quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Assinaturas do In-Visível




Para a professora Claudia Fabiana
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I


Com prefácio do escritor e professor Edgard Pereira, Abreviaturas do Invisível (2009) é o primeiro livro do poeta Paulo Merçon. No texto “Partilhar um pouco de tudo”, Edgard entrega a senha desta poesia que, feita em Itabira, é “cortada por um rio austero” cujas águas são claramente drummondianas em sua tonalidade. Diz o prefácio de Edgard: “Dentre as múltiplas facetas do talento de Paulo Merçon, a tendência a refletir sobre a linguagem poética, a revitalização da metáfora e a escolha da cidade como tema são também traços singulares que de imediato se destacam.”

Ensaísta que possui na poesia de Carlos Drummond um dos seus objetos de leitura, Edgard parece referir-se ao poeta que nasceu em Itabira-MG em 1902, quando ressalta os talentos de Paulo que mora em Itabira em 2009. Leitores da poesia moderna, sabemos que a reflexão metalingüística, a seleção metafórica e a leitura da cidade perpassam as principais poéticas da modernidade, e ganham na produção drummondiana uma acentuada inscrição.

Em Abreviaturas do Invisível, Itabira vê Drummond. Digo: Paulo Merçon lê Carlos Drummond. No recorte vocabular deste livro ecoa uma polifonia de versos e discursos dos quais é audível, com bastante intensidade, a voz do autor de Corpo (1984). Nessa audição, Paulo relê e abrevia as muitas faces do poeta que sabia ter cada cidade a sua linguagem, e que escreveu em Amar se Aprende Amando (1985): “Tendo a Glória do Outeiro, estou com tudo.” Para essas releituras urbanas e abreviações estéticas, o jovem autor lança mão de uma série de procedimentos estéticos como as paródias, os intertextos e as simulações (nenhuma paráfrase, please!), demonstrando ser um poeta do seu tempo. Melhor: lidando com as linguagens do seu tempo.

Atento às nuances deste tempo, o autor constrói um produtivo diálogo com o seu contexto. Isso é louvável, já que a maioria dos jovens autores recorta um contexto pretérito e sua linguagem já dita. Agrada-me muito os versos que estetizam temas e procedimentos contemporâneos, tais como: “Cada e-mail que envio é um sopro/ uma vertigem que escapa, um vôo”. Paulo demonstra ser um exímio leitor de voos, ventos e tempestades virtuais. Rasura, com acerto, assinaturas do vento urbano. Copia as rubricas do seu tempo de iPod e peixe, Internet e engasgos...

II

Voltemos aos procedimentos modernos. O poema “Confidência ao Itabirano” é uma exímia paródia construída a partir do conhecidíssimo texto “Confidência do Itabirano”, do livro Sentimento do Mundo (1940) – o segundo volume de poemas de Carlos que troca o individualismo de Alguma Poesia (1930) por um olhar universal em prol da coletividade. No novo poema, a troca da preposição “do” pela preposição “ao” cria uma inusitada interlocução, a partir da qual o poeta abrevia a visibilidade moderna e a põe, neste milênio, em movimento, desta forma:

enquanto do vidro
do carro Itabira
é a mesma fotografia
(agora em
movimento)

teus versos que
já me doeram mais.

O simulacro poético é o procedimento utilizado por Paulo em “Leitura da Poesia” – poema dedicado ao próprio Drummond –, e que remete ao seu poema “Procura da Poesia”, do livro A Rosa do Povo (1945), onde a necessidade de desvendar o procedimento da criação é imperativo. Assim como no texto do mestre moderno, o poema de Paulo é criado a partir da ironia e da negação (“Não aguarde...”, “Não a disseque...”), e começa com um verso que sintetiza, de certa forma, os roteiros da sua própria poética: “Não procure fartura na poesia”. É muito bom que um poema comece “gracilianamente” expondo os seus versos-ramos.

Outros ecos drummondianos são audíveis no poema “Antiterror”. Nele, o poeta utiliza-se da função conativa da linguagem, em sintonia com o vate de “Consolo na Praia” que diz: “Vamos, não chores.” Paulo torna-se imperativo: “Vamos/ embarque no trem sem receio...” Sem receio é mesmo a forma como Paulo devora Drummond. O poema “Ópera Carioquinha” é um belo e descarado simulacro de “Retrato de uma cidade” – poema no qual o poeta mineiro faz a sua maior declaração de amor ao Rio de Janeiro, ao dizer:

Aqui
amanhece como em qualquer parte do mundo
mas vibra o sentimento
de que as coisas se amaram durante a noite.

...

Em sua “Ópera...”, Paulo musica o formato das ruas e morros da cidade onde nasceu em 1971. E ainda faz alusão a outros poemas de Drummond, como “Inocentes do Leblon” (Sentimento do Mundo). Aqui, o “óleo suave” do mineiro transforma-se em “óleo macio” para a juventude carioca que dialoga com o sul dos próprios corpos.

Referências ao poeta que dizia não haver ausências são infindas. Paulo ainda duvida: “ – a ausência existe?” Essas referências podem ser lidas no “Verso sem gravidade” ou na “Madrugada Mineira”, onde uma “cidadezinha mineira” de Paulo remete a uma “Cidadezinha Qualquer”, de Alguma Poesia, de Carlos. Ou seja, assim como os poetas e os poemas presentes, “o vento sempre inventa outra assinatura”.

Que outros ventos – virtuais, corpóreos, contemporâneos – inventem, assinem e abreviem os próximos poemas de Paulo é o meu desejo. Tomara que ele penetre surdamente no reino dos corpos e das coisas. Assim como o primeiro Drummond, o primeiro Paulo abreviou o corpo. Será que ele também acredita que o amor começa tarde?

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

História com pernoite em albergue

Apesar do branco e da mão na marcha
sigo a senha da sinalização na estrada
e digo: que mais haverá em seguir
senão ir adiante, não parar mas seguir?

O roteiro é curvo. Anuncia em meio
a setas claras e serras esverdeadas
o tempo do amasso e a distribuição
de água para quem tem sede, é só

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Ensaio III



O ensaio como forma estética


Escreve ensaísticamente aquele que compõe experimentando...

(Max Bense apud Adorno, “O ensaio como forma”)



I

Em seu texto “O ensaio como forma”, Adorno trata das relações entre o ensaísta e a compreensão do seu objeto. Ao estabelecer essas relações, o teórico associa o ato de compreender à ação de “extrair aquilo que o autor teria desejado dizer ou, quando muito, as emoções psicológicas individuais que o fenômeno indica”.[1]

Parece que a noção de compreender, na contemporaneidade, pode ser relida. Apesar da importância de detectar o desejo expresso pelo autor, parece-nos que as suas “emoções psicológicas individuais” não se encontram no cerne da questão. Pouco interessa determinar o que o autor sentiu ou pensou (embora não refutemos a emoção, o pensamento e seu cabedal produtivo; longe disso).

O que estamos evidenciando é muito mais a leitura do objeto a partir da relação estética e da experiência formal que o autor produziu. Nossa compreensão não exclui os aspectos temáticos e contextuais, nem a linguagem da qual lançou mão o autor.

Mais: torna-se relevante saber até que ponto podemos “revelar” lances que o próprio autor apenas sugere (ou desconhece) no seu objeto, e estabelecer conexões com outros objetos, fazendo com que eles, ao circular, completem-se ou possibilitem uma outra configuração, como sugere a transcrição benjaminiana no final do capítulo anterior. Esta seria a noção de compreender que mais nos interessa. Uma compreensão que, apostando mais na noção de articulação que nos abissais domínios da profundidade, jamais encerra a palavra final acerca de uma determinada leitura de um dado objeto.

Praticante e defensor do gênero ensaístico, Adorno o lê enquanto escrita mais preocupada com o exercício crítico, na busca de uma verdade “despida da aparência estética”. Com base nisso, o autor assegura que Lukács não percebeu o distanciamento do ensaio da esfera da arte, e por isso leu “o ensaio como forma artística”.[2]

Diferentemente da leitura positivista mencionada por Adorno, não cremos na separação entre conteúdo e forma; o que justifica, de certa forma, nosso desejo de estetizar o ensaio, conferindo-lhe uma “autonomia” formal.

No contexto da modernidade no qual ensaia Adorno, “a separação entre ciência e arte” era “irreversível”.[3] Segundo o autor, ciência e arte vinham se separando na medida em que o “processo de desmitologização” tornou o mundo cada vez mais objetivo. Para ele era “impossível restabelecer” estas relações entre ciência e arte; para nós, torna-se condição, conexão, possibilidade de vida.

Como se alternam as leituras contextuais! Na contemporaneidade, os cenários virtuais demonstram ser cada vez mais notória a aproximação entre os campos da arte e da ciência. O processo interdisciplinar que se instaura nos mais diferenciados ramos do saber – sejam através das tecnologias da inteligência, sejam por meio de subjetivas criações verbais – parece confluir para um intenso hipertexto que a tudo incorpora, na busca de configurar novas produções artísticas e/ou conceituais. (Exemplar dessa visão é a recente conferência de Hans Ulrich, na Casa de Rui Barbosa, na qual o autor de A modernidade dos sentidos sugere para a distinta platéia - formada na sua maioria por ensaístas, críticos, artistas, professores e alunos de Letras e Artes: “ouçam os engenheiros”).

Acho que esse discurso articulatório demonstra que ao ensaísta contemporâneo não mais cabe o papel de “honrar as obrigações do pensamento conceitual”.[4] Não queremos apontar com isso que ao produtor de ensaio seja desnecessário conhecer a história desse pensamento e suas realizações. O que estamos sugerindo é uma outra leitura da metafísica, uma outra metodologia de leitura, uma “reconstrução da racionalidade”, como propõe Vattimo. Almejamos uma outra forma de trabalhar o pensamento presente e que este, ao invés de ser “honrado” em sua imutabilidade, transforme-se, conecte-se com outras instâncias estéticas e /ou conceituais.


