domingo, 31 de maio de 2009

Profª Gilda Korff Dieguez entrevista Nonato Gurgel




Entrevista publicada em Rede de Letras n 4
Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Outubro de 2003



O Rede de Letras (Letras no Mundo) traz, nesta edição, uma bela entrevista com um conhecedor de poesia atual, já que o tema foi objeto de estudos para a sua tese de doutorado, defendida recentemente. O tema é instigante, já que fala do fazer literário atual, ainda em processo de discussão. O entrevistado, com generosa paciência para responder a tantas perguntas, nos concedeu belas reflexões.
Muitos dos alunos do Curso de Letras estão estudando o tema, e vão fazer um belo proveito dos ensinamentos deixados. Outros virão a estudar, em Literatura Brasileira, e já podem ir se preparando. Ou, mesmo quem nada tenha a estudar sobre o tema, terá, ao longo da leitura, um espaço inteligente de prazer.

Nosso convidado: NONATO GURGEL
Mestre em Literatura Comparada pela UFRN e doutor em Ciência da Literatura, pela UFRJ, ele defendeu recentemente a tese Seis poetas para o próximo milênio. Possui publicações em livros, jornais e revistas das áreas de artes e culturas. É professor do Curso de Letras, da UNIGRANRIO, e consultor literário do PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea, da UFRJ.

1. Você pesquisou, em tese recentemente defendida, seis poetas brasileiros contemporâneos. São nomes distintos, que refletem a multiplicidade do olhar no mundo atual. Mesmo assim, haveria denominadores comuns entre os seis nomes por você selecionados?

NG: É verdade, Gilda, a tese Seis poetas para o próximo milênio reflete essa multiplicidade característica do nosso tempo. Por isso selecionei autores cujas produções poéticas são representativas das últimas três décadas. Ou seja: reúno um autor que começou a publicar nos anos 60 (e que continua produzindo), destaco autores da chamada geração marginal, dos anos 70/80, mais alguns poetas que começaram a produzir nos anos 90, e que são hoje representativos do que alguns críticos chamam de uma "nova estética do rigor". São eles: Ana Cristina Cesar, Antonio Cicero, Armando Freitas Filho, Eucanaã Ferraz, Marco Lucchesi e Paulo Leminski. É difícil encontrar "denominador comum" entre eles, mas existe pelo menos um procedimento estético que os aproxima: uma perene "consulta" ao arquivo de formas da tradição. Todos eles se valem da tradição para construírem suas obras; seja essa a tradição do nosso considerado alto modernismo, com a qual Ana, Armando e Eucanaã tanto dialogam, ou a tradição clássica, estetizada, principalmente, por Cicero, Lucchesi e Paulo Leminski.

2. Falemos um pouco de Leminski, com seus valores contraculturais e libertários. Dos poetas por você analisados, ele representaria a facção que se alimenta do Concretismo. No entanto, esse movimento é visto de forma negativa, pela maioria dos críticos, por ser cerebral. Mas Leminski parece contrariar essas observações da crítica, tendo sido bastante popular e, ao mesmo tempo, um nome singular dentro de um momento de "literatura marginal". Como você veria a plurifacetada contribuição do "mulato-polaco" curitibano?

NG: Paulo Leminski é, dentre os autores da "literatura marginal", aquele que mais domínio possui do arquivo de formas da tradição. Talvez ele seja, dentre os seis poetas, o mais consciente da importância da forma. "Não somos os ossos de Ovídio?" – pergunta Cartésius logo no início do Catatau (1975). Como poeta, escritor, tradutor, ensaísta, compositor ou apresentador de TV, Leminski utilizava esse "estoque de formas" da tradição com maestria e singularidade. Esse trânsito por vários territórios da arte e da cultura, mais a utilização de múltiplos suportes midiáticos, transformam o autor e sua obra num signo profícuo e sedutor. Não é à toa que ele, assim como Ana C., são tão relidos na contemporaneidade. Ambos ganharam reedições, vídeos, biografias e viraram, respectivamente, personagens de romances como Fantasma, de José Castelo, e Teatro, de Bernardo Carvalho.

3. Alguns dos poetas de sua "antologia" já eram alvo de uma preocupação antiga de sua parte, como Ana C. Você tem trabalhos publicados, que revelam uma certa afinidade. Mas ela é um nome, no mínimo, polêmico: não consegue estabelecer uma unanimidade da crítica. Quais os elementos que você distingue na poesia de Ana C.?

NG: Tenho realmente uma antiga e forte identificação com o texto da Ana. Sei que para parte da crítica sua obra é discutível, às vezes considerada inacabada. Mas penso que esse inacabamento, essa noção do fragmento, também fazem parte do projeto estético do nosso tempo. Considero Ana C. a poeta que melhor traduz a sensibilidade de sua geração alternativa, aflita e ainda meio utópica. Além disso, ela possui excelente repertório artístico e cultural. Como poeta, ensaísta ou tradutora, Ana consegue estetizar na página muito do que sua geração vivenciou na pele. Essa relação entre a construção da linguagem e o comportamento como elemento crítico é fundamental para entendermos a sua geração. Isso às vezes faz falta nos dias de hoje, quando alguns poetas se voltam basicamente para a questão da forma, do rigor estético, que é bacana, fundamental; mas pode parecer, em alguns casos, algo meio asséptico e/ou até mesmo estéril.
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Admiro a eletricidade do texto da Ana. A teus pés (1982) é, para mim, um dos mais belos livros produzidos no Brasil finisecular. O leitor pode não gostar de sua poética, mas é quase impossível ser indiferente a ela. Dentre os múltiplos "elementos" dessa poética, distingo os procedimentos do simulacro e da intertextualidade tão belamente construídos a partir de autores como Baudelaire ("Carta de Paris"), Drummond ("O homem público nº 1") e Bandeira ("Atrás dos olhos das meninas sérias"), dentre outros... Tais procedimentos caracterizam como alegórica a poética de Ana C. e de uma parte da sua geração.

4. Sem dúvida, a categoria de "alegoria", trazida para a cena da crítica por Walter Benjamin – e sobre quem você falou da Semana de Letras, da Unigranrio, é importante para podermos entender a literatura contemporânea. Mas há uma melancolia, implícita na visão alegórica. Você a percebe na literatura atual, principalmente no Brasil?

NG: Essa pergunta é interessante e sofisticada. A alegoria, como você sabe, traduz a necessidade do autor estetizar a diferença, a voz do outro. Evidencia, portanto, o desejo do sujeito contrapor-se ao que é da esfera do símbolo – "manifestação do absoluto" – e que se inscreve no espaço da ordem, da lei. Nesse sentido, percebo como alegórica uma parte da produção literária contemporânea na qual se insere, por exemplo, João Gilberto Noll. Quanto à melancolia "implícita na visão alegórica", e que está associada a uma certa nostalgia em função da perda do original, do absoluto, não consigo vislumbrar com muita nitidez no atual contexto. Penso que a melancolia pressupõe uma certa contenção emotiva, uma armazenagem de sentimentos que não detecto na literatura brasileira deste início de milênio, onde vejo mais uma "sangria", um excesso de exposição, de polifonia, de performances repetitivas... Isso se pensarmos na convergência temática de objetos como a violência e a banalização da vida, tão presentificadas nas páginas de prosadores como, por exemplo, Marçal Aquino e Patrícia Melo – herdeiros daquela estética urbana e cortante à la Ruben Fonseca.

5. Bem, creio que não podemos deixar de tocar em cada um dos nomes, que compõem o rico mosaico de tua tese: seria, no mínimo, um vazio imenso nessa entrevista. Então, chegou a vez de Antônio Cícero, que tem, pelo menos, duas facetas igualmente importantes no cenário brasileiro: o de ser poeta e também compositor da MPB, irmão, que é, da cantora Marina. Mas o A. C., diferente do Leminski, atua no campo midiático de um modo distinto do que o faz na poesia propriamente dita, enquanto o Leminski não respeitava muito essas fronteiras. A sua poesia de certo modo incorpora o filão filosófico (cerebral), enquanto a música é a região da erotização da linguagem (prazer). Como vês esse processo de A. C. e as distinções face ao percurso de Leminski?

NG: Você está certa: o "filão filosófico" de Cícero esplende bem mais em sua poesia escrita. Mas não sei fazer distinções entre a dicção filosófica dessa poesia e a linguagem do compositor. Vejo, por exemplo, que há entre ele e Leminski, alguma sintonia: ambos são poetas que, através de procedimentos estéticos diferenciados, resgatam e atualizam os imaginários míticos e clássicos. Nessa atualização, Leminski patrocina uma perene ruptura de gêneros; Cícero é bem mais fiel às formas, aos gêneros. Apesar disso, ambos transitam pelas mídias escrita e falada, e por espaços heterogêneos como o magistério e o gênero ensaístico.

6. Passemos, então, ao Marco Lucchesi, que recentemente deu entrevista ao jornal Rascunho, de Curitiba, dizendo o seguinte a respeito da poesia brasileira: "O panorama da poesia brasileira hoje é extenso e fértil (...). O lado negativo – a meu ver – repousa nas igrejinhas, nos pequenos partidos, em certas mistificações, ou zelos excessivos, e na tremenda confusão de transformar a experiência literária num pretexto". Talvez essa visão venha, exatamente, de um mal-estar diante da busca do transcendente, que parece ser o sentido do poetar de Marco Lucchesi, que não se coadunam com o quadro por ele delineado. Ou você reconhece na realidade brasileira as críticas por ele traçadas?

NG: É inegável a existência das tais "igrejinhas" na poesia contemporânea. Mas, será que elas não existiram sempre em nossa historiografia literária? Basta lembrar as antigas querelas entre o cultismo (a forma) e o conceptismo (a idéia), o significante e o significado, desde o Barroco, até os procedimentos artísticos e os roteiros culturais de Oswald e Mário de Andrade. O que considero interessante na poesia contemporânea é a sua vocação democrática, em termos estéticos. Não existem, neste início de milênio, cartilhas ou bulas formais. A poesia está livre. O poema curto convive com o texto longo e /ou de dicção transcendente sem grandes problemas. Nesse sentido, a prosa poética de Os olhos do deserto, do próprio Lucchesi, é exemplar. Outro exemplo é um autor elegante como Paulo Henriques Brito. Ele resgata formas clássicas, como o soneto, com uma peculiaridade ímpar.

7. Bem, uma pergunta mais geral: dos seis nomes escolhidos, vários atuam na esfera acadêmica, como professores. Há outros, que não foram alvo de teu estudo. E o que eu queria te perguntar, a respeito dessa constatação reside numa crítica, bem presente nos dias de hoje, que acusa a poesia (a literatura, em geral) de estar se tornando muito cerebral, acadêmica, perdendo a força daquela "explosão desejante" (a expressão é minha), ou seja, tornando-se "fria". Como vês, diante do quadro estudado, esta observação da crítica?

NG: Não gosto muito de literatura eminentemente cerebral. Mas penso que depois do "desbunde" da Contracultura e da estetização existencial, produzida por grande parte dos poetas dos anos 70/80, seja importante um certo apreço pela disciplina, pela forma. Daí porque os contemporâneos resgatam as formas clássicas. Reconheço que a forma, quando bem articulada com outros elementos, está repleta de desejo. Nesse sentido, é possível que Apolo fale a linguagem de Dioniso: "Como quem apaga a luz/ e tem o seu altar no escuro" (Antonio Cícero). Ou como na “Casa paterna” do poeta e professor da UFJF, Fiorese Furtado:

há idades esperando
em cada cômodo da casa

para estar aqui
atravessamos muitas mortes

8. A tua resposta anterior me permite enveredar por um outro caminho que, de certo modo, retoma aquela questão da "alegoria": trata-se da paródia, presente na construção dos textos, na atualidade e, sem dúvida, presente na literatura. Antes, porém, de formular a pergunta, eu gostaria de tecer algumas considerações sobre a questão da paródia, no que ela contém de "metapoesia", embora com um tom crítico, mas nem por causa disso deixando de reverenciar o passado, dando-lhe uma continuidade cultural. De certo modo, o resgate das "formas clássicas", como apontas, tem alguma relação com o "barroco", dilacerado entre antagonismos, igualmente próprios da cena atual da cultura, que alguns denominam de "pós-moderna". Então, se lembrarmos da época do "desbunde" e da "poesia marginal", seria uma rejeição ao "improviso", uma época de transição para um possível equilíbrio futuro, ainda que parodiando uma outra geração? De certo modo dás esta indicação, na primeira resposta...

NG: Gosto muito dessa relação que você tece entre a paródia, a "metapoesia" e sua leitura crítica em relação ao passado. Concordo que há, na contemporaneidade, uma visível "rejeição ao improviso". Nosso tempo requer um leitor crítico, com repertório. Ele não pode ser ingênuo. Nada de espontaneidade em relação aos sentimentos e às idéias. Você, que é professora e ensaísta, e conhece muito bem a historiografia literária e cultural, sabe dos eternos retornos aos clássicos e às suas noções de ordem e rigor estético. Basta pensarmos no Arcadismo (em contraposição ao Barroco), no Parnasianismo (em contradição com os ideais de liberdade do Romantismo) ou ainda no Concretismo (e na "faxina" que ele opera em relação aos "derramamentos" metafísicos dos poetas da geração de 45). Quer dizer: a coisa parece ser meio cíclica. Pelo menos em termos estéticos, já que, na literatura, como diz Leminski, as formas constituem-se no material transmissível e herdável. Por isso, elas são sociais. Por isso elas "custam caro", como diz Valèry. Por isso, através delas a gente narra e ama, como ensina Bakhtin.

9. Bem, já que me estendi na pergunta anterior, vamos para um outro ponto, de mais rápida formulação: e as questões político-sociais, como ficam na poesia atual? Porque me parecem rarefeitas. Ou estou equivocada?

NG: Acho que o final da resposta anterior tem a ver com essas suas indagações. Minha porção benjaminiana é explícita: gosto de associar os elementos estéticos aos dados históricos. Tomemos, como exemplo, as produções estéticas da Contracultura (geração marginal) e o que se produz no atual cenário artístico e cultural. Será que o "desbunde" e os desvios, dos anos 70 e 80, não refletem exatamente o contexto sufocante e ditatorial daquele período, enquanto o desejo de ordem e rigor – cultuados por nossos contemporâneos – não seriam conseqüências desses tempos que possuem no 11 de setembro americano um dos seus signos mais contundentes? Como essas questões são instigantes, gostaria de envolver nessa polêmica o senhor leitor.

10. Ainda nessa aproximação com a questão política, o Haroldo de Campos nos chama a atenção por estarmos vivendo um período pós-utopia, que viria a gerar a fragmentação. Ou uma perda de identidade. Como vês essa questão?

NG: Leminski dizia ser a sua a última geração que não deixou a utopia morrer; Ana Cristina Cesar ressaltava, nessa mesma geração, a importância dos projetos coletivos e identitários. Hoje isso é muito diferente. Os paradigmas da totalidade e da universalidade se quebraram. É muito mais difícil habitar um contexto no qual as noções de dualidades – que tanto sedimentaram os projetos do modernismo – não dão conta da multiplicidade nossa de cada dia. A partir disso, as noções de identidades foram relidas como móveis. Um texto como A Céu Aberto, do Noll, diz muito dos roteiros identitários que nos foram dados viver: trata-se de uma identidade mutante, inacabada e visivelmente meio performática, numa sociedade cujas relações de poder passam pelo crivo da simulação, da visibilidade. Uma boa resposta para essa pergunta encontra-se no seu instigante ensaio "Narciso, ontem e hoje", (Revista Comum, nº 12) onde você relê esse mito grego como um "marginal" dos tempos pós-utópicos.

11. Falamos de muitos, porém ainda não tocamos no nome do Eucanaã, que tem recebido prêmios por seu poetar. Gostaria de ler (eu ia dizer "ouvir", por um velho hábito...) o que terias a dizer sobre ele.

NG: O professor Eucanaã Ferraz é grande poeta. Seu livro Desassombro – lançado primeiro em Portugal e prêmio da Biblioteca Nacional em 2002 – é um dos mais belos livros de poemas deste início de milênio. Há nele um longo poema narrativo ("Eram penhas enormes") sobre a mãe do Thomaz Mann, que tinha relações com o Brasil. Esse poema é exemplar em termos de domínio da tecnologia literária. "Imaginassem as amendoeiras" é outro texto que comprova a qualidade de nossa poesia contemporânea:

Imaginassem as amendoeiras
que estamos em pleno outono.
Vestem-se como.
Púrpura, ouro,
estão perfeitas como estão:
erradas.

Pudesse um poema, um amor,
pudesse qualquer esperança
viver assim o engano:
beleza, beleza, beleza,
mais nada.

12. Já falamos muito do que estudastes. Agora eu gostaria de perguntar: quais nomes lastimastes ter deixado de fora? Sim, porque uma tese tem limites e não é possível ir estudando vertiginosamente, sob pena de não ver o trabalho acabado, no prazo...

NG: Deixei muitos nomes de fora, sim. A própria forma da tese – baseada em Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino –, propõe um limite. Dentre os nomes que ficaram de fora, ressalto Claudia Roquette-Pinto. Ela chegou a ser selecionada, mas confesso que a densidade de sua poesia exigiu de mim outros prazos. Chico Alvim, Arnaldo Antunes e Paulo Henriques Brito são autores que também foram cogitados. Penso incluí-los em projetos futuros. Parodiando os títulos da bela antologia de Heloísa Buarque de Hollanda e de um instigante livro seu, em co-autoria com Ivo Lucchesi, eu diria: Esses poetas. Por que não?

13. Como dizia, brilhantemente, o Haroldo de Campos, "fazer poesia não é um meio de vida, mas um modo de vida". A poesia está calcada no modo de ser do brasileiro. Falastes em Caetano e me ocorreu perguntar, no quadro da atual MPB, que nomes destacas (além do Arnaldo Antunes, por ti citado, que atua na dupla cena) como significativos da nova geração, fazendo esta "ponte" entre a lírica e a música, já que nossa tradição nessa área é longa e significativa?

NG: Bonito, isso da poesia como "modo de vida". Da poética musical brasileira, gosto muito dos autores que resgatam aquela antiga trilha da nobreza romântica (morbeza), meio tropicalista, meio à margem. Admiro os Tribalistas, Adriana Calcanhoto (cujas parcerias com Antonio Cícero são biscoitos finíssimos), José Miguel Wisnik, Guinga e Lenine – que resgata, no CD O dia em que faremos contatos, uma multiplicidade de ritmos brasileiros com uma sonoridade universal. Disso resulta num pop maravilhoso. A consistência dos trabalhos da Maria Rita, de Los Hermanos e do Chico Bosco é audível. Os malabaristas do sinal vermelho, de João Bosco, é um dos mais belos e vigorosos CDs da MPB contemporânea. De ouvido nas sonoridades dos pequenos circuitos, interessam-me as vozes de Ná Ozzeti, Numa Ciro, Jussara Silveira, Seu Jorge e até a adrenalina sonora do MV Bill.

14. Aproveitando esse "campo semântico", eu sei que, durante o Doutorado, vocês constituíram um grupo de discussões sobre a atual poesia. Dele participavam outros doutorandos, também poetas. Poderias dividir conosco um pouco das preocupações e/ou debates realizados? Considero esse tipo de atividade fundamental para a fermentação intelectual e, infelizmente, não mais praticada, o que torna a pesquisa árida e burocrática.

NG: Também acredito na força coletiva como "ferramenta intelectual". O grupo do qual você fala pode ser definido como um relâmpago: foi rápido e brilhante. Dele faziam parte pesquisadores e poetas interessantíssimos, como: Chico Bosco, Eduardo Guerreiro e André Luís, agora empenhados no projeto da Revista Ponto Doc. Pretendo incluí-los no Fórum Virtual de Debates – O que é Literatura?, que será desenvolvido pelo PACC - Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, com coordenação da professora Beatriz Resende. Você, por exemplo, seria um outro nome convidado a participar desse Fórum.

15. Bem, para finalizar, como vês o lugar da poesia, na atualidade? Tanto no campo da produção, edição, leitura e circulação? E a poesia virtual? E o desafio da Internet? A tendência narrativa não vem sufocando a poesia? Como vês, essa conversa poderia se prolongar muito... mas não tenho o direito de te explorar mais, além do que já fiz.

NG: O lugar da poesia, na contemporaneidade, é o lugar que ela ocupa, principalmente, desde o advento da modernidade: um espaço de crítica, criação e renovação da linguagem. Dificilmente, a mídia e/ou a academia, por exemplo, se preocupam com isso. São outras as suas metas. No campo da produção e da circulação da poesia, há um dado qualitativo que pode ser aferido desde a década de 90: o esmero das produções editoriais e o projeto gráfico de revistas como Inimigo Rumor, Metamorfoses, Azougue, Medusa, Sibila, Sebastião e outras. Se pensarmos naquelas produções independentes e coletivas dos anos 70, que eram importantíssimas naquele contexto fechado, de chumbo, veremos que os poetas contemporâneos são bastante apolíneos.
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Considero a Internet um maravilhoso suporte para a comunicação e a criação. Há nela um grande número de bibliotecas virtuais, além de sites e revistas (como, por exemplo, as Z e Zunái), ligados à cultura e à literatura. Um exemplo concreto: apenas sobre Paulo Leminski, existem mais de 50 páginas na WEB. No Cadê – maior ferramenta de busca no Brasil – estão registrados 332 sites de poesia hospedados na rede. Claro que a qualidade aí cai muito, mas é importante ressaltar o caráter interventivo e o espaço de busca de afirmação desses autores, além de importãncia de atentarmos para as relações entre arte e quantidade no mundo moderno, tão bem dimensionada por Benjamin. Se desses sites saírem dois ou três bons poetas, teremos saldo.
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A Internet possibilita a circulação das obras de arte de modo rápido, democrático; apesar de estarmos num país no qual apenas 5% da população possui acesso à rede; ao contrário do Canadá, por exemplo, onde o número de cidadãos que acessam o mundo virtual ultrapassa o índice de 45%. De olho nas mutações perceptivas e imaginárias deste cyberspace, um dos meus próximos projetos é exatamente escrever acerca das relações entre a literatura e o cenário maquínico e virtual onde hoje ela é produzida. A "superfície luminosa" do computador é, lembrando Santa Tereza, uma das minhas múltiplas moradas. Quanto à narrativa, ela não sufoca a poesia porque seu roteiro é outro. A raça humana – apesar de provisória, criada em apenas sete dias – possui experiência suficiente para saber que nem a guerra impossibilita o poema. Nos "cenários em ruínas" por nós habitados no início deste milênio, a poesia saiu do seu suporte original – a página impressa – e se hospeda em outros suportes possíveis; sejam eles o CD, o cinema, a Internet, a fotografia, o teatro, a dança e todas as manifestações humanas voltadas para as possibilidades de criar outros modos de ver e de dizer as coisas, as idéias, os sentimentos. Assim como esse diálogo que você criativamente conduziu.

Leia textos do entrevistado Nonato Gurgel, por ele disponibilizados em nosso Rede de Letras: "Beleza exige respeito" e "Walter Benjamin e um par de faróis"

sábado, 30 de maio de 2009

O Evangelho dos Fatos













Com este título repetido ou recriado, esta resenha foi publicada em:

- Suplemento Literário 1275, Belo Horizonte, 2004
- Jornal da UBE - O Escritor, São Paulo, 2004
- Revista Laralana nº 10, Salvador, 2004.
- Forum Virtual O que é Literatura e Teatro, Rio de Janeiro, 2004
- Bestiário. Revista de Contos. Ano 1, número 9. Porto Alegre, 01/11/2004
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http://www.bestiario.com.br/)



Sobre Trinca dos Traídos

Polifonia e visibilidade engendram este “tratado de traições”. Os sons do broto renascido, as imagens do escritor que escava, a letra do homem sondado pelo verbo da rua, do velho que dialoga com a dor ou da professora que trama traduzem os ritmos e as cenas de múltiplos espaços onde a subjetividade se constrói: um casario antigo, o sinal no asfalto, o quarto da casa em reforma... Nesses espaços alguns narram a partir de um centro fixo. Outros são narradores visivelmente em trânsito ou vozes narrantes procurando - haja gerúndio para tanto hoje. Existem aqueles que sequer se anunciam, de renascidos que são, e por isso podem “tanger delicadamente a fala”. Esses, os narradores de Trinca dos Traídos e sua visibilidade acesa para a escritura dos fatos.

Esse visível apego aos fatos – “O fel dos fatos” –, essa escritura das coisas miúdas e cotidianas, possibilita a inscrição de um jogo narrativo onde o corpo rouba a cena. Um corpo (seus “mananciais internos, insuspeitos”) que dá as cartas na trilha da diferença - “oito de copas”, “oito de ouros” e “oito de espadas”. Em torno desses três naipes se organizam os 24 contos dessa Trinca..., cuja segunda parte - “Oito de Ouros” - inicia com uma epígrafe do bruxo do Cosme Velho, onde se lê: "os fatos são tudo”. Esse diálogo entre os fatos e as múltiplas subjetividades dos narradores de Trinca dos Traídos é audível logo na primeira linha - “Qual a importância desse fato agora?” - do primeiro conto do livro, e faz-se presente em vários outros textos, como no contemporâneo “Apenas voltar”, onde a voz que narra tem na memória um “oceano repleto de chamados”.
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Sabemos que, ao contrário do que acontece na lírica, o individual não condiz muito bem com a forma narrativa. A narrativa possui sintonia com o social produzido pela linguagem na interação com o outro; daí porque a ação de narrar solicita do autor uma conexão muito mais efetiva com a concretude dos fatos. Essa conexão entre a escritura e os fatos tem sido rentável em vários gêneros. Não é apenas no texto de Machado de Assis que "os fatos são tudo”. Walter Benjamin inicia Rua de mão única “narrando” o poder dos fatos sobre as convicções; Oswald de Andrade inscreve, no Manifesto Pau-Brasil, a poesia que existe nos fatos. Nesse roteiro que estetiza os fatos em formas e contextos os mais diversos, inscreve-se este texto de Iacyr Anderson Freitas. Seu vigor narrativo é visível tanto nos jogos que se estabelecem entre os três naipes e os núcleos temáticos de cada conto, como na seleção das epígrafes e na utilização de procedimentos estéticos herdados do Modernismo, como a parceria do autor com o leitor e seu repertório.
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Exemplar desse jogo que conta com a cumplicidade do leitor e sua óptica é o conto “A reforma”. Esse texto parece um vídeo. No quarto no qual transcorre a trama, um neutro narrador sugere, em 3ª pessoa, conexões entre a traição, a mudança espacial e a transformação do discurso. A concisão desse conto, que aciona a visibilidade e a oralidade do leitor com exatidão, é expressa na utilização do discurso sintético dos ditos populares - síntese de revelação e luz - e nas epifanias que eles encerram, esses ditos. Isso porque, como ensina Walter Benjamin em “O Narrador”, o homem contemporâneo só cultiva o que pode ser abreviado. Formas breves como esse conto onde, como nos bons contos, o mais importante não se diz.

Autor que transita entre gêneros díspares aparentando fidelidade a cada forma (seja essa forma o ensaio, a poesia ou o conto), Iacyr Anderson não se inscreve naquela que alguns autores modernos costumam chamar de “linha” da ruptura de gêneros. Em sua prosa não há experimentalismos estéticos ou metalingüísticos. Sua narrativa apresenta, ao contrário, certa “roupagem clássica”, como lê Luiz Ruffato nas orelhas. Independente dessas “linhas”, é visível nesta escritura a poesia e o exercício reflexivo que formatam seus melhores contos, como acontece em mines roteiros existenciais tipo “No dorso dos domingos”, quando o narrador ouve do pai um “rosário de sílabas sem brilho” e absorve “uma tristeza estrangeira”.
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Outros cenários e roteiros são trilhados no referido “Apenas voltar”, onde um gerúndio final - Procurando - anuncia o que brota depois da poda. Trinca dos Traídos estetiza a narrativa das “pequenas traições” diárias nos cenários que nos consomem e nos quais nos nutrimos. Por isso estes narradores em trânsito e seus evangelhos dos fatos. Por isso a perene travessia de verbos que sondam com delicadeza exata a figura do traído que trai - sua excelência, o leitor. São estas narrativas que regem a falta e sintonizam o duplo. Narrativas do esquecimento - categoria que, como nas “Escavações de um escritor aposentado”, vem sendo cada vez mais acionada pelo narrador contemporâneo.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A fala do "poliglota de silêncios"





Por Entre Nervuras


Publicado nO Jornal de Hoje
Natal, 18 / 06 /1998


A poesia feita nos anos 90 no Brasil vem revelando, ao contrário da década de 80, alguns bons e produtivos autores. Selecionado para Esses Poetas - a nova antologia poética de Heloísa Buarque de Hollanda e prefaciado por Décio Pignatari, Marco Antonio Saraiva é um dos novos. Nascido em 1960 no Rio de Janeiro e formado em Biologia e Literatura (UFRJ), o poeta lançou dois livros: Entre Nervuras (Sete Letras) e Sete jardins e uma paisagem. A seguir, a fala deste “poliglota” que conhece o “idioma da luz e o dialeto das sombras” e que, segundo Décio, apresenta “tanta sinuosidade promissora”, além de chegar “maduro demais “a sua poesia inaugural”.


Nonato Gurgel: Os títulos e textos Entre Nervuras (1995) e Sete Jardins e Uma Paisagem (1997) remetem ao que você chama de uma “educação pela pluma, pela folha”. Em que isso difere da poetizada “educação pela pedra” de João Cabral?

Marco Antonio: Quando Cabral trabalha a linguagem seca, está buscando a forma, diferente do lirismo barato. Na leveza da pluma, você tem diversos encontros com a vida, com o lirismo. Embaixo da pedra há umidade, folha, que são um tipo de lirismo em estado de latência. O que interage com a pedra é a leveza, a folha. Mas isso é uma faca de dois gumes: a nuvem é mais leve que a pedra, mas quando chove pode ter mais peso.


NG: Em termos literários, o que diferencia Entre Nervuras de Sete Jardins e Uma Paisagem?

MA: Quando falo entre nervuras, estou literalmente no espaço da metáfora; quando entro no jardim, estou do lado de fora da nervura. As metáforas são, entre as árvores, genealogias de diversas linguagens de poesia. Ou seja: universalização.


NG: Os procedimentos literários, o culto à forma e o sofisticado recorte vocabular que você seleciona têm por base a produção poética de João Cabral, dos irmãos Campos e de Otávio Paz, dentre outros. Quem mais influenciou na elaboração do seu texto?

MA: Drummond, Bandeira, Trakl, Ungaretti, Décio, os poetas ingleses e franceses, românticos e modernos do século passado: J Donne, Keats, Baudelaire, Mallarmé. Penso muito na idéia de tempo em Proust. Rilke, não da forma que a geração de 45 leu, mas com um olhar presente. Vejo uma atitude muito sensata nos concretos, pela crítica e visualidade. O concretismo renovou a linguagem; 45 freia o verso, o pensamento, a sensibilidade. Depois dos concretos, a gente voltou melhor para o verso.


NG: Que bom, esse retorno! Usar termos oriundos do contexto tecnológico e das áreas científicas é um recurso ao qual você recorre, assim como o fizeram Augusto dos Anjos e João Cabral. Qual a importância dessa terminologia para a construção poética?

MA: Além da universalização de você buscar algo que atualize a emoção e o sentimento, típicos da nossa cultura através do pensamento que é geral, lidando com palavras de outros contextos, tem o processo de você retransformar o que é meramente tecnológico, em prol da necessidade do homem de expressão que se forma do espírito, da própria arte. Esse processo torna mais humana a própria tecnologia. A arte tem um lado biológico e outro artístico.


NG: Essa dualidade lembra-me um verso do Antonio Cícero: “em parte a gente é arte; em outra parte, técnica”. Mas, voltemos a Rilke e seu “olhar presente”, como você sugere. O poeta das elegias diz que todos os poetas falam uma língua comum, com estilos diferentes. Além do apreço pela simetria, da consciência da metalinguagem e dos acentuados ritmos sintáticos, quais procedimentos caracterizam o seu estilo?

MA: A tentativa de fundir aspectos da cultura popular e artesanal (Patativa do Assaré) com o que há de mais salutar, desde expoentes do nosso modernismo aos concretos e Ferreira Gullar, junto com paradigmas da ciência. Reler as artes plásticas em relação ao verso. O caos, por não ter resposta, me dá todos os domínios destas. Não posso ficar num determinado autismo. É preciso ser instintivo e cultural: você começa a desconfiar da cultura e volta a usar o instinto dentro da cultura. Recuperar o olhar da caverna, do indígena.


NG: Para os parnasianos e simbolistas do final do século passado, a música e o exercício da arte pela arte eram a tônica da criação. Além dessas posturas instintivas e culturais, o que move um criador neste final de século?

MA: Todos os paradigmas plásticos e musicais do Romantismo, do Parnasianismo e Simbolismo convergem, neste final de século, de forma sincrética, na minha criação. De forma não apenas estética, mas social e humana, onde busco o enfrentamento com o mundo frio e calculista da tecnologia. Por isso no meu neo-barroco, se é que posso chamar meu estilo assim, aparece a mais pura carga cênica. Houve uma época em que era possível ter só inspiração ou calculismo métrico. Agora é viável uni-los.


NG: Quais autores se destacam como representativos da poética brasileira dos anos 90?

MA: Claudia Roquete Pinto, Naila Rachid, Josely Viana Batista, Lu Meneses, Janice caiafa, Ângela de Campos, Rose Calza, Maria Rita Kehl, dentre outras. Em nenhuma época houve uma geração em que as mulheres tenham se destacado tanto em qualidade e quantidade, em suas produções e na geração. Dentre os poetas, Nelson Ascