sexta-feira, 19 de junho de 2009

Entre a raiz lusitana e a antena mineira





Uma versão desta resenha foi publicada, com outro título, no Suplemento Literário 85, Belo Horizonte - MG, 2002


Raramente desprendemos energias para ler (ou estetizar) uma estação que nos atordoa. Mas nem sempre é assim. Isso pode ser aferido em Outono atordoado – novela do escritor e ensaísta Edgard Pereira, vencedor do 4º Festival Universitário de Literatura da Xerox Livro Aberto (SP). O exercício narrativo do autor e a forma como o seu narrador celebra a estetização da existência levam em conta vários procedimentos estéticos. Dentre esses procedimentos, destaca-se a re-leitura do arquivo de informações e saberes acadêmicos, o diálogo com a historiografia literária e a estética do cinema, além da inscrição de referências filosóficas, musicais, culturais e políticas.

Em Outono atordoado, o autor de Lobo do Cerrado (1996) erige um tipo de narrador pouco estetizado por nossos ficcionistas. Trata-se de um narrador que acessa o repertório do espaço acadêmico, e neste desenvolve suas performances sócio-políticas e culturias. Não confundir, portanto, com o sujeito que possui no magistério a sua ação e que tem na imagem do professor sua marca profissional (nisso nossa ficção é opulenta). É outro o narrador estetizado por Edgard: “entre a academia e a curiosidade” ele pesquisa, ensaia e publica. Além disso, ostenta a ousadia de, acreditando em “coração aceso”, viver – ação às vezes protelada pelo sopro do automatismo que de quando em vez perpassa solenemente os corredores acadêmicos. Nesta novela, o olho curioso que consulta o arquivo acadêmico é o mesmo que vasculha faminto a vida e seu arquivo de formas em ebulição.

É bastante prazeroso o discurso deste narrador de tom sóbrio, elegante. Nenhuma grandiloqüência lingüística, nenhuma trama mirabolante em seu enredo. Nada de estratégias morais e articuladoras do politicamente correto: o texto de Edgard Pereira é despretensioso. Seu narrador, desprovido de aura e ilusão, perdeu a noção de completude; sabe que driblar a falta é o signo nosso de cada dia. Ele aprendeu os limites das revoluções e das vanguardas. Conecta o seu projeto existencial aos roteiros acadêmicos, apostando numa narrativa que opta pelo tempo presente (ele assume pertencer “a uma geração que leu Freud através de Lacan”, e por isso sabe que a ficção é também uma forma de realidade).

Portugal e Brasil são os cenários nos quais o narrador estetiza a “partilha do corpo e da casa”. Para isso, quem narra aciona a leitura dos espaços urbanos – Lisboa e Belo Horizonte, mais especificamente. Se a princípio os dois espaços parecem antagônicos, logo percebe-se que a forma desenvolta como o narrador transita pelo topos que deseja inscrever aproxima as duas cidades. Nesta sintonia entre a antena e a raiz, a voz narrante "historiciza" a nossa infância sócio-política explorada pelos lusitanos. Ao narrar essa exploração, essa voz aciona uma leitura do nosso corpo social, sugerindo no capítulo 3 – onde o discurso corporal do narrador entra em cena –, a leitura da Bahia como nossa lúdica porção “genital”.

A aproximação entre Lisboa e Belo Horizonte possui vários topos. Pode começar, por exemplo, pela lusitana Rua do Ouro – um espaço estetizado num verso do poeta Fernando Pessoa e fisicamente situado na capital mineira. Ao lermos essas aproximações, vislumbramos os reflexos da luz tropical na sombra européia; ou as reminiscências do “ouro das Minas Gerais financiando os sonhos de D João V” (cap. 8). Deste modo, o texto flui porque a cidade lusa pela qual transita o narrador fora antes lida na página literária. No solo lusitano, é possível ler a geometria das ruas pela lente do poema de Cesário Verde (cap. 10). Mesmo a leitura das cores lusas sugere a herança óptica das coloridas fachadas mineiras (Cap. 5), e os olhos da atendente noturna de um hotel no Cais do Sodré remetem aos “olhos inchados das beatas” de Minas. A inscrição da identidade urbana de Belo Horizonte (cap. 9) é uma das folhas mais instigantes deste Outono.... Vejam que forma bela e lusitana de ler uma cidade mineira: “Na encosta de serra mutilada, a Cidade guardou a sina das quedas, a inclinação natural para o lado esquerdo, as revoluções oblíquas (políticas e culturais)”.

