quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Letras da memória lusa



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Texto escrito com base na arguição da dissertação de mestrado "Fazes-me falta, de Inês Pedrosa: uma alegoria contemporânea da saudade”, de Ângela Rodrigues, defendida na UFMG, em 2007, sob orientação da Professora Dra. Constancia Duarte.


Perda e Morte como personagens


Com trânsito intenso pela literatura e pelo jornalismo, a escritora portuguesa Inês Pedrosa produz uma escrita bastante sintonizada com o contexto e os procedimentos estéticos contemporâneos. Prova dessa sintonia está no romance Fazes-me falta (2002). Nele a autora aciona, sem hierarquias, um permanente intertexto entre o cânone literário (Tolstoi, Proust, Virgilio Ferreira...) e os produtos midiáticos (Woody Allen, Stones, Chico Buarque...).

A produção bibliográfica da autora lusa ostenta o seu trânsito por várias formas estéticas: a crônica, a entrevista, o conto, o romance e até uma fotobiografia de José Cardoso Pires. A crônica, por exemplo, é lida pela autora como um “exercício de intervenção social, como forma de poder cívico”. Segundo ela, “dentro de todo cronista há um optimista furioso – a própria zanga serve de testemunha a esse contrato de encantamento com o mundo” (p. 35).

Assinalo o trânsito por essa diversidade de formas e esse olhar consciente de Inês, a fim de contrapor essa visibilidade contemporânea à visão dessas mesmas formas, tendo como parâmetro o olhar de uma autora moderna como, por exemplo, Clarice Lispector. Ao contrário de Inês, Clarice transforma em drama a produção da sua escrita que descobre o mundo (referência à escrita da “ponta dos dedos” nas crônicas de A Descoberta do Mundo). Mas, há entre Clarice e a protagonista de Fazes-me falta mais sintonia do que supõe nossa infinita fome de vida. Em sua última entrevista, a autora que elegeu a morte como personagem predileto do seu último livro – A Hora da Estrela - diz para o repórter da TV: “Agora eu morri. Vamos ver se eu renasço. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo”

Do "túmulo" fala uma das vozes do romance. Em seu texto, Ângela cita uma entrevista de Inês na qual a autora ressalta a perda e a morte como “personagens” a partir dos quais a escritura do seu romance é produzida. Ouçamos o dueto de Ângela e Inês: “Fazes-me falta (2002), segundo a escritora, foi escrito a partir da experiência da perda: escrevi-o ao som da música dos meus mortos, ensaiando uma aproximação mais radical à ciência da poesia, a poesia da política e a dança da filosofia.”

Ratificando essa noção de ruptura de gêneros, a relação com a poesia é sugerida, no romance, através de um certo tom roseano que, de quando em vez, é audível na escrita de Inês. Isso pode ser aferido na seleção do recorte vocabular e na invenção de palavras que revitalizam e entusiasmam o idioma, como “noante” (cf. p. 44: “Entrevistada...”). Essa relação tonal com o texto roseano é também sugerida no apreço pelo pormenor, pelas coisas miúdas: “Lixar o tempo é questão de acerto nos pormenores” – “o meu olhar sem órbitas move-se por ampliações máximas de pormenores mínimos” (p. 16).

É importante ressaltar que os dois primeiros capítulos do romance são abertos com poemas de Pedro Tamen e Luis Filipe Castro Mendes. Isso assinala a relação que se tece, no romance, entre o rigor da construção poética e a escritura desta narrativa (lembrar que Inês organizou uma antologia de poemas portugueses tendo o amor como tema – “como se faz que perdure?”; e Angela conclui a sua dissertação lendo no amor sua “inclinação” “atemporal, transcendendo as diferenças que não encontram respostas e geram buscas constantes”).

No texto de Ângela, a noção de rigor está presente principalmente na Parte I – “Inês Pedrosa e a Literatura Portuguesa Contemporânea”. Aqui são delimitadas as quatro fases do romance português, tendo por base a leitura feita por Miguel Real. Inês Pedrosa é inserida na Geração de 90 que se caracteriza, dentre outros, pela valorização das instituições e do mercado, e ganha filiação na corrente do Realismo Urbano Total.