I I


Experimentando, provando, tecendo, exercitando – e todos os gerúndios que o verbo ensaiar conjuga, o escrevente contemporâneo corrobora para que a forma do ensaio (e tudo o que este aponta de “falibilidade e transitoriedade”) seja prenhe de invenções. Segundo Adorno, o ensaio “se revolta contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável, o efêmero, não seria digno de filosofia”.[5]

A historiografia do saber humano registra como as noções de movência e mutação sempre incomodaram a raça; como a entrada de técnica em cena possibilitou a emergência de novas idéias acerca dos processos de mutação e movimento. Estas idéias estão também relacionadas com as noções de profundidade (a fixação, o fundamento) e superfície (o móvel, a deriva). Geralmente tais idéias são tratadas de uma forma antagônica que privilegia a categoria do “mais profundo”, como demonstra o texto de Adorno.

Segundo ele, ao descartar a tradicional idéia de verdade, o ensaio apronta uma outra rebeldia: “suspende” o tradicional conceito de método. Tal “suspensão” metódica é exposta da seguinte maneira:[6]

O pensamento tem a sua profundidade conforme aquela com que penetra no objeto, não conforme aquela com que remete a alguma outra coisa. Isso o ensaio emprega polemicamente, ao tratar o que, segundo as regras do jogo, é derivado, sem perseguir ele mesmo a sua definitiva derivação.


Muda o ensaio as regras do jogo? O que Adorno “cobra” como “definitiva derivação” parece estar relacionado com as conexões operadas pelo ensaísta contemporâneo, ao optar pelo momento da infinitude oriunda da reflexão. Este “culto do infinito”, herdado dos românticos, parece apontar muito mais para as conexões de superfície do que para as noções de “profundidade”. Daí porque a idéia de compreensão não deve limitar-se apenas à noção de profundidade do objeto, mas também às associações e tessituras que vão sendo propostas e engendradas na relação entre ele e o ensaísta.

Essa opção por uma ensaística da superfície atenta para o modo como o ensaio expõe seu objeto. Isso se justifica na medida em que nos preocupamos não apenas com a leitura do objeto, mas também e, principalmente, com a forma como essa leitura é feita (qual a sua tonalidade, qual a imagem que ela expõe...).


I I इ


Adorno demonstra brilhantemente como a operação ensaística distancia-se das regras fundamentais do sistema cartesiano que norteou os fundamentos científicos da modernidade. Se naquele contexto já era evidente esse distanciamento, depois que Nietzsche demonstrou que o conhecimento só é vivenciado como metáfora do real e que Foucault “arquelogizou” a historiografia do saber, a distância entre o exercício do ensaio e a escritura cartesiana torna-se óbvia. Além disso, as noções de centro e origem – fundamentais para o pensamento ordenado e gradual de Descartes – tornaram-se obsoletas. A contemporaneidade encena vários centros, desloca o sentido. Refaz permanentemente seu foco.

Outra justificativa adorniana para desconsiderar o ensaio como criação, é o fato dele – o ensaio – ser incapaz de abarcar a totalidade da obra de arte. Perdida a crença nas idéias de fundamento, ordem e totalidade, tal justificativa torna-se datada. E mesmo quando detecta semelhanças entre os procedimentos da arte e do ensaio, Adorno o lê mais “aparentado “ da teoria que da arte.

Adorno ensaia cultuando o imediato. Ele acha que o gênero ensaistico “mascara” “de imediatez” o pensamento; enquanto nós optamos, na reflexão, pelo seu momento da infinitude, como evidenciamos no “Ensaio: uma poética da reflexão”. E nossas “ruminações” prosseguem por formas diferenciadas. Enquanto para Adorno o ensaio apresenta sempre uma “tendência crítica” e está mais próximo da retórica, nós aliamos esta “tendência crítica” a uma outra da mesma dimensão: a estética.

Nesta “tendência” estética, o jogo das idéias e dos sons com as imagens da experiência, as articulações entre os elementos imaginários e os reflexivos, os diálogos entre autores e textos, tudo isso contribui para a construção formal do ensaio. Por isso descartamos a idéia do ensaio como ornamento discursivo – texto elaborado a partir de rígidas regras lingüísticas, cuja retórica tenta alcançar a ordem do científico.

Na contemporaneidade, o ensaio não enseja o “supracientífico” nem teme transformar-se em “mera vaidade pré-científica”. O ensaio ensaia a si. Benjamin não provou nem fundou nada; apenas imprimiu sua leitura num espaço no qual a produção do sentido opera constantemente com as derivações oriundas do devir. Ele articulou os procedimentos estéticos atentando para o predomínio de uma coordenação e não privilegiou a subordinação ou a supremacia de determinado gênero ou discurso. Isso evita a “tensão entre a exposição e o exposto”.[7]

É nesse dialético solo estruturado pelo binarismo marxista que opera Adorno: entre a superfície e o profundo, o estático e o movente, a exposição e o exposto, o efêmero e o eterno. O clássico é sua pátria: to be or not to be. Jamais to be and not to be.

Apesar disso e de concluir ser a “heresia” “a mais intrínseca lei formal do ensaio”[8], o olhar adorniano revela: (O ensaio) “...quer polarizar o opaco, desabrochar as forças aí latentes”.[9] Podemos parodiá-lo dizendo que o ensaio deseja multifacetar o opaco, formatar a força aí latente. Isso, sem esquecer a mais contemporânea dentre as lições de Adorno: banalizar a linguagem, é banalizar o pensamento que ela veicula.


III - Bibliografia


01 - ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores).

02 - AUERBACH, Erich. “L’Humaine Condition” in Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987. (Col. Estudos nº 2).

03 - BORGES, Jorge Luís. “Pierre Menard, autor del Quijote” in Ficciones. 6ª ed. Buenos Aires: Emecé Editores, 1978.

04 - BENJAMIN, Walter. O conceito de Crítica de Arte no Romantismo alemão. Trad. prefácio e notas: Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras/Edusp, 1993. (Col. Pólen).

05 ______“Rua de Mão Única” in: Rua de Mão Única. Obras Escolhidas Vol. II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

06 - CLARO, Sílvia Mussi da Silva. “O ensaio e a aula” In: Dentro do texto, dentro da vida. Ensaios sobre Antonio Cândido. D’angelo, Maria Ângela e Scarabótolo, Eloísa Faria. Org. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

07 - COHN, Gabriel. (Org.). “O ensaio como forma” In: Theodor W. Adorno. Sociologia. 2ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1994. (Col. Grandes cientistas sociais). pp. 167-187.

08 - LIMA, Luís Costa. “No horizonte do autobiográfico: o ensaio” in: Limites da Voz - Montaigne, Schlegel. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1993. pp. 84-94.

09 - PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus. Um elogio do ensaio. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.

10 - PORTELLA, Eduardo. “O Grito do Silêncio” (Prefácio) in A Hora da Estrela. Lispector, Clarice. Rio de janeiro: José Olympio, 1977.

11- ______ “Roland Barthes, e depois” in Terceira Margem. A cultura das cidades & outros ensaios. Revista de Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro: UFRJ. Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras - Pós-Graduação. Ano 3. Nº 3. 1995.

12 - ______ “Trópicos impuros, impudicos e plurais” in O Globo. Prosa & Verso. Rio de Janeiro, 12 de Fevereiro de 2000.

13 - SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia e outros fragmentos. Trad. prefácio e notas: Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994. (Col. Pólen).

14 - VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. trad. Maria de Fátima Boavida. 2ª ed. Lisboa: Ed. Presença, 1987.




Rio de Janeiro, primavera de 2000



[1] Adorno. op. cit. p. 168.
[2] Ibdem., op. cit. p. 169.
[3] Ibdem., op. cit. p. 170.
[4] Ibdem., op. cit. p. 171.
[5] Ibdem., op. cit. p. 174
[6] Ibdem., op. cit. p. 175.
[7] Ibdem., op. cit. p. 186.
[8] Ibdem., op. cit. p. 187.
[9] Ibdem., op. cit. p. 186.Ensaio III

domingo, 27 de dezembro de 2009

Ensaio II

Ensaio: uma poética da reflexão


Pensar, analizar, inventar... no son actos anómalos, son la normal respiración de la inteligencia.

(Borges in “Pierre Menard, autor del Quijote”, Ficciones).


I

Como a autobiografia, o diário e tudo aquilo que Bakhtin enquadrou no grupo de “gêneros menores”, o ensaio é uma “deriva”[1]. Essa “deriva” possui o eu como ponto de partida. Apesar do intertexto que mantêm entre diferentes formas e linguagens, estes “gêneros menores” possuem características bastante distintas. Enquanto a autobiografia, por exemplo, procura confessar, o ensaio busca mais a reflexão; enquanto o diário tenta dar conta do registro presente, a forma ensaística engendra vários tempos.

Por relacionar-se com as dimensões da crítica e da problematização, o ensaio é um gênero que se destaca muito mais pelo levantamento das questões que suscita do que pelo repertório de respostas que venha a insinuar, sugerir ou prescrever.

A partir disso – das indagações e dos questionamentos feitos com base num determinado tema ou numa selecionada forma –, acionamos nossa leitura dessa “deriva” ensaística como uma poética, ou seja: buscamos ler o ensaio como gênero poético-reflexivo que, ao lançar mão de diferentes tipos de discursos, engendra uma poética da reflexão.

Para a inscrição do ensaio como poética reflexiva, tomamos por base os conceitos desenvolvidos por Walter Benjamin na Suíça, entre 1917-1919, em sua tese de doutorado O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão (ao contrário da rejeitada tese de livre-docência – a belíssima Origem do Drama Barroco Alemão –, a tese de doutorado obteve nota máxima, summa cum laude).

A tese benjaminiana divide-se em duas partes: a reflexão e a crítica de arte. Desta tese, interessa-nos basicamente as noções e o conceito que o autor elabora acerca da reflexão; embora estes se encontrem sintonizados com a ordem do universo natural e um romântico recorte vocabular que pouco tem a ver com o nosso. O discurso da crítica romântica é pontuado por vocábulos e expressões, tipo: totalidade da experiência, primeiro gênio, Eu, essência, absoluto...

Apesar desse recorte, dessas crenças e de, por exemplo, lerem na originalidade “a medida mais elevada de todo valor da obra de arte”, o saldo dos românticos é bastante positivo. Uma atenção para o recorte vocabular daquele contexto, e percebemos que a coisa areja: a partir deles, a antiga expressão Juiz da Arte é substituída por crítico da arte. Mas a herança romântica não se reduz às mutações do recorte vocabular. Com base nos românticos arcabouços teóricos, Benjamin pode edificar, para a modernidade, o conceito de crítica de arte daquele período.

