quarta-feira, 1 de junho de 2011

Os Sertões e “alguma coisa do temperamento nacional”


Ensaio publicado na revista e-scrita da UNIABREU: http://www.uniabeu.edu.br/publica/index.php/RE/article/view/105


RESUMO

Leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, atentando para as práticas culturais produzidas no espaço e no corpo do sertanejo, e cujos reflexos podem ser lidos no imaginário e no “temperamento nacional”.

PALAVRAS CHAVES:

Os Sertões, Euclides da Cunha, Antonio Conselheiro, Imaginário, Corpo, Espaço.

ABSTRACT:

A reading of Euclides da Cunha’s Os sertões, focusing on the cultural practices produced in space and in the inlander’s body, whose consequences may be found in the imaginary and “national mood”.



I – Primeira leitura do imaginário nacional


...influência do meio.
Este, como que estampa, então, melhor,
no corpo em fusão, os seus traços...

Euclides da Cunha, Os Sertões


Na leitura que faz do “Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária”, a filósofa Marilena Chauí lê um imaginário político, utópico e secular que nos identifica e com o qual dialogamos desde a colonização até hoje. Segundo a referida ensaísta, esse imaginário começou a ser construído com a chegada dos portugueses, e inscreve-se no cânone literário brasileiro através do nosso documento de batismo: a Carta de Caminha. Nela, a partir de procedimentos descritivos e comparativos, Caminha esboça nossos primeiros gestos e atitudes perante o outro.

Os gestos, as imagens, os sons e as formas desse imaginário primeiro construído pelos portugueses traduzem uma política visão de mundo segundo a qual, mediante os homens e a terra encontrados, aqui é o Éden perdido e separado por Deus. A construção desse mito fundador envolve, portanto, dois grandes paradigmas: a Bíblia e a natureza.

Cheio de fé e lindo por natureza, o Brasil é lido como um espaço no qual homens puros e felizes convivem harmoniosamente com a mãe natureza. Seus filhos – futuramente deitados em berço esplêndido (“eternamente”, não esqueçamos) ao som do mar e à luz do céu – seriam governados por um rei em sintonia perfeita com os anseios divinos.

Esta leitura do país como reino da harmonia e a tamanha pretensão de plenitude e magnitude lidas por Marilena Chauí teriam, quatro séculos depois da descoberta do país, um reverso. Isso se dá em 1902 quando o escritor e engenheiro Euclides da Cunha publica Os Sertões. Esse livro aponta para as muitas faces de um Brasil trágico e aflito. País de regiões difíceis, desconhecidas e diferentes onde múltiplas identidades em conflito se interceptam. Espaço bélico, corpo poético.

A leitura desses espaços e corpos aponta para as metáforas e metonímias de uma tragédia anunciada na paisagem de Canudos que nega, repete e agride nos confins da Bahia. Anuncia-se também, essa leitura dos fatos e figuras, no corpo do jagunço do sertão “em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza...”

Essa tragédia anunciada se inscreve com mais vigor no “misticismo feroz” e na utopia delirante de seu personagem principal: Antonio Vicente Mendes Maciel – conhecido como o beato Antonio Conselheiro. Nascido em 1835, em Quixeramobim (CE), Antonio perde os hábitos sedentários e foge, segundo a história e as lendas, de um passado de perdas afetivas e materiais.

Ele vagueia pelos sertões em busca de uma outra identidade e termina erigindo um projeto utópico: “A utopia de Canudos foi resultado de anos de peregrinação, abandono de si, pregação e profecias” . Haveria, entre o beato Antonio Conselheiro e escritor Euclides da Cunha alguma semelhança ou projeção? O ensaísta Roberto Ventura acha que sim. Segundo ele, o escritor fluminense “projetou sobre Antonio Conselheiro e Canudos muitas de suas obsessões, como o temor da sexualidade, da irracionalidade, da loucura, do caos e da anarquia.”

Segundo Euclides, a biografia e a obra do Conselheiro – “grande homem pelo avesso” – compendia muitos dos gestos, traços e ditos que nos constituem. Eles dizem bastante da nossa temperatura e do nosso temperamento, como registra, algumas vezes de forma contraditória, principalmente a segunda parte de Os Sertões: “O Homem”.


II – Texto híbrido e viril que traumatiza e vinga


“Livro vingador”, Os sertões inaugura uma linhagem ensaística que repensa o Brasil e à qual se filia uma tradição que inclui autores como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Paulo Prado e Câmara Cascudo, dentre outros. Influenciado por Teine e outros autores pertencentes ao cânone positivista que perdurou no século XIX, o volume – dividido em “A terra”, “O homem” e “A luta” – é considerado um dos mais importantes retratos do Brasil e ganhou várias releituras críticas e literárias.