Outono atordoado é também uma sutil indagação (ou um claro manifesto?) sobre o corpo. Corpo de uma geração que viveu a repressão política e “a ilusão juvenil de tudo poder reinventar”. Não é à toa que a novela só termina quando um outro corpo começa, nasce. Entre a sutileza que indaga e a clareza manifesta, uma pergunta perpassa o texto a partir do capítulo 10: qual o futuro de uma sexualidade que possui na repressão católica sua base adolescente? Não existe apenas uma resposta para essa indagação. O princípio da ambigüidade evidencia-se na relação com Isaura – a musa lusitana – e nos takes homoeróticos que permeiam a narrativa. Sem grandes dilemas, o narrador transita entre uma e outra esfera afetiva.



Uma outra senha acerca da questão sócio-afetiva pode estar em Onireves - o nome da personagem que assume a sua condição de um Severino às avessas no meio (no meio!) da narrativa. Até o capítulo 10 ele não se identifica. Mas o capítulo seguinte contém uns versos do poeta Hélder Castanho que poderiam muito bem epigrafar esta novela: “Corro por este/ risco: ousadia hesitando entre/ amor e textos” (atentar para o substantivo abstrato no singular).




Intertextos urbanos e literários
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Edgard Pereira envereda por uma trilha cuja “letra” possui na concisão vocabular de Graciliano Ramos e no memorial sucinto e silencioso de autores como Albert Camus suas marcas. A partir destas marcas, é interessante confrontar a velocidade desta narrativa contemporânea com, por exemplo, o ritmo de um romance romântico. Nesse confronto, percebemos que enquanto o narrador de Outono... precisa de apenas uma informação (um parágrafo de dez linhas para registrar uma relação com um corpo masculino), um descritivo texto romântico gastaria vários parágrafos para descrever uma parte do corpo humano (geralmente o corpo feminino). Rasurada (ou descartada?) sua porção romântica, o narrador não consegue ver as estrelas apontadas pela “musa”. Descobre, porém, em Lisboa, que “as luzes da madrugada têm uma cintilação risonha, uma transparência alucinada” (cap. 9).

O diálogo entre as duas cidades – Lisboa e Belo Horizonte – é estetizado através de um profícuo intertexto literário e memorialístico, através do qual se delineia a forma narrativa. Haja citações e releituras de Camões, Pessoa, Sá-Carneiro, Eça, Sena, Cesário, Camilo, Saramago. Da literatura brasileira ouvem-se, neste Outono..., as vozes de Gonçalves Dias, Manuel Bandeira e Carlos Drummond. Essa polifonia literária tranforma a literatura numa das principais "personagens" desta "estação", como demonstra o final do cap. 13:

"Por que um museu de literatura? Como é sabido, graças ao seu exoesqueleto de quitina, a barata é quase indestrutível. A bomba atômica nada pode contra ela. Só ela restará para contar o caso de quando o sol existia para o dia e a lua para a noite e porque, um dia, os homens escolheram não mais ver. Ela e as palavras, conservadas nos livros do museu subterrâneo da literatura. A existência desse museu articula de forma estreita a escrita e a morte. Um inseto vive como eremita na única referência bibliográfica do escritor provinciano num grande dicionário de literatura."


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Os encontros pessoais do narrador com poetas como Hélder Castanho e Afonso Forte constituem-se em pequenas epifanias, através das quais a criação e os seus procedimentos literários revelam-se de forma leve e sutil, fazendo desta uma narrativa que leciona sem parecer enfadonha. Didático, poético ou leitor do trágico, o narrador frui. Sua fruição – oriunda de uma deriva vivenciada nos roteiros urbanos – diz de uma subjetividade construída a partir do texto da cidade onde se lê “as questões sociais pairando no ar carregado”; mesmo quando é “provisória” a relação entre o espaço e este narrador muitas vezes mais poético que narrativo.

Se a literatura é aqui considerada uma das principais "personagens" deste Outono..., é através da poesia que ouvimos uma senha que muito auxilia na construção narrativa. Essa senha remete ao chamado das águas, mesmo quando “todo o cais é uma saudade de pedra!” (Fernando Pessoa). Ouvido atento a esse chamado, o leitor percebe que quando essa “saudade de pedra” ancora no “cais” existencial, é tempo de redescoberta. Ao ler Outono Atordoado descobre-se que descobrir é uma das nossas melhores heranças lusitanas. Descobre-se, sobretudo, um excelente criador. Tomara que chegue logo a próxima estação de Edgard Pereira.