Segundo Benjamin, a reflexão é o tipo de pensamento mais freqüente nos primeiros românticos; o que pode ser comprovado pela produção de um pensamento que se concretiza através da construção de fragmentos, como sinaliza Schlegel – o auto cuja obra é a base benjaminiana.

Em sua tese, Benjamin coloca o pensar e o refletir no mesmo plano. Isso é feito a partir do pensar definido por Schelegel como “a faculdade da atividade que volta sobre si mesma, a capacidade de ser o Eu do Eu...”[2]. Para o teórico romântico, o objeto do pensamento é o próprio eu, o que nos remete à etimologia da reflexão e faz-nos deduzir que pensar o objeto é pensar a si. Logo, quando ensaiamos acerca de determinados temas, formas ou idéias, numa correlação que se constitui no objeto de nossa própria matéria reflexiva, ensaiamos acerca de nós mesmos. Com base nessa conceituação esta poética lê o ensaio como gênero da crítica (que tenta refletir ou interpretar sobre) e da autocrítica (cuja reflexão diz do próprio intérprete).

Além de Schlegel, Fichte destaca-se como outro autor fundamental para a tese benjaminiana. Em sua “doutrina-da-ciência”, ele expõe “a interpretação mútua do pensamento reflexivo e do conhecimento imediato”, demonstrando haver, na reflexão, dois momentos: o momento da imediatez e o momento da infinitude (grifos nossos).[3]

Segundo Benjamin, o primeiro momento - a imediatez - “fornece” à filosofia de Fichte a senha para se buscar no imediato “a origem e a explicação do mundo”. Mas a imediatez é “turvada” pela infinitude, e esta termina sendo eliminada da reflexão fichteniana. O curioso é que a infinitude descartada por Fichte gera um dos pressupostos mais importantes daquele Romantismo: “o culto do infinito”. Herança e negação de Fitche, a infinitude transforma-se, segundo a tese benjaminiana, no pensamento mais “original” dos românticos. Na busca da inscrição do ensaio como poética da reflexão optamos, como eles, pelo momento da reflexão que privilegia a infinitude.

Rejeitada por Fichte, a infinitude é re-lida por Schlegel e Novalis não como uma “infinitude de continuidade”, mas uma “infinitude de conexão”. Ou seja: no momento reflexivo da infinitude tudo pode conectar-se de uma “infinita multiplicidade de maneiras”, possibilitando “níveis infinitamente numerosos de reflexão”.[4]

Como percebemos com base no conceito de reflexão, o Romantismo “funda” sua teoria do conhecimento direcionando-a para “o culto do infinito”. Embora essa expressão possa pressupor algo da ordem do infinitamente inacabado, inconcebível, a reflexão “não vagueia numa infinitude vazia”: ela é “substancial e completa em si mesma”.[5]

Desta forma, vale ressaltar que a infinitude romântica está relacionada não a algo “infindável e vazio”, mas a um contexto que cria miríades de possibilidades de conexões. Ou, como diria Hölderlin, via Benjamin: “conectar infinitamente (exatamente)”.[6]

Conectando o momento reflexivo da infinitude romântica com a nossa proposta de lermos o ensaio como uma poética da reflexão, podemos imaginar as diferentes formas e possibilidades de criação que o gênero ensaístico possibilita, através de suas “conexões” e intertextos com outros discursos estéticos, outras esferas do conhecimento. Através de procedimentos paródicos, intertextuais e de simulação, o gênero ensaístico, assim como o romanesco, por exemplo, possibilita a produção de um texto conectado com outros códigos; e embora aponte para algo em aberto, a ensaística – feito a reflexão de origem romântica – apresenta-se “substancial e completa em si mesma”.

A reflexão que é a matéria-prima dos românticos é, portanto, o nosso objeto. “O simples pensar com o algo pensado que lhe é correlato constitui a matéria da reflexão”.[7] Nessa conceituação sistematizada por Benjamin, o pensamento e a reflexão encontram-se no mesmo plano. Não é outra a nossa matéria. Podemos reler essa assertiva benjaminiana dizendo que o simples refletir que dialoga com o algo criado que lhe é correlato constitui a matéria do ensaio.
E se, na teoria romântica, ao atingir o grau do pensar a reflexão identifica-se com o conhecer, podemos imaginar que, ao utilizar-se da reflexão e dialogar com o objeto do ensaio, o gênero ensaístico perscruta novas leituras; o que de certa maneira produz e intensifica outras formas de conhecimento. Noutras palavras: refletir e conhecer são os verbos conjugados por quem ensaia na contemporaneidade.

O exercício da reflexão e do conhecimento remete à problemática da forma, levantada na Introdução deste ensaio e retomada no próximo capítulo. Ela - a reflexão - “no sentido construído pelos românticos, é pensamento que engendra sua forma”[8]. A partir desse exercício reflexivo, herança da teoria romântica do conhecimento, buscamos colocar a questão da autonomia formal referente ao ensaio.

Como observamos na Introdução, a estrutura formal do ensaio pode ser sugerida ou determinada pela idéia ou forma pré-existente que serve de parâmetro para a escrita ensaística. No caso deste ensaio, por exemplo, alguns procedimentos poéticos (a fragmentação) e metalingüísticos (a existência desse parágrafo e o que ele encerra de metalinguagem) determinam os aspectos formais, e justificam-se na medida em que o ensaio ensaia a si próprio, na tentativa de refletir acerca de sua própria poética.

Embora partamos, neste ensaio, da romântica noção de reflexão para construirmos uma poética do reflexivo, nossa conceituação de vários outros elementos diferenciam-se da óptica dos românticos. Diferentemente deles, não associamos o belo à ordem natural, nem o lemos em tudo o que é, simultaneamente, atraente e sublime. Mas concordamos com Schlegel e sua noção de fragmento, tão associada ao ensaio, como vimos na introdução deste.[9] Segundo o autor de Conversa sobre poesia...,


é preciso que um fragmento seja como uma pequena obra de arte, inteiramente isolado do mundo circundante e completo em si mesmo, como um ouriço.


Esta romântica noção do fragmento como obra de arte parece ter influenciado a escritura ensaística do modernidade, como exemplifica a produção de autores como o próprio Benjamin, Barthes e Borges (“Minha obra é feita de fragmentos; é uma miscelânea”). Adorno também se alia a esse time retomando, além da fragmentação do Romantismo, as noções de reflexão e o momento da infinitude. Diz ele:

A concepção romântica do fragmento – como uma formação nem completa nem exaustiva do tema, mas que através da auto-reflexão vai avançando até o infinito – defende esse tema antiidealista no próprio seio do idealismo.


Descrente do idealismo, a escrita do fragmento nada mais traduz que o estilhaçamento do sujeito contemporâneo frente a um metonímico espaço-tempo no qual a simbólica completude metafórica cedeu espaço para a alegórica fragmentação da metonímia. Neste contexto, os questionamentos acerca da representação, das construções canônicas, das noções de autoria, e as novas formas de leituras acionadas a partir da subjetividade maquínica produzida no cenário eletrônico e digital, contribuem para a mutação da própria noção de gênero.

De olho neste fragmentado cenário, ensaiamos uma espécie de exegese: refletir acerca do ensaio enquanto poética que interpreta a si. Quem sabe isso contribua para que o exegeta – deixando de ser um deus que às vezes aparece sem ser invocado – possa ser o sujeito que interpreta impulsionado pelo objeto, pela própria reflexão.


I I

Segundo Auerbach, Montaigne ìnteressava-se “calorosamente pela vida dos outros”, mas desconfiava dos cientistas e historiadores. Dos primeiros, porque aqueles se afastavam do conhecimento de si próprio, em prol de uma inconvincente compreensão das coisas; dos segundos, porque estes, além de apresentar o homem geralmente heroicizado, caracterizavam as coisas de forma fixa, una.

Na leitura empreendida pelo autor de Mímesis, o pai do ensaio “deseja averiguar o comportamento quotidiano, comum e espontâneo dos seres humanos, e para isso o ambiente que o circunda e que pode observar através da sua própria experiência, é, para ele, tão valioso quanto o material da história”[10].

Nesta leitura da condição humana feita por Auerbach a partir dos Essais, os “acontecimentos privados e pessoais” interessam “tanto, ou talvez até mais”, a Montaigne do que as “ações públicas”. Neste sentido, podemos imaginar que, para o ensaísta francês, a dimensão de um involuntário movimento interno seja tão relevante quanto a magnitude de uma programática atitude social.

Ressaltando os temores platônicos, em relação às “leis” do corpo –suas dores e volúpias –, o pai do ensaio outorga ao discurso corpóreo um papel preponderante na constituição do ser. No capítulo “De l’expérience”, destacado por Auerbach,[11] Montaigne expõe sua porção – até certo ponto aristotélica, assim:


...que o espírito desperte e vivifique o peso do corpo, que o corpo prenda a leveza do espírito e o fixe. Não há peça indigna de nosso cuidado, neste presente que Deus nos fez; devemos prestar contas dele, até de um cabelo; e não é, para o homem, um encargo secundário o de conduzir o homem segundo a sua condição.


As relações entre Aristóteles e Montaigne parecem mais estreitas, como insinuamos a seguir. Mas o que mais surpreende na visão do corpóreo Montaigne, além desse apreço pelas minúcias da natureza humana, pela consciência da relação corpo-espírito, é o fato dele habitar o abundante planeta das possibilidades: para o ensaísta, pouco importa se os acontecimentos ocorreram ou não; tudo o que acontece desperta interesse, possui serventia. É o que afirma o próprio autor[12]:

No estudo que trato de nossos costumes e movimentos, os testemunhos fabulosos, sempre que sejam possíveis, servem tanto quanto os verdadeiros; acontecido ou não acontecido, em Paris ou em Roma, com João ou com Pedro, é sempre um aspecto da natureza humana.


A “natureza humana” é o alvo de Montaigne. Desconfiando de si e da possibilidade de estetizar a existência através do registro de ações pessoais, o autor assume sua opção por priorizar a dimensão da fantasia. Essa relevância que Montaigne empresta aos “testemunhos fabulosos”, ao feito “acontecido ou não”, nos faz associar sua ensaística aos princípios da Poética aristotélica. No capítulo IX da referida obra, ao tecer relações entre a poesia e a história, Aristóteles diz da ação de representar o que poderia acontecer como sendo o “ofício de poeta”.

Lendo uma supremacia filosófica na poesia, e ressaltando um maior grau de seriedade desta em relação à história, Aristóteles justifica sua leitura ao inferir que a poesia capta o universal no futuro (do pretérito), enquanto é característica da história narrar o particular que acontece. Essa visão aristotélica é também assumida por “Pierre Menard, autor del Quixote”: “La verdad historica no es lo que sucedió; es lo que juzgamos que sucedió”.[13]

Embora não descartemos, como Aristóteles, o particular da história, observamos que nas leituras dele, de Montaigne e de Borges os “ofícios” do poeta e do ensaísta assemelham-se. Na visão destes autores, o plano da fabulação, as construções imaginárias, ganham dimensão inusitada; o que, de certa forma, associa a criação ensaística às possibilidades de elaboração de uma poética da criação. Uma poética da reflexão na qual criar e pensar sejam ações intercaladas.

Tratando do que Benjamin chama de “estrutura básica da arte”, Novalis ressalta a relação intrínseca que existe entre quem pensa e quem faz poesia. Diz o romântico[14]:


A arte da poesia é certamente apenas uma utilização arbitrária, ativa e produtiva dos nossos órgãos - e, portanto, pensar e poetar constituiriam uma mesma coisa...


Herdada do Romantismo, parece que essa relação entre pensamento e criação ficou muito clara na Modernidade, como anuncia a leitura feita por Benjamin em torno da obra de Baudelaire. No Brasil, a consciência crítica do poeta moderno em relação às linguagens da história expõe-se, por exemplo, em autores como Manuel Bandeira (“Poética” in Libertinagem) e João Cabral (“O artista inconfessável” in Museu de Tudo).

O poeta-crítico aprendeu a lição borgiana do “Pierre Menard, autor del Quijote”: “...censurar y alabar son operaciones sentimentales que nada tienen que ver con la crítica”.[15] Ao invés de nuanças sentimentais, o poeta-crítico da modernidade lançou mão do repertório, da reflexão, tecendo outras releituras.

Segundo Benjamin, os românticos “fomentaram a crítica poética”. Através deste “fomento” tornou-se possível superar a distância entre os procedimentos críticos e poéticos. Sobre essa aproximação entre os procedimentos – que remete ao nosso projeto de uma poética da reflexão e sugere a possibilidade de alçar o ensaio ao estatuto de obra de arte –, ouçamos as idéias românticas transcritas por Benjamin[16]:

Um juízo de arte que não é ao mesmo tempo uma obra de arte, ...como exposição de uma impressão necessária em seu devir, não possui nenhum direito de cidadania no reino da arte...

Essa crítica poética... exporá novamente a exposição, desejará formar ainda uma vez o já formado..., irá completar a obra, rejuvenescê-la, configurá-la novamente.

Boa leitura fez Lukács ao ler o ensaio como forma artística. Benjamin não apenas leu como fez romper essa forma. Construídos num estilo que aproxima procedimentos literários de experiências pessoais, reflexões metafísicas e construções imaginárias, os textos de Benjamin seduzem. Neles convivem de forma interdisciplinar a filosofia e a história, a literatura e as outras artes, tornando intertextual a construção de um saber que media o fazer ensaístico, o processo crítico.

Benjamin percebeu que as formas literárias são mutantes; e experimentou o ensaio como forma através da qual patrocinou sua própria ruptura. Como crítico ”ruminante” das metamorfoses da modernidade, Benjamin aprendeu a lição de Schlegel: “Um crítico é um leitor que rumina. Ele deve, portanto, ter mais de um estômago”.[17]


NOTAS



[1] Lima. op. cit. p. 88.
[2] Benjamin. O Conceito de Crítica de Arte... 1993. p. 30.
[3] Ibdem., op.cit. p. 35.
[4] Ibdem., op. cit. p. 36.
[5] Ibdem., op. cit. p. 40.
[6] Ibdem., op. cit. p. 36.
[7] Ibdem., op. cit. p. 37.
[8] Ibdem., op. cit. p.
[9] Schlegel. op. cit. p. 103.
[10] Auerbach. op. cit. p. 266.
[11] Ibdem. op. cit. p. 270.
[12] Ibdem. op. cit. p. 266.
[13] Borges. Ficciones. 1978. p. 57.
[14] Benjamin. op. cit. p. 73.
[15] Borges. Ficciones. 1978. p. 50.
[16] Benjamin (1993). op. cit. p. 77.
[17] Schlegel. op. cit. p. 83.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Ensaio I









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Mário de Andrade e Câmara Cascudo no RN




Texto escrito a partir de uma monografia acadêmica produzida no curso de doutorado “Protagonistas e Coadjuvantes da Modernidade”,UFRJ, 2000.


“o ensaio como exercício da escrita”


Em 1999, ao responder a uma enquete do Jornal do Brasil, o escritor João Gilberto Noll disse estar lendo “muito Walter Benjamin”. Segundo o autor de A céu aberto (1996), ao revelar uma voz “quase” “ficcional”, o texto do ensaísta e pensador alemão “substituiu um certo tipo de romance que anda meio escasso”.

Assim como Noll, Benjamin escrevia “sob o livre céu de Deus”[1]. Por motivo dessa sintonia, ele talvez gostasse dessa outra percepção literária do final do século XX: um escritor contemporâneo dizer da “substituição” da voz romanesca pela voz ensaística de tom “quase” “ficcional”.

Apesar de o gênero ensaístico nascer com Montaigne e seus Essais (séc. XVI), trazendo em si um forte traço subjetivo, a historiografia das formas literárias jamais associou o ensaio aos gêneros nobres. O ensaio surgiu como texto curto, miscelânea, escrita pessoal. Não teve, por exemplo, a recepção tida pelo gênero romancesco. Embora seja bom lembrar que, da origem folhetinesca do romance até a sua ascensão nos séculos XVII e XVIII, sua história não parece tão “nobre” assim. Um retorno rápido ao contexto do Romantismo alemão, e nos deparamos com a seguinte assertiva de Schlegel: “O contexto dramático da história não faz do romance, de modo algum, um todo, uma obra”[2].

Aqui deste contexto moderno, nossa percepção é outra: longe vai o tempo no qual Aristóteles, com base nas sua idéias de semelhança e imitação, elegia como gêneros constituintes de uma certa nobreza artística “as formas trágicas (a poesia austera)”[3].

Supremacia entre gêneros à parte, o gosto pelo ensaio vem dos primórdios. Em 1583, ao traduzir para o latim os Essais como gustus (de gustare - saborear, provar), o filólogo holandês Justo Lípsio já apostava nessa forma cuja dimensão subjetiva buscava “escutar a si próprio”.[4] A essa dimensão ensaística filiou-se, desde o final do séc. XIX, uma linhagem de autores como Freud, Marx, Benjamin e Barthes, dentre outros, redimensionando a densidade do ensaio e a sua forma leve de expressar opiniões.

Acionada por esses autores, a ruptura da forma ensaística caracteriza-se pela inserção de uma mescla de informações teóricas, junto a experiências existenciais e profissionais. Some-se a isso, as reflexões pessoais e a introdução ao ensaio de um “tom imaginário” (Ana Cristina Cesar.). Fruir e refletir são os verbos conjugados pelo ensaísta moderno. A partir disso, a substância histórica, a dimensão cultural e o aparato formalístico do ensaio ganharam novos “tons”.

Após a ruptura de gêneros patrocinada pela modernidade, o texto ensaístico – aberto a outras formas e dialogando principalmente com a ficção e a filosofia – parece adquirir cada vez mais um estatuto de aceitação em meio aos gêneros considerados “nobres”. Essa aceitação começa a ser mais assumida a partir do surgimento do poeta-crítico da modernidade. Na contemporaneidade, é cada vez mais consensual a idéia de que, assim como o gênero poético ou o romanesco, por exemplo, o gênero ensaístico pode também alçar ao estatuto de obra de arte.

Trazendo para o seu corpus elementos referenciais, reflexivos e imaginários, o ensaio adentra o próximo milênio com uma dicção múltipla. Seus “tons” e timbres remetem a vários contextos históricos /estéticos: às vezes lembram a melodiosa voz narrativa cuja oralidade embalou os narradores anônimos; noutras vezes, os tons ensaísticos reportam ao ápice romanesco cuja linguagem ritmou os iluministas; remetem também aos experimentos modernos iniciados no final do século XIX e radicalizados pelas vanguardas do século XX. Adentrando o século XX, os timbres do ensaio apontam para os tons bruscos, às vezes ásperos e certeiros, herdados dos discursos da contracultura; ou ainda sintonizam-se com a tonalidade de “superfície” da era do virtual, das performances identitárias.

Como o romance, o ensaio tornou-se híbrido e polifônico. Em seu corpus o elemento biográfico, a “memória da pele”, o discurso corporal, a leitura da cidade, os cadernos diários, viagens, impressões cotidianas, as mutações do texto literário, a sala de aula – tudo pode ser incorporado à “arquitextura” ensaística.

Tomemos como exemplo o caso do professor e sua escrita. A articulação que esse personagem desenvolve entre a prática do magistério (a performance da sala de aula) e a produção ensaística (“o ensaio como exercício da escrita”) parece definir, em muitos casos, a forma do ensaio erigida por este personagem – o ensaísta, profissão: professor. Sobre essa relação intrínseca entre o exercício do magistério e a produção ensaística, ouçamos Sílvia Claro. Ao ensaiar acerca da sincronia entre “o ensaio e a aula“ na obra de Antonio Candido, ela diz:

O ensaio falado da sala de aula enseja o ensaio escrito, impresso, definitivo, cristalizado, mas ainda sempre marcado pela ebulição no laboratório da classe. O ouvinte atento da palestra é parâmetro palpável do leitor afastado, longe da vista.