Neste livro escrito a partir das reportagens que escreveu para o jornal O Estado de São Paulo, o engenheiro militar de alma aflita recria a guerra e a destruição de Canudos pelas tropas republicanas, há cerca de cento e onze anos no sertão nordestino. O resultado foi o massacre de uma cidade com uma população estimada entre 10 e 25 mil habitantes, em 1897, como anota Roberto Ventura no seu belo esboço biográfico de Euclides da Cunha.

Na leitura de Antonio Cândido, este primeiro livro do escritor nascido em Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro, é um marco. Para o crítico e ensaísta, Euclides concebeu um livro “entre a literatura e a sociologia naturalista”; um livro que assinala “um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira” .

Texto híbrido que rompe com as noções de forma e gênero literário, Os Sertões pode ser lido como um ensaio histórico com tonalidades e sintaxes romanescas. Pode também ganhar múltiplas leituras com desfecho de tragédia, forma épica e alto teor de poesia. Euclides era um exímio leitor de poesia. Adorava os poetas e romancistas românticos. Lia Walter Scott, Fagundes Varela, Castro Alves, Guerra Junqueiro e Victor Hugo, dentre outros, embora tenha sido muito influenciado pelo realismo politizado de Zola.

Na sua curta e produtiva existência de 43 anos, Euclides da Cunha leu, viajou e escreveu muito. Durante suas viagens aos sertões baianos e à selva amazônica, ele leu com o próprio corpo a fauna e a flora brasileiras. Delimitou espaços nacionais e de fronteiras, através de mapas e relatórios infindos. Sentiu os excessos provocados pelo colorido sublime e grandiloqüente da selva e pelo grotesco e sanguíneo da guerra baiana. Dessas viagens e batalhas, o autor voltava doente e violado.

Leitor dos cronistas da época colonial e dos autores que gostavam de estudar o Brasil, como Silvio Romero e Capistrano de Abreu, Euclides gostava de filósofos como Comte e Spencer. Escreveu prefácio para o livro do poeta Vicente de Carvalho e sonetos onde se dizia “cheio de tédio e giz”.

Positivista que era contra a monarquia, escreveu muito em jornal. Por quase duas décadas publicou suas reportagens e ensaios no jornal O Estado de São Paulo. Foi na imprensa que Euclides primeiro criticou a monarquia e depois a falta de limites do lucro burguês, aderindo assim ao socialismo de Karl Marx.

Esse manancial de escritas e leituras oriundas dos mais diferentes campos dos saberes – principalmente da literatura, filosofia, ciência e história – está presente em Os Sertões. Lido também como saga ou epopéia em prosa, Os Sertões ostenta uma das mais volumosas fortunas críticas da Historiografia Literária Brasileira. Desde a sua excelente recepção crítica ainda em 1902, feita por José Veríssimo, o volume registra uma gama de títulos anunciando a escrita interdisciplinar, os procedimentos históricos e culturais e os recursos poéticos e lingüísticos dos quais Euclides lança mão.

A dimensão poética deste livro é tamanha, chegando o seu autor a ser relacionado ao seu contemporâneo Augusto dos Anjos, pelo ensaísta Gilberto Freyre. Alguns críticos ouvem na linguagem de recorte científico e nos polissílabos de Augusto dos Anjos alguns dos tons que anunciam a narrativa poética de Euclides da Cunha. O poeta Guilherme de Almeida, futuro participante da Semana de Arte Moderna de 1922, é um dos primeiros leitores a atentar para o alto teor poético de Os sertões, destacando a “preferência de Euclides pelo verso decassilábico”.

Por essas trilhas de poesia e linguagens múltiplas caminham também os irmãos Campos, em plenos anos 90, atentos ao “barroco científico” do autor fluminense. Esse barroco é registrado por Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, em contraponto a Antonio Cândido e José Aderaldo Castelo, para quem Euclides escrevia num estilo “pomposo e tenso” .

Essa pluralidade de formas que engendram o texto de Euclides da Cunha tem possibilitado um gama de leituras críticas e proporcionado releituras literárias e estudos acadêmicos em torno de conteúdos históricos, culturais, geográficos, filosóficos, políticos, psicanalíticos, estéticos e até matemáticos. Dentre essas releituras literárias de Euclides, destacam-se três romances: A Guerra do Fim do Mundo (1982) do peruano Mário Vargas Llhosa – Prêmio Nobel de Literatura de 2009, Veredicto de Canudos, do escritor húngaro Sámdor Màrai (2002) e A Ressurreição de Antonio Conselheiro e a de seus 12 Apóstolos (2007) do escritor Moacir C. Lopes.

Inúmeros estudos críticos vêem tecendo produtivos intertextos de Os sertões com textos representativos de nossa literatura, como: Canaã, de Graça Aranha, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire e, principalmente, com Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A leitura crítica do século XX demonstra que sem os sertões ásperos e agonizantes de Euclides, não haveria os sertões míticos e lingüísticos de Rosa.


