segunda-feira, 15 de junho de 2009

Essa história de ler


Uma versão deste texto foi publicada no Jornalzinho do Sebo Vermelho, ano III, n 18, Natal, 1993



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Oh Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.

Castro Alves


Para Abimael Silva


I

"Profissão: leitura". Quando pensamos na ação da leitura na história da vida humana, percebemos que existem pessoas sobre as quais poderíamos afirmar um certo profissionalismo no ato de ler. Conheço vários exemplares dessa espécie ledora. São pessoas que fazem da vida uma interpretação ininterrupta. Elaboram do mundo e das coisas ao redor uma sintaxe semiótica e tudo lêem: corpo, tarde, estrela, signo, sinal, out door, discurso de rato, vôo de beija-flor, palavra impressa ou oral... Elas aprenderam as lições de Rosa e Jung, e sabem que tudo quanto há é aviso.


II

A existência dessas pessoas transforma-se numa infinita leitura múltipla e intertextual. A maioria delas parece ter sede de uma água que escorre desde há muito. Elas sentem-se, muitas vezes, em descompasso com o seu entorno. Necessitam do suplemento das letras para aplacar essa sede, e projetar algum ritmo no cenário bélico e trepidante no qual lhe foi dado viver. Ou seja: são pessoas “salvas” pelo ato de ler. Pessoas que criam estratégias de leituras a fim de compreender o infinito e mutante texto do mundo. Para muitas delas, tudo o que lhes cai nas mãos é pré-texto para leitura: revista, jornal, bula de remédio, folheto de propaganda, manual que acompanha equipamentos, lista telefônica, livro...


III

Viciados nestes instrumentos de leitura, estes indivíduos portam sempre algum exemplar que o seduz, seja nas filas do banco ou do supermercado, na cama ou no ônibus, ou até no bojo sanitário. Para eles, cada contexto sugere um tipo de leitura. Tenho como amigo um leitor para quem é impossível continuar vivo sem ler concomitantemente, no mínimo, três livros. Um dos volumes é geralmente voltado para as questões de ordem profissional; outro, mais leve e menos denso, vive dentro do bolso ou da bolsa que ele carrega consigo no trânsito diário pela cidade. O terceiro exemplar é sugerido pelo seu projeto existencial, ou seja: consiste numa leitura provocada pelo manual da carne e pelas demandas da mente; pela leitura luxuosa que possui na fruição e, às vezes, no acaso o seu leme. Essa leitura aparentemente sem objetivos práticos, sem roteiros didáticos ou compromissos imediatos é, portanto, a mais produtiva e perigosa; ela foi acionada (ou ditada) pelo desejo de quem lê. Essa leitura prazerosa é, segundo Sábato, a que perdura pela vida inteira. É inútil, segundo Borges, a leitura na qual não predomina o prazer.


IV

Estes leitores são realmente alfabetizados, já que, como diz o poeta Mário Quintana em seu belo Caderno H, os verdadeiros analfabetos são aqueles que aprenderam a ler mas não lêem. O Pai deve perdoá-lo, pois. Eles não sabem o que perdem. Privam-se de embarcar numa viagem que, apesar de aparentemente imóvel, possibilita uma movência produtiva por mares e portos inusitados. Nesse trânsito, quem lê dialoga com várias vozes de universos psíquicos e metafísicos, desata nós abstratos e concretos, e fabrica no corpo um ativo laboratório de percepções.


V

Nos roteiros dessa viagem via línguas e linguagens, as atrações e descobertas são eternas, perenes, universais. Esses roteiros são irrigados pela seiva e pelo sêmen dos séculos. Patrocinam histórias e idéias de múltiplos espaços. Assim, o leitor do final do século XX pode tornar-se contemporâneo de Borges e usar os seus tigres, espelhos e punhais por sótãos e jardins de caminhos que se bifurcam. Pode também, esse leitor, sentir-se compatriota de Buda e perceber que está no caminho do meio a senha de muitas das equações que a matemática existencial propõe cotidianamente a todos, sem dó. Nessa viagem, pode também haver a companhia prazerosa e fruitiva de um autor como Barthes, cuja lição nos ensina ser essa língua que lemos um sistema classificatório e fascista como a maioria dos sistemas que nos oprime ao redor. Com liberdade total o leitor se depara nas folhas das Folhas de Relva, onde Whitman o convoca a tornar-se seu amante. Aí o bicho pega. Todos esses autores desejam, na verdade, uma aquisição que somente Clarice Lispector teve a coragem de inscrever no início de A Paixão Segundo G.H. Desdenhando um leitor ingênuo, eles anseiam por uma raridade: um leitor com repertório e de "alma já formada".


VI

Companheiro de Borges, Buda, Barthes, Quintana, Whitman, Rosa, Jung, Sábato e Clarice, dentre outros, o viajante vasculha o seu inferno ambulante, e fabrica a cota de paraíso que lhe cabe neste planetinha lindo e assolado por tantas guerras. Cônscio de que quem lê vê além, ele lembra a "letra" de Guimarães: “se a visão cresce, o obstáculo é mutável”. O que não muda durante séculos é a ação da leitura: além de tornar mais livres e conscientes os autores e seus leitores, os transformam em pessoas-obras de arte infinitamente li(n)das. Prontas para a devoração da página e do olhar alheios.