Se o ouvinte presente é “parâmetro” para o futuro leitor e o ensaio pode ser lido como “exercício da escrita”, a aula (e seus elementos) não poderia ser acionada como exercício da forma ensaística? Essa forma é justamente o objeto de cobrança de parte da crítica literária ao ler o ensaio como “produto híbrido”, desprovido de uma tradição formal.

Esta “hibridez” e a descrença desse “produto” enquanto gênero são os elementos ressaltados por Adorno na leitura que ele faz de “O ensaio como forma”. Publicado na década de 50, o texto adorniano tece intertexto com, dentre outros, Nietzsche, Max Bense e Lukács – leitor do ensaio como “forma artística”, e demonstra o elegante exercício da escrita operado pelo pensador da Escola de Frankfurt.

Adorno interpreta o ensaio como “um protesto” contra o sistema de pensamento cartesiano. Sua escrita detona a “intuição intelectual” de Kant e a “transcendência da linguagem” oriunda de Heiddegger, sem remeter sequer às duas principais fontes da tradição ensaística: Montaigne (França) e Bacon (Inglaterra).

E para justificar a discriminação sofrida pelo ensaio naquele contexto, o autor diz da impossibilidade de prescrever “o âmbito” da “competência” ensaística. Acerca do gênero em questão diz Adorno:

Ao invés de executar algo científico ou produzir algo artístico, o seu esforço ainda espelha a disponibilidade infantil, que, sem escrúpulos, se entusiasma com aquilo que outros já fizeram.


Impossibilitado de “executar” algo nos domínios da ciência ou da arte, o gênero ensaístico, na visão ressaltada por Adorno, “espelha” sua falta de maturidade. De quantos olhares diferentes constitui-se a modernidade! Não seria exagero referir-se à falta de “escrúpulos” no caso de alguém criar algo a partir de outrem ou entusiasmar-se com os feitos de uma outra voz?


A leitura intertextual e, às vezes, até os procedimentos da cópia, da citação e da simulação operados por Benjamin, Barthes, Borges e/ou Bakhtin, na modernidade, prescreve no diálogo com o outro – a tradição – uma das possibilidades de re-leitura do texto, do contexto, do próprio cânone literário.

Nessas releituras, Borges – leitor do diário, do sonho e da enciclopédia como gêneros literários – é exímio. Exemplar disso é o seu “Pierre Menard, autor del Quijote”, texto de Ficciones (1941). Neste conto de cunho eminentemente ensaístico, Borges cria um “rol de escritos” que ele define como “um diagrama” da “história mental” de Pierre Menard, seu personagem. Autor do século XX, Menard tenta reescrever o Quixote com as mesmas palavras de Cervantes – um escritor do século XVII. Claro que a empreitada consegue outros intentos, mas Borges evidencia sua crença de que é possível atribuir um mesmo texto a diferentes autores em contextos diferenciados.

O texto ensaístico abre-se a essa re-leitura. Parte sempre de um aspecto formal preexistente (o próprio Cervantes tem nas novelas de cavalaria a forma a partir da qual constrói seu romance). O ensaio refere-se, geralmente, a algo criado a partir de uma forma. Ou seja: o texto ensaístico, na maioria das vezes, nasce a partir de algo que insinua, sugere ou determina, a sua própria formação.

Embora seja cobrado deste gênero uma autonomia formal há, em relação ao ensaio, sempre uma forma a priori. E como as formas são socialmente construídas, podemos pensar que: não apenas em relação ao gênero ensaístico, mas a quaisquer gêneros aos quais o autor submeta-se, existe sempre um arquivo de formas historicamente pré-determinadas apontando, de certa forma, os limites de sua criação (ou, como dizia o catatau Paulo Leminski, o poeta já nasce meio que aprisionado por um determinado “estoque de formas”). Mas não apenas os poetas que escrevem ensaios são cônscios desse aprisionante estatuto das formas. Percebendo “que o significante acompanha ou orienta as batidas cardíacas do texto”[5], o ensaísta Eduardo Portella também diz da forma como “responsabilidade de todo e qualquer escritor”.

A “disponibilidade infantil” e a falta de “escrúpulos” da visão ressaltada por Adorno parecem apontar, no exercício do ensaio, para a carência de idéias de fundamento (texto científico) e para a noção de originalidade (obra de arte). Essa leitura sintoniza-se com uma romântica visão de mundo que credita a “algo primeiro” a condição a partir da qual se torna possível criar.

Em seu ensaio, Adorno associa essa visão a uma leitura positivista que aposta no “purismo científico”. Ele crê na possibilidade de desvelar e manter intacta a objetividade do objeto ensaiado (como se fosse possível a apreensão de uma verdade independente do olhar que a constrói). Mas aqui o próprio Adorno dá a senha: “Naquilo que é enfaticamente ensaio, o pensamento se liberta da idéia tradicional de verdade”.[6]

A visão que cobra essa objetividade parece sintonizada com um olhar que vislumbra ser possível ancorar, ad infinitum, em algo da ordem do real, o verdadeiro. Dessa crença distancia-se o ensaio. Este gênero parece mais próximo do efêmero e do fragmento. Sugere uma forma que “prefere perenizar o transitório”[7], descartando conceitos calcados nas idéias de ordem, totalidade e fundamento. Tecendo relações acerca do “vazio correlato ao indivíduo” e da produção ensaística, Costa Lima[8] associa o ensaio à fragmentação, assegurando:

...o fragmento partilha com o ensaio o caráter de inacabamento e de ser uma individualidade e não a expressão de algo anterior. O fragmento é a forma mínima do ensaio. ...Fora de distinções temáticas, que diferenças há entre um fragmento de Pascal e um ensaio de Montaigne além da expansão do segundo ou, inversamente, da redução em que se deixa o primeiro?

Fragmentado, o ensaio enseja uma outra ordem. Ele nada funda. Da fenda onde fabrica e faz circular sua linguagem, ele mais aponta, insinua, desloca. Dilata o ensaio os limites da forma textual (assim como a poesia exercita o limite da linguagem). O ensaio repassa outra forma, outra senha. “Impulsionado pela movência, o ensaio não tem ponto de repouso”[9].

O ensaísta contemporâneo sabe da impossibilidade de idetificar-se com algo que remeta a um centro fixo e às idéias de plenitude e totalidade. Ele percebe que a construção da verdade, na pós-modernidade, torna-se viável a partir de experiências estéticas e retóricas, ou mesmo a partir de experiências ficcionais e/ou poéticas. Isto vincula a idéia do verdadeiro à perene “substancialidade da transmissão histórica”.[10]

Nesta “substancialidade” “histórica”, o dado provisório, o elemento cotidiano ganham aumento na lente de quem ensaia. Isso é exemplificado, por exemplo, na prática ensaística de autores como Câmara Cascudo ou Gilberto Freyre – autores às vezes propositadamente assistemáticos no que se refere à produção de suas obras.

Freyre e Cascudo desceram os degraus da Casa Grande... e, às vezes deitados na Rede de Dormir, ensaiaram uma outra nação. Nesse moderno ensaio da nacionalidade, eles transpuseram, “o gueto das disciplinas fechadas”, narraram o Canto de Muro e os Sobrado e Mucambos... Tendo como “foco narrativo” o nordeste brasileiro, os dois ensaístas cruzaram outros “olhares, percepções, linguagens” [11]. Nesse cruzamento, levarem em conta outros elementos como: os cheiros do curral e da feira, os sabores da cana-de-açúcar e do sal, a fala e os gestos lentos, precisos, às vezes contrafeitos. Não deixaram de fora das suas escrita o corpo “desengonçado, torto” e os harmoniosos passos do maracatu.

Para quem ensaia não existem coisas banais. Todos os elementos inserem-se numa ordem instaurando os objetos e as idéias na historiografia do saber e da cultura. Na história ensaística, tem a palavra Montaigne[12], cuja necessidade de “escrever o punha à procura de uma forma”:

As coisas mais ordinárias, mais comuns e conhecidas, se soubermos trazê-las à luz, poderão formar os maiores milagres da natureza e os mais maravilhosos exemplos, sobretudo em relação às ações humanas.


Talvez a tentativa de inscrever as “coisas mais ordinárias” e “comuns” traduza o desejo de elaborar-se uma poética do referente, uma poética da reflexão; uma poética do que é (aparentemente) menor ou até superficial. Para a inscrição desta poética, pensamos numa produção ensaística cuja reflexão “abarca o máximo da realidade dos sentidos”,[13] lançando mão do que a fantasia produz de infinitude e conexão, entusiasmo e imaginação.

Imaginamos que o engendramento formal, possibilitado pelos atos de refletir e conhecer, possa vincular-se à ação da escritura, constituindo-se na própria forma ensaística. Atentamos assim para a legitimação de uma poética que ao invés de expressar, tenta inventar a sua própria forma. Uma poética que, descartando o abismo, pode eleger a superfície como espaço privilegiado de sua inscrição formal. Forma que exercita a sua escrita ao apostar na pele virtual enquanto signo contemporâneo.



NOTAS


[1] Benjamin. Rua de Mão Única. 1995. p. 38.
[2] Schlegel. Conversa sobre a poesia... 1994. p. 67.
[3] Aristóteles. Poética. 1973. p. 446.
[4] Montaigne apud Auerbach. Mímesis. 1987. p. 258.
Sobre essa escuta de si, é pertinente lembrar Walter Benjamin: “Ser feliz significa poder tomar
consciência de si mesmo sem susto” (Benjamin. Rua de Mão Única. 1995. p. 37.).
[5] Portella. “Roland Barthes, e depois”. Terceira Margem. 1995. p. 169.
[6] Adorno. “O ensaio como forma” in Adorno. 1994. p. 175.
[7] Idem., op. cit. p. 175.
[8] Lima. Limites da Voz - Montaigne, Schlegel. 1993. p. 88
[9] Idem., op. cit. p. 88.
[10] Vattimo. O Fim da Modernidade. 1987. p. 16.
[11] Portella. “Trópicos impuros, impudicos e plurais” in O Globo. 2000. p. 03.
Neste ensaio, o autor refere-se especificamente à produção de Gilberto Freire, como obra primeira na “compreensão cultural das raças”, destacando seu pioneirismo ao “contar as pequenas histórias da vida privada”.
[12] Pinto. Alberto Camus. Um elogio do ensaio. 1998. p. 101.
[13] Ibdem., op. cit. p. 41.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Malabaristas

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Se Na esquina – o Cd de João Bosco lançado em 2000 – sugeria o espaço público como signo que celebra a existência na sua dimensão comunitária, o atual trabalho do artista continua ratificando esse elemento “comum”. Isso pode ser aferido já na pluralidade do seu título: Os malabaristas do sinal vermelho (2003).

Enquanto Na esquina ouvimos reagge, canções mais “palatáveis” e versões de clássicos populares como “Sibonei”, o cd Os malabaristas... aposta no que sempre norteou a profícua trajetória de João Bosco: um denso intertexto entre a riqueza dos ritmos, as melodias sofisticadas e a lapidação das letras.

Diante da impossibilidade de cantar e inscrever a totalidade num mundo pós-11 de setembro, João e Francisco Bosco optam por um olhar metonímico por meio do qual dão visibilidade aos que param no sinal vermelho: aqueles que caminham pela lateral, pela margem; aqueles que ocupam o palco – o centro da rua – quando o sinal fecha.

O Cd comemora trinta anos de carreira de João. É a terceira obra em parceria com seu filho, o poeta e ensaísta Francisco Bosco. Trata-se de um trabalho radical, no sentido de não fazer concessão a modismos. Estamos diante de um denso momento da MPB neste início de milênio.

Poucos trabalhos contemporâneos documentam com tamanha maestria o imaginário do seu tempo como Os malabaristas... O cd resgata os tempos áureos da música brasileira feita nos anos 70, quando a melodia e a letra das canções pareciam ter atingido aquela zona tensa e dialógica, entre som e sentido, de que fala Valéry, e que caracteriza as poéticas da modernidade.

O Cd é de uma contemporaneidade contundente. A canção de título homônimo que o abre já anuncia a que ele se destina: falar deste tempo. E para dizer do presente, João e Francisco entoam os temas que nos circundam: a narrativa da cidade, a identidade dos excluídos, suas histórias moventes, deslocadas. Sem se preocupar com paliativos nem roteiros midiáticos, e de olho no bruta treva do presente, a dupla entoa “Os anjos” que “partem armados em bondes do mal”, incluindo aí os que “rezam” e os que “matam”.

Não é à toa que o Coral da Escola de Música da Rocinha canta na primeira faixa os seguintes versos: “Daqui de cima da laje/ Se vê a cidade/ Como quem vê por um vidro/ O que escapa da mão”. É uma abertura deslumbrante para os que se equilibram, jogando habilmente com as circunstâncias – os malabaristas do sinal, da vida, do terreiro (“Terreiro de Jesus” já nasceu clássica).

Esse equilíbrio é também audível na vitalidade da voz de Seu Jorge em “Cidade Cinema”, onde há um “mapa tatuado na sola dos pés”. Seu Jorge carrega na voz a densidade e a velocidade urbanas, assim como João transporta no seu canto a tradição do lirismo lusitano com um afro lamento árabe. Em algumas faixas parece ecoar a celebração meio melancólica e visceral do canto de Clementina de Jesus. Em outras, as lembranças dos violeiros do sertão nordestino ou um lamento mineiro ecoando pelo mundo.

Essa melancolia é audível, por exemplo, na belíssima canção “Moral da História”. Nela o verso “melancolia das estrelas” é entoado com tamanha densidade, a ponto de sugerir o quanto de dor pode comportar a visão dos astros num cenário onde as luzes do Vidigal e da Rocinha anunciam a treva que acoberta Deus e o Diabo na disputa pela terra do sal.

João canta o afeto e o terror. Celebra o lamento e a fé, a falta de arrependimento e o peso do tempo, utilizando-se de todos os timbres e tons do seu vasto arquivo musical. Francisco não deixa por menos: neste terceiro trabalho em parceria com o pai, é visível o seu equilíbrio como malabarista da palavra.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Um depois um








Texto escrito para o Curso “O Moderno e o Pós-Moderno”, ministrado pelo prof. David Jackson na Especialização em Literatura Brasileira na UFRN, Natal, 1991

Viagem estética e galática a bordo do fragmento "Um depois um" do livro Galáxias, de Haroldo de Campos

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I


Numa viagem pela linguagem Haroldo percorre no livro-poema Galáxias a pátria da página e nela instala fragmentos mentais de um discurso galático cujo ritmo e sonora idade determinam a vida paixão e morte da palavra morta apaixonada e viva, como quem esculpe a cara clara da página na folha da folha de relva da selva de pedra e palavra caras que nada valem neste vale tudo e sabem-se contidas ditas benditas mil vezes lidas para a lida como quem lida com a água líquida liquidando o ombro a mão o galão do galã guardião do signo aquático no parque mágico onde soam água puras cristalinas esverdeadas do poço do tanque do mar onde tudo é nada e o “mito é o nada que é tudo”

II

Tudos traz Arnaldo Antunes num texto que diz de um outro e outro mais Um Depois Um como outros fragmentos galáticos apresenta em seus traços em suas palavras a ponte para a grande viagem sem volta nem fim como livro e este como viagem que se desfaz desescreve e espera

III

Feito Godot na eterna espera do nada um grupo de jovens – 5 ou 6 dependendo do ritmo da leitura – numa estação de trem alemã celebra o nada – inimigo da conduta moral planetária – prenunciado nas massas marrons mascadas chupadas enquanto chega a polícia cobrando identificação de quem perdeu a noção de unidade totalidade identidade

IV

Em cenários nos quais as relações de espaço determinam conexões com o poder, os jovens são eternos viajantes atores em cenas de encontros e despedidas num tempo onde “há tempos são os jovens que adoecem” e o gado pasta o nada e a perda produz encontro.

V

Caracterizado como “esquizoide e permeável a tudo” (Sérgio Paulo Rouanet), o homem pós-moderno substituiu a justificativa estética da vida (característica do Modernismo) pela justificativa pulsional. Na construção do texto passam a valer os processos textuais que se sobrepõem aos níveis estético e temático.

VI

A palavra e o significante são os grandes personagens do texto onde a escrita é o corpo.

VII

Seguidor da vertente oswaldiana de modalidade cultural, Haroldo transcria Homero, Dante, Mallarmé, Goethe, Mayakovski e compõe um texto marcado pela proliferação de imagens, re-produções, recortes, fabricando um escrita que se vê, olha a si própria, possibilita uma leitura plural, uma plurileitura onde a fala descãimbra e a narrativa desnarra, deságua numa galáxia sonora que só se reconhece como ritmo, forma, significante...

domingo, 20 de dezembro de 2009

Saberes, Práticas e Escolhas












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Livro de Heloísa Buarque de Hollanda traduz sua atuação reflexiva e pesquisa dialógica

Resenha publicada no Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio, 19 /12/ 2009

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Viagens de Dona Helô

O memorial acadêmico é uma forma estética muito praticada. Todos os professores universitários escrevem, mas pouquíssimos publicam. Texto reflexivo centrado na autoformação e na reinvenção de si, o memorial pode ser lido também como narrativa autobiográfica. Assim sendo, contém dados referenciais, elementos estéticos e figurações da memória em torno da profissão e da existência de quem o escreve. Esses dados, elementos e figurações compõem as Escolhas que a ensaísta e professora Heloísa Buarque de Hollanda acaba de publicar pela Ed. Língua Geral.

Com trânsito historicamente inscrito em gêneros nobres como a poesia, Heloísa nunca escondeu o seu afeto pelos gêneros “menores”. Como escritora ou editora, ela sempre tornou público o seu gosto descarado por cartas, biografias, diários, relatos e tudo aquilo que o Bakhtin enquadra num certo grupo especial de gêneros. A esse grupo associam-se as escritas da memória – autobiografias com passagens assumidamente ficcionais, como as estratégias que sedimentam essas Escolhas.

Com organização de Ramon Mello, prefácio de ponta de Beatriz Resende e orelha de Zuenir Ventura, a autobiografia intelectual de Heloísa compõe-se de um memorial acadêmico e de um texto atual escrito a partir de entrevistas. Contém fotos acesas e uma narrativa histórica que muito traduz das artes e culturas produzidas no Brasil a partir dos anos 60 até hoje.

Essa narrativa é bastante política e pedagógica. Perpassa grande parte da historiografia dos saberes e das práticas culturais sobre os quais Heloísa refletiu, lecionou e escreveu nas últimas 5 décadas. Ou seja, essas Escolhas ratificam os temas da sua paixão: poesia, cinema, teatro, antologias, feminismo, relações de gêneros, pós-moderno, estudos culturais... O livro registra também os recentes estudos em torno das Estéticas da Periferia, o diálogo com as Vozes das Quebradas, via Numa Ciro, a escrita virtual, a vida literária na Web...

Se, como afirma Bauman, ser moderno é estar em movimento, Heloísa é o signo da modernidade em si. Suas trajetórias são marcadas por trânsitos, deslocamentos, viagens infindas... Passagens que elegem o hoje, o contemporâneo como tempo de inscrição. Suas intervenções em várias instituições e programas – UFRJ, TVE, MIS, CIEC, Funarj, Funarte, CNPq... – testemunham a movência em torno dessas Escolhas.

Elas traduzem a atuação reflexiva, a pesquisa dialógica e a práxis de uma existência corpórea calcada naquele “saber com sabor” de que fala Roland Barthes – um teórico para quem “o contemporâneo é o intempestivo”, e com quem a autora se diz identificada.

Dama das Passagens

Incongruente. Esquisita. Antenada. Tsunami. Insolente. Absurda. São muitos os adjetivos utilizados para cognominar Dona Helô. Literariamente conhecida como “a primeira dama da poesia”, ela narra como viveu a metade da década de 70, em plena repressão militar, sintonizada com a poesia marginal de Cacaso, Chico Alvim, Waly Salomão e, dentre outros, Ana C.

Do alto dos seus 70 anos, a professora titular de Teoria Crítica da Cultura da UFRJ apresenta uma espécie de texto da urgência, escrito “nas trevas do presente” (Agamben), onde elementos da cultura, da política e da estética configuram a sua “categoria da presença” (Jackson de Figueiredo), seja como administradora, como intelectual ou como consultora acadêmica e cultural.

Entre o plano da liberdade e a forma estética, as interferências discursivas de Dona Helô apontam para um dos seus antigos objetos de estudo: o ensaio de Walter Benjamin e a sua forma alegórica de ler o texto do mundo. Como o autor das Passagens, Heloísa assume o seu investimento na cultura urbana, na leitura dialógica entre diferentes espaços. Opta por uma ação política que privilegia, a contrapelo, a “brecha” das passagens estéticas e existenciais.

Entre o pessoal e o político, ela atravessou as últimas décadas investindo benjaminiamente na esfera factual, em detrimento das convicções e suas abstrações Exemplo concreto desse investimento é o Programa Avançado de Cultura Contemporânea que ela criou na UFRJ. O PACC põe na cena acadêmica as questões do mundo pós-Muro de Berlim, passa pelo 11 de setembro americano e chega ao que está acontecendo neste momento em alguma passagem do planeta. Como as Escolhas de sua autora, o PACC não acaba nunca. Nem pára.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Estação Poesia




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“o eco no bojo da macaíba” em quatro livros de poesia: Invenção Recife, Estação Recife, As formas de morte e À beira do silêncio


Tudo ilha ou Diálogo só com a Tradição


Na historiografia literária brasileira, a Região Nordeste configura-se como um dos espaços que mais produzem literatura. Principalmente poesia. Há uma conexão poética bastante visível entre as estéticas da modernidade e os autores nordestinos, sejam eles Manuel Bandeira, João Cabral de Mello Neto, Joaquim Cardoso, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Sebastião Uchoa Leite (PE), Ferreira Gullar (MA), Mário Faustino (PI), Augusto dos Anjos (PB), Sosísgenes Costa (BA), Zila Mamede (RN) e Jorge de Lima (AL), além de muitos outros.

As poéticas desses autores são freqüentemente resgatadas pelos poetas nordestinos contemporâneos, como demonstram os quatro livros aqui referidos, todos de autores nascidos naquela região, e recentemente publicados. Dentre os volumes, dois são produzidos sob a forma de coletâneas: Invenção Recife, organizado por Pietro Wagner e Delmo Montenegro, e Estação Recife, organizado por, dentre outros, Everardo Norões. Os outros dois volumes são: as formas de morte, de Silvino Ferreira Junior e À beira do silêncio, de Maurício de Macedo.

Um dos procedimentos estéticos que mais chamam a atenção nesses poetas é a freqüência com a qual eles dialogam com a tradição literária (principalmente a poesia modernista brasileira naquela que é considerada sua segunda fase), e como esse diálogo parece escasso entre eles, os próprios poetas contemporâneos. São múltiplas as formas, as imagens, e várias as estéticas que os inscrevem. Nessa inscrição, cada poeta, cada livro, cada poema parece sinalizar em si o esboço de uma poética particular.

Mesmo quando reunidos num mesmo volume – como é o caso das duas coletâneas publicadas pelos poetas do Recife –, esses autores não apresentam traços estilísticos comuns. A leitura dessas duas coletâneas sinaliza os percursos individuais a partir dos quais esses textos se constroem. As formas denotam a falta de manifestos e diretrizes estéticas que caracterizam este início de milênio, sugerindo como cada autor reinventa seu próprio percurso isoladamente.

Ou seja: tudo ilha. Esse isolamento é legível num poema de Pietro Wagner que faz parte da coletânea Invenção Recife: ilha/ retém tuas águas/ para que se faça a cor do teu próximo dia. Do mesmo volume vem o aviso do escritor Jomard Muniz de Britto, acerca desse isolamento como mal poético: "...atenção, amantes do Parnaso: o auto-exílio pode ser a pior das doenças."

O volume no qual se encontram os versos acima é o mais polifônico dentre os quatro livros aqui mencionados. Se colocarmos num liquidificador os principais movimentos de vanguardas e as principais tendências estéticas que estetizaram o século XX – o Concretismo, o Poema-Processo, o Tropicalismo e a Poesia marginal – teremos uma boa pista para a leitura dessa Invenção Recife – coletânea poética 2. Lançado em 2004, o volume anuncia, na apresentação do leminskiano Fabrício Marques, a irreverência pernambucana, sinalizando sua vocação para a negação e o corte: Literatura navalha contra o papo raso da elite vesga.

Para inventar o Recife poético, foram selecionados dez autores. Alguns, bastante conhecidos pela sua “poeticidade”, como o acima citado Jomard Muniz. Irônico, ele lança sua “bula” para inscrever uma outra doença de chagas tropicalistas...; e para construir sua hommage ao poeta Murilo Mendes, constrói um “jogo de espelhos” a partir do qual faz convergir, num mesmo verso, autores díspares como Shakeaspeare, Descartes e Leminski: adeus, hamlet. a deus, descartes. ao tudo, catatau. Vinda do antenado poeta dos arrecifes do desejo, essa conversão inscreve a multiplicidade temática e formal que inaugura as poéticas deste milênio.

A herança concretista desta antologia é vivificada na “CAMISADEVÊNUS” do escritor Marcelino Freire. Na sua hommage ao poeta Carlos Drummond de Andrade, essa herança estética se concretiza no celebrado verso No meio do caminho tinha uma pedra, com base no qual o leitor relê a porção de sísifo que emerge da letra do moderno vate mineiro. Dentre os jovens autores, destacam-se Frederico Barbosa (Prêmio Jabuti de Poesia por Nada feito nada, 1993) e sua “Vocação do Recife” (Faca clara/ que ainda fala/ não), escancarando o produtivo diálogo com Bandeira e sua “Evocação do Recife”.

Esse dialogismo com poetas pernambucanos consagrados pode ser aferido em vários outros textos do livro, e principalmente no verso de um outro jovem autor: Siba Veloso. Mestre de maracatu e músico do grupo “Mestre Ambrósio”, ele é produtor de um dos versos que parece sintetizar o ritmo dessa Invenção Recife: Eu canto imitando os meus. A imitação desse canto possibilita ao autor o resgate das matrizes musicais e da oralidade nordestina, como o leitor pode inferir ao apurar o ouvido para ...o eco/ no bojo da macaíba...

Quando a palavra muda a cor do dia

O mapeamento poético da produção pernambucana continua na Estação Recife – coletânea poética 2. Também lançado em 2004, o volume é aberto com o belo poema “Hoje”, de Deborah Brennad, autora de oito livros de poemas. Pertence à geração de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, a poeta viveu em engenhos nordestinos onde criou gado, e destaca-se como proprietária de uma poética centrada na inscrição do tempo, como demonstram seus títulos nesta antologia: Hoje, Dia é dia, Senhor tempo, Dezembro... Autora que exercita uma forma enxuta e de curta extensão, Deborah apresenta um texto certeiro para a abertura de uma antologia contemporânea, leiam:

Hoje

Com a delicadeza
que convém aos mortais

diga-lhe:

no quarto
há lençóis macios

tão alvos

uma cama de ferro
com enfeites

no alto

lembranças do claro
sob cortinas

de gaze

e, na cabeceira,
um par de jarros

ao lado

exalando, suave,
o aroma asiático

dos jasmins.


Descanse nele hoje à tarde.

Comparada com Invenção Recife, essa Estação..., apresenta autores com vasta produção literária e que ostentam, em sua maioria, uma gama de experiências estéticas, além de uma consolidada formação acadêmica. Aqui, alguns textos são mais caudalosos, como no belo poema Alpendres e Currais de Majela Colares, na Litania que o jornalista e compositor Marco Pólo Guimarães dedica ao conterrâneo Osman Lins, ou no “Poema de despedida ao que parte para o mundo”, de Maria de Lourdes Hortas।

Neste livro, os temas e as referências parecem mais centrados nos motivos próximos e regionais, sejam eles: Graciliano Ramos, Joaquim Cardozo, Jackson do Pandeiro, Olinda, Recife, o sertão nordestino, seus silêncios, engenhos, arrebóis e currais.... Através desses temas e motivos, a maioria desses autores parece celebrar a lição de Marco Pólo Guimarães: “Aprendi que só valem a pena as palavras/ que mudem a cor do dia”.

Transeunte desta Estação Recife, o leitor testemunha como são múltiplas as formas, as maneiras de dizer, os temas e os motivos que esses poetas elegem para re-descobrir a cidade, o sertão e suas letras. Nenhum lirismo marginal e poucos roteiros oníricos anunciam-se nesta Estação... Seus autores tecem gestos e desenham ambiências que denotam experiências vivificadas no corpo, na pele, seja através dos cheiros e dos costumes, ou por meio da paisagem áspera e sua cor local.

A celebração desses traços poéticos pode ser lida na forma que se contém e anuncia, com carregado sotaque cabralino, o “Sertão caiado” de Marco Pólo Guimarães:

Aqui o céu é feito lâmina
Aguçada pelo sol
A paisagem é uma chama
Retorcida em cruz e nó

Distante do lirismo como gênero cuja estrutura verbal expressa ritmos e imagens que remetem principalmente ao universo da imaginação, a maioria dos poemas dessa coletânea reflete muito mais o espaço e o tempo da cidade e do sertão aqui inscritos. No embarque à essa Estação... descobre-se um roteiro no qual a poesia desce do céu e das nuvens e desembarca na terra, no corpo e na página à espera de quem lê.


Quando a palavra dialoga com o silêncio


O livro À beira do silêncio, de Maurício de Macedo, inicia por uma visível lacuna: não traz copyright nem folha de rosto com ficha catalográfica. O livro contém, porém, uma orelha informando ser o poeta autor de 12 livros de poesia, e abre-se com uma contemporânea epígrafe de Jorge de Lima – um poeta cada vez mais redescoberto pelos contemporâneos: “Os soluços da noite procuraram a garganta das coisas e falaram”.

Falar por meio das coisas é um procedimento salutar e bastante recorrente nas poéticas contemporâneas, e Maurício busca fazê-lo, dentre outros, através de barquinhos de papel ou de um quadro de Picasso. Para captar esse discurso das coisas, o poeta recorre à leitura do “silêncio” – texto que abre o volume e a partir do qual o escritor Moacyr Scliar constrói a Apresentação do livro. Diz o poema:

Cada um cala em sua palavra uma cicatriz.
Cada um aprende a carregar o seu silêncio
feito o garção que se movimenta
equilibrando a bandeja na palma da mão.