É a partir do final do século XX que Portugal começa a repensar o seu projeto identitário. Justamente por isso, eu implico um pouco com essa noção de totalidade (própria das grandes narrativas da modernidade) sugerida por Miguel Real. Num tempo no qual a noção de fragmentação predomina nos espaços das artes e culturas, principalmente na prosa romanesca, como esta própria dissertação e o seu objeto de estudo propõem, a cognominação de Realismo Urbano Total não me parece em sintonia com o recorte vocabular da crítica contemporânea.



Memória e Linguagem



Desde Homero, o culto à memória é uma forma de acesso direto ao conhecimento, à noção da verdade. Seguindo essa trilha memorialística da busca da verdade, Ângela constrói de forma criativa as suas “figurações da memória”. Na parte III, intitulada “O Percurso da Memória”, a autora demonstra uma voz própria ao afirmar:

“Assim sendo, a narrativa de Fazes-me falta, como um jogo de espelhos, através de sua inversão, reporta-se ao sentido encontrado nos textos construídos pela memória de cada narrador, refletindo em suas diferenças e oposições espaciais a imagem de um relacionamento que se erigiu pela falta e que a morte “descobre” para depois redimensionar”

Duas vozes perpassam a narrativa dialógica de Inês. A voz feminina inicia e propõe os roteiros temáticos à voz masculina, mais velha. Em sintonia com os procedimentos estéticos sugeridos por Fazes-me falta, Ângela trabalha com as questões do tempo, da memória e da saudade. Seu texto possibilita um diálogo entre a narrativa individual e a memória coletiva da história portuguesa. Este é um dos melhores roteiros da sua pesquisa, quando a autora ensaia acerca de como as figurações do real se condensam na memória para depois se transformar em texto escrito.

Relevante seria, caso haja uma extensão desta pesquisa, que esse diálogo entre as figurações do real, do tempo e da memória levasse em conta a dimensão do imaginário luso. Seria da maior importância uma espécie de leitura do “inconsciente cultural” (Eduardo Lourenço) dos portugueses, do seu passado artístico. A produção de uma leitura atentando para as idades do ouro das letras portuguesas, seus mitos e os pressupostos ideológicos que as patrocinaram, ajudaria a entender algumas das imagens e dos sons que são produzidos no imaginário bélico deste início de milênio onde a morte encena um dos principais personagens (Pensar nas imagens e nos sons que formatam o discurso narrativo de Inês e sua geração).

Ou seja: já que Inês é situada dentro do panorama da historiografia literária portuguesa, seria importante reler o imaginário (seus vocábulos, mitos, signos mais recorrentes) que ela herda dessa historiografia literária e da qual se apropria para a construção do seu texto, assim como faz grande parte dos escritores da chamada pós-modernidade. (cf. A Nau de Ícaro, onde Eduardo Lourenço lê a saudade como “melancolia solar”).

A leitura dessa dissertação sugere como a narrativa da morte, num contraponto com a narração da vida, estetiza a possibilidade de tudo verbalizar. Há nos discursos dos dois narradores uma transformação tonal durante a narrativa. Os tons são múltiplos e oscilam do áspero ao religioso. Oscilam também do tom afetivo ao automatismo herdado dos hábitos patrocinados pelos universos da política e da mídia (pensar na crítica ao automatismo gerado pelos sistemas sociais, e como a linguagem, os discursos dos personagens sinalizam suas mutações existenciais e suas opções políticas: “A política decompôs-te o tom de voz...”).

Algumas falas dos narradores de Fazes-me Falta anunciam essas relações entre identidade e linguagem, como atestam as seguintes vozes:

- “A tua voz mudou, a tua alegria arrefeceu...” (p. 80)

- “A tua voz descentrou-se... A voz comercial com que defendias agora as Grandes Causas do Universo era-me insuportável...” ( p. 75)

- “...deitastes sempre muito tarde, por causa do travo das palavras cansadas...” p. 111:

No universo da estética e principalmente das letras, a sonoridade dos vocábulos e a leitura do significante denotam um valor de expressividade. Na teoria de Bakhtin, por exemplo, a pessoa que fala no romance é identificada principalmente pela imagem de sua linguagem. Em Borges, o caráter não é mediado apenas pelos atos do sujeito, mas pode ser expresso pelo acento fônico, pelo tom da palavra, a entonação próprios do falante... Em torno dessas questões linguísticas, é importante lembrar as lições de Jakobson e o valor expressivo dos fonemas, as funções da linguagem; as aulas de Barthes e o significante como categoria suntuosa relacionada ao prazer do texto.