III – Os Sertões: espaço e corpo


Residindo na cidade de São José do Rio Pardo em 1901, Euclides erige, quatro anos após testemunhar a guerra de Canudos, um espaço narrativo repleto de sangue, suor e poesia. Sua arquite(x)tura moderna e literária engendra as dualidades que sedimentam a dialética que perpassa o século XX, expressando as contraposições e os limites entre rural e urbano, utopia e práxis, imaginário e corpo, desejo e lei...

Euclides engendra principalmente o antagonismo entre corpos e espaços. Ele inscreve uma Belo Monte brotada da caatinga, regida pelo Conselheiro e sua opção política pelo Império, contra o espaço urbano da recém instaurada República de Prudente de Moraes no Rio de Janeiro.

Testemunha da guerra, como jornalista de O Estado de São Paulo, Euclides estetiza o universo verbal e histórico do sertanejo pelas duras veredas de um espaço cujos contornos anunciam – nos seus signos naturais e imaginários – “o curso violento das balas” e a morte como uma bem aventurada experiência: “A terra é o exílio insuportável, o morto um bem aventurado sempre”.

Para a tessitura desse espaço onde a morte parece mais cultuada que a vida, Euclides lança mão de uma série de procedimentos estéticos e culturais. Produz um acirrado intertexto com autores como Silvio Romero, Gonçalves Dias e Teine, além de órgãos como a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; mune-se de um sofisticado recorte vocabular oriundo do universo das ciências e faz uso de alta taxa da oralidade sertaneja, por meio das anotações em sua Caderneta de Campo. Esses recursos orais podem ser aferidos nas muitas falas e expressões sertanejas que o autor ouviu da “boca jagunça do povo/ linguagem/ poesia viva/ explodindo em seus tímpanos civilizados” , como diz o poeta paranaense Paulo Leminski.

Em seus Anseios Crítpticos, o poeta do Catatau lê Os sertões como um texto “barroco positivista/ estilo de cipó”. O cipó serve de metáfora para um dos intérpretes do Brasil no final do século XIX: Joaquim Nabuco. “Joaquim Nabuco chegou a dizer que Euclides escrevia com um cipó” . Essa leitura que possui a crítica à linguagem como um dos seus alvos aponta para a gradação estilística e formal produzida pelo autor. Essa gradação formal abrange “um longo percurso textual”, que vai “das anotações às reportagens” até chegar a escrita definitiva de Os Sertões anos mais tarde. Segundo Paulo Leminski ,

Euclides da Cunha...
traumatizou
uma literatura feita por bacharéis
ornamental
“sorriso da sociedade”
brilho dos salões do 2o império



Euclides não é “ornamental”. Sua linguagem precisa mantém viva a narrativa de Canudos. Das pancadas do sertão e do ganzá ao barulho do mar e do “estouro da boiada”, muitos são os ritmos e tons audíveis nas imagens e gestos que compõem essa poética. Na leitura das figurações do corpo em suas relações com o espaço, atentamos para as práticas discursivas que se constroem com base em relações problemáticas e às vezes brutais onde a ação da paisagem sobre o corpo muito pouco tem de leve.

Essas figurações do corpo no espaço são visíveis no discurso e nas ações produzidos pelo jagunço em meio a rudeza espacial de Os Sertões. Neste texto, até os elementos geográficos são lidos como “personagens” históricos, como demonstra a seguinte passagem da primeira parte do volume – “O homem”: “A serra do Mar tem um notável perfil em nossa história.”

Os Sertões é um ensaio de representação do Brasil, através do qual podemos delinear muito da nossa identidade cultural e estética. O texto de Euclides continua produzindo releituras artísticas, como comprova a recente mega- montagem do diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa que, após estrear Os Sertões nos centros urbanos do país em 2007, agitou Canudos (BA) – jovem município baiano, emancipado em 1985. Na época da peça de Zé Celso, uma reportagem do jornal O Globo demonstrava que até 2008 o município possuía pouco mais de dez mil habitantes sem asfalto, cinema ou operadora de celular.

Com base nas relações tecidas entre o corpo e a dimensão espacial onde o imaginário recolhe sua substância constitutiva, dialogamos com Georges Balandier. Segundo ele, “o imaginário encontra sua substância no espaço”. No caso de Canudos, um espaço que favoreceu os sertanejos durante as três primeiras expedições enviadas pela República, e que os derrotou na quarta expedição.

Na narrativa poética de Euclides da Cunha essa “substância” brota dos espaços de rupturas e violências, como o campo de batalha de Canudos – espaço aflito e mortífero onde a organização política e as táticas militares das tropas enviadas pela República refletem “alguma coisa do temperamento nacional” .


BIBLIOGRAFIA

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