Essa metáfora do garção que busca o equilíbrio ao movimentar-se parece certeira ao vivificar a ação do poeta. A busca desse equilíbrio é notória em poemas como “Terra de náufragos” e “Angústia”, textos que podem ser lidos como uma hommage ao escritor Graciliano Ramos, de quem o autor é conterrâneo. Além do escritor de Angústia, vários outros artistas ligados à estética da modernidade permeiam as páginas de À beira do silêncio, sugerindo o vasto repertório estético do seu autor.

A leitura do seu livro é, sobretudo, um exercício de metalinguagem com saudades do século XX e seus intertextos com a letra, a música, o folclore e a pintura. Além dos dois conterrâneos já citados – Graciliano Ramos e Jorge de Lima –, outros autores que marcaram o século XX e seus ícones mais recorrentes destacam-se neste livro, como: Drummond e sua pedra, Vinícius de Moraes e sua chama, Kafka e seus pesadelos, Lennon e sua ação imaginária, Neruda e seus pássaros, Picasso e seus monstros, além de uma breve ”Fotografia de Rimbaud” que diz:

No horizonte azul
do mar dos olhos do adolescente
um barco bêbado flutua
no périplo infinito das iluminações


Flutuando ente a palavra e o silêncio, a poética de Maurício de Macedo traduz a herança modernista em suas múltiplas vertentes, sejam elas regional, primitivista, cósmica ou cosmopolita. Poesia que relê o homem e seu espaço, evidenciando o capital imagético daquela modernidade que celebra a linguagem debruçada sobre o seu próprio manancial.

Diferentemente dessa linguagem que se debruça sobre a própria linguagem são as formas de morte, de Silvino Ferreira Junior। Embora desprovido da rigidez métrica, o autor não se exila dos territórios da lírica e do misticismo, e em alguns poemas parece tocado pelo “entusiasmo divino” que platonicamente ainda move alguns poetas neste início de milênio। O trabalho com a linguagem parece inconcluso, deixando saltar aos olhos do leitor o que para o próprio poeta não parece evidente, como denunciam versos como um tanto poeta (“rude”) ou em minha poesia está morta (“escrita”).

Sem ficha catalográfica, sem dados sobre o autor nem datas, o livro apresenta um suntuoso projeto gráfico que não se justifica, seja pela falta de cuidados como erro de acentuação, seja pela falta de numeração das páginas ou pela forma inacabada de alguns poemas. O recorte vocabular que os sustentam parece oriundo de outro século, como evidenciam estas palavras: choro, vômito, morte, lágrima, solidão, túmulo, dor, sombra, lâmina, frio, névoa, maldade... Mas num dos seus poucos momentos poéticos, o autor reconhece que só somos humanos, porque nomeamos.

Os poemas desses 4 livros copilam as vozes das coisas e do silêncio com os quais continuamos a cantar os amores e as amizades, de um espaço no qual a oralidade dá o tom em meio aos mitos gráficos e musas audiovisuais. São coisas de quem embarca na perene Estação da Poesia, e ouve “o eco no bojo da macaíba”. Salve as coletâneas.

BIBLIOGRAFIA

FERREIRA JUNIOR, Silvino. as formas de morte. s/d

MACEDO, Maurício de. À beira do silêncio. s/d.

MONTENEGRO, Delmo. e WAGNER, Pietro. (Org.). Invenção Recife. Coletânea Poética 2. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004.

NORÕES, Everardo. et al. (Org.). Estação Recife। Coletânea Poética 2. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004.
RJ 2005

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Mito










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Texto escrito a partir de seminário apresentado durante o Curso de Mestrado em Estudos da Linguagem, na UFRN, Natal, 1994.



História e Sonho


O mito é o nada que é tudo
Fernando Pessoa, Mensagem


A mitologia pode ser lida como um conjunto de narrativas, signos e símbolos construídos no decorrer dos tempos, pelos mais diferentes povos, na busca de compreensão e sentido para a existência humana. Essa busca visa, na maioria das vezes, entender o que não é da ordem do visível.

Nessa tentativa de explicar o tempo e o espaço nos quais vivemos, o homem constrói um vasto arquivo de saberes e ações compostas por elementos físicos, espirituais e intelectuais, dialogando com dados referenciais e históricos que são repassados de geração a geração.

Os mitos estão relacionados a problemas internos e mistérios que perpassam várias etapas da evolução humana. Tanto para Freud como para Jung, a questão mitológica possui uma relação direta com dois universos complexos e interdependentes: a história e o sonho.

Em seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud lê o sonho como a realização de um desejo, e interpreta a linguagem dos sonhos para pensar questões relacionadas aos mitos como, por exemplo, as suas formas expressivas.

Para Jung, em seu livro O Homem e os Seus Símbolos, os sonhos não são produtos do acaso, pois eles “estão associados a pensamentos e problemas conscientes”. A própria escritura do texto jungiano ratifica esta problemática: para decidir acerca da publicação desta sua última obra, o autor recorreu a recursos conscientes e inconscientes.

Jung teve o estudioso Joseph Henderson como seu colaborador. Escrevendo sobre os Mitos Antigos e o Homem Moderno, Henderson atesta estar a história antiga do homem sendo “redescoberta”, “através dos mitos e imagens simbólicas” que sobreviveram. Esse redescobrimento histórico torna-se viável porque para Jung a mente humana é produtora de sua própria história. Semelhante descoberta tem por base a convicção de que “a psique retém muitos traços dos estágios anteriores da sua evolução”. A psique significa, etimologicamente, a alma. Na psicologia freudiana, representa o aparelho mental.

Na interpretação que empreende em tono do inconsciente coletivo, o autor de Sonhos, Memórias e Reflexões, trata esse inconsciente como “a parte da psique que retém e transmite a herança psicológica comum da humanidade”. Essa conceituação jungiana nos remte a Doutrina dos Ciclos, de Platão, e ao Eterno Retorno, de Nietzsche, na medida em que os sonhos e os mitos de uma determinada época podem ser vivenciados e / ou decifrados num processo considerado atemporal.


I – O Herói, o mito mais conhecido

Pesquisas acerca de lendas, estátuas, desenhos, símbolos, templos, línguas... comprovam o que nos transmitem velhas crenças; atestam o vigor do mito nas sociedades modernas.

Dentre os vários e antigos mitos estudados por Jung, o mito do herói destaca-se como “o mais conhecido em todo o mundo.” Apesar das variações dos detalhes, o autor afirma que estes mitos possuem semelhanças no que se refere às suas estruturas. A sua leitura sugere haver uma seqüência típica nas ações do herói, mostrando que a sua experiência ultrapassa, na maioria das vezes, a experiência comum. Isso torna o herói um personagem extremamente sedutor, na medida em que ele experimenta e canaliza, na maioria das vezes, ações em prol de objetivos comuns e não apenas individuais.

O texto de Jung nos permite vislumbrar o “elo crucial entre os mitos arcaicos ou primitivos e os símbolos produzidos pelo inconsciente.” Essa produção inconsciente aponta para a importância que o sonho assume nas análises propostas por, dentre outros estudiosos, os psicólogos e literatos. Tais análises têm geralmente por base a “livre associação” desenvolvida por Freud.


II – Os conteúdos da psique


A relação entre os mitos arcaicos e os símbolos do inconsciente possibilita uma interpretação desses mitos e símbolos dentro de uma perspectiva histórica e tendo por base um “sentido psicológico”. Essas leituras sugerem uma confluência entre as teorias de Freud e Jung. Os conteúdos da psique transformam-se na matéria de ambos. Para o pai da psicanálise, “os mitos são projetados no céu depois de terem nascido em outro lugar e sob condições puramente humanas.”

Estudando a psique e sua relações com a libido (energia que flui nos processos e estruturas psíquicas), Freud destaca o desejo como algo que se verifica nas relações lingüísticas, sociais e sexuais; o que determina a importância do outro, do diferente na constituição identitária.

Segundo a pesquisadora Miriam Chnaiderman, este desejo que serve de objeto de estudo para Freud é também o que determina o estudo sobre as funções que Vladimir Propp elabora acerca da Morfologia do Conto. Neste estudo, “o conto maravilhoso na sua base morfológica” aparece também como um mito. Relacionando em “Sonho: conto e mito” as funções de Propp ao trabalho psicanalítico, Miriam conclui: “... as funções de Propp são constelações do desejo tal como é teorizado seja por Freud, seja por seus seguidores mais contemporâneos.”


III – O Mito Segundo Barthes

Relações entre Mito e História são ratificadas pelo teórico Roland Barthes. Desconstruindo as estruturas míticas cotidianas, o autor desvela em Mitologias (1957) a ideologia burguesa, através da leitura de obras de arte, produtos de alimentação e do consumo, personagens e personalidades, dentre outros.

Para Barthes, o burguês (o pequeno burguês) é incapaz de imaginar o outro, na medida em que este outro, pela sua diferença, constitui “um escândalo, um atentado à essência.”

Em Mitologias, o autor parece fazer psicanálise da própria sociedade da qual faz parte como pensador e teórico. Segundo ele, “o mito é uma fala escolhida pela história.” Nesta leitura barthesiana, além de fala, o mito anuncia-se como linguagem e forma.

Para Barthes, a história além de transformar “o real em discurso”, determina a vitalidade da linguagem mítica. No estudo dessa linguagem, o autor faz distinção entre os mitos relacionados à imagem e os mitos de conteúdo verbal. Nesse estudo, fica evidente a superioridade dos mitos imagéticos sobre os gráficos, já que a imagem “impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la”.

Os argumentos barthesianos nos fazem concluir serem as mutações dos mitos determinadas pela História, e que o mito surge do processo cultural, não sendo, portanto, nenhum produto natural. Embora postule “a imobilidade” da natureza.


ÍNDICE ONOMÁSTICO

Barthes, Roland
Freud, Sigmund
HendersonJoseph
Jung
Nietzsche
Platão
Propp, Vladimir