, estabelecer elementos canônicos. A polivalência e pluralidade da ficção contemporânea elaboram o que chamo “narrativas de passagem”, no sentido benjamiano de representações fugidias e múltiplas, exigindo outra noção de duração, escritura e novos guiamentos críticos. É o que posso dizer. Agora, só me resta acrescentar outros nomes brasileiros à lista (minha e arbitrária) de autores da ficção contemporânea: Clarice Lispector (o legado), Nélida Piñon, Lya Luft, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu (o legado).


NG: Além desses autores, como orientadora acadêmica você tem trabalhado com autores díspares como Augusto dos Anjos, João Cabral, Sérgio Campos, Graciliano Ramos, Adélia Prado, Manoel de Barros e Ana Cristina Cesar. O que norteia ou caracteriza sua orientação nestes trabalhos?

IM: O que norteia meu trabalho de orientação acadêmica de dissertações e teses sobre autores díspares entre si? Primeiro, o reconhecimento das diferenças. Segundo, o desejo de não me encerrar em modelos acabados e fixos. Isso traduz uma inquietação que trago dentro de mim, na qual descobri vias de acesso ao crescimento e à maturidade intelectual, além de possibilidades criadoras de pesquisa e ensino. Terceiro, a necessidade que a área de literatura comparada hoje apresenta, ela própria marcada pela polifonia, multidiscursividade e pluridisciplinaridade. Depois, outras razões (inconscientes) que não saberia alinhar e que me constituem.


NG: Dentre essas “razões”, existe alguma de que já tenha consciência?

IM: Conduzir a interrogação crítico-literária sempre mais adiante numa errância mental, íntima, “romântica” - na medida em que isso não se coaduna com as subjetividades humanas produzidas pelo capitalismo - poderia ser mais uma –, dentre outras motivações, as quais organizam e dão coerência à minha atividade de orientadora. Bom, há mais que leituras, lições, falas; há sobretudo, toda uma vida que se vê convocada: a minha e a do outro – o orientando. Espelhando-me em Lacan (relacionado a Freud): esta tarefa não me deixa outra escolha senão entregar-me a ela e dela me ocupar.


NG: Pensando nas leituras, posturas e falas, por que as questões teóricas colocadas pela pós-modernidade causam tanta celeuma nos meios acadêmicos e literários?

IM: Essa pergunta é explosiva! Vejamos: Porque eles (os meios acadêmicos e literários) são assaltados por seus próprios fantasmas – a paternidade textual, a pluralidade de sentidos do texto, a especialidade da literatura (sua literariedade) são alguns deles. As desconstruções do signo literário, as disseminações de sentidos, as hibridizações, os modos de leitura e escritura descontínuos, não lineares. A crise da literariedade, da auto-refencialidade da literatura através de processos como o da alegoria moderna construtiva, ativa, associando coisas dissimilares em montagens e colagens inesperadas. Ruptura do original e da cópia. Tudo isso (e mais) provoca escândalos lógicos e mitológicos. Para completar, o horizonte do cânone fica comprometido. Não há como formular parâmetros e estabelecer pressupostos metodológicos ou formalizações estáveis, garantindo-se uma eficácia universal.


NG: Isso é bom para a literatura?

IM: Se isso é bom ou ruim, não sei responder. A mim, não me cabe o papel de verdugo da pós-modernidade, nem a função de untar com santos óleos teorias, obras ou autores.