domingo, 8 de maio de 2011

Corpo em liberdade


Leitura do corpo e suas relações com o texto

A primeira versão deste texto foi escrita em 1991, na pós-graduação da UFRN, no curso “O Moderno e o Pós-Moderno”, ministrado pelo tradutor Keneth David Jackson, da Universidade do Texas.

...a visão clara de patadas rijas num corpo inerme...
Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere

I

Acusado de ser comunista no governo de Getúlio Vargas, o escritor e ex-prefeito Graciliano Ramos foi preso em 1936. A narrativa desta prisão e o testemunho político e social do escritor encontram-se no livro Memórias do Cárcere. Dividida em dois volumes, a obra foi publicada em 1953, ano da morte do autor, cuja experiência radical no presídio pode ser aferida nesta assertiva memorialística: “A cadeia não é um brinquedo literário”.

Proprietário de uma linguagem seca, cortante, cujo lirismo aflora de forma moderna e muito peculiar, o velho Graça nunca brincou de ser literato. Quando foi para a prisão, ele já havia escrito os seus três primeiros romances que tiveram boa recepção crítica: Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (livro publicado em 1936, quando ele estava na prisão da Ilha Grande, no Estado do Rio de janeiro).

Após conviver durante mais de dez meses em presídios fluminenses, com os mais diferentes tipos humanos, Graciliano sai da prisão. Desejando re-encontrar o seu “instinto de direção”, o autor alagoano se propõe a inscrever as primeiras sensações do seu corpo em liberdade, mas não o faz. Na “Explicação Final” das Memórias..., o escritor Ricardo Ramos ressalta essas “sensações de liberdade” referidas pelo pai como objeto de escrita futura.

As memórias e o desejo de escrita de Graciliano serviram de matéria para a construção de outros textos. O livro Memórias do Cárcere acaba onde começa a ficção Em Liberdade, de 1982, do ensaísta e escritor Silviano Santiago. Este recuperou falsamente a escritura de Graciliano, e escreveu outras memórias narrando a vida do autor alagoano após a saída da prisão. Trata-se de outro diário que faz alusões a um outro grande nome do cânone literário brasileiro do século XVIII: o poeta árcade Claudio Manoel da Costa, escritor mineiro como Silviano.

Com esse procedimento dialógico que envolve autores de diferentes contextos estéticos e históricos, Silviano inscreve a sua ficção pós-moderna. Essa inscrição leva em conta uma historiografia sincrônica, através de uma releitura estética e textual, onde a produção do simulacro traduz a consciência do duplo. Exercita a leitura da alteridade. Essa consciência do outro pode ser aferida nas imagens das memórias narradas pelo próprio Graciliano, leitor cujo corpo apresenta-se preso às formas da nossa tradição literária, como demonstra essa passagem do segundo volume de Memórias do Cárcere: “As amostras da ficção nacional pesavam-me nos joelhos e me traziam desassossego.” Várias outras passagens do livro apontam para as relações entre o corpo e a escritura. Comprovam essas relações, dentre outros, a imagem do próprio autor estirado na cama olhando os papéis abandonados sobre a mesa; as figurações do guarda moço de olho vivo que leva lápis e papel para o autor cujas pernas doem; as notas lentamente escritas e arrumadas na cama suja de hemoptises...

II

Essas figurações do corpo que dói, juntamente com as referências ao peso e ao desassossego remetem aos impasses causados pela memória na leitura do real. Segundo Lacan, no Seminário 20, “o real só se poderia inscrever por um impasse de formalização.” Essa busca de inscrição e esse impasse parecem servir de base para o romance Em liberdade. O texto simulado começa exatamente por um impasse: o autor não sente o corpo. Ele aposta na consciência das palavras, sem a coragem de ver-se inteiro. Nesta ficção, o autor tenta estetizar a experiência vivida no passado e impressa na carne. Ele deseja “soltar o corpo” que é “fonte de sofrimento”, transformando a memória em linguagem, discurso, ficção.

Nessa transformação lingüística e estética, o autor pós-moderno preocupa-se mais com o nível textual da escritura. Essa preocupação faz com que o texto se volte para si, para a sua forma, deixando em segundo plano os níveis temáticos, representativos que são dos modelos realistas. Neste diálogo entre os autores, interessa observar principalmente o texto enquanto corpo; isto é: atentar para as relações entre a escritura e o corpo que a produz.

No diário ficcional de Silviano, o corpo se refaz de palavra em palavra, de cena em cena. A cena do mar e sua re-descoberta possibilitam o resgate energético desse corpo que não pára de dizer: “o mar entregava-me de volta ao meu corpo”. No seu roteiro marítimo ele segue, “de membro enrijecido”, o corpo da moça como se ela caminhasse em procissão, e sugere: “Sei artimanhas de corpo que não ouso confessar.”

No simulacro das lembranças da prisão, uma outra forte cena corpórea irrompe da memória: a lavagem das mãos. Com volúpia, o narrador que relembra usa pia, água e sabão, enquanto a fila de corpos presos reclama o tempo e os materiais gastos em cerimonial simples, cotidiano. “Ele lavava as mãos como se estivesse fudendo” - é a frase que golpeia os tímpanos de quem narra nas memórias de agora.

Nessa ficção re-colhida nos fragmentos do memorial, tudo recomeça. Recomeça através de outra escrita. Recomeça na elaboração de um outro texto que diz ser “um corpo em disponibilidade para si e para o outro”. Um corpo que é templo da escritura. Corpo que rumina como texto a ser escrito. Um templo-texto onde certamente ecoam várias vozes cujos corpos voltam, de quando em vez, à superfície. Corpos na superfície da página. Eles voltam à superfície com a experiência de quem sabe que o mais profundo é a pele.

Bibliografia

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20 Mais, Ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Vol I e II. 15ª ed. São Paulo: Record, 1982.
SANTIAGO, Silviano. Em Liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1982.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Educação pela máquina

tanta tinta, tanto sangue, meu deus
e a gente nem ligou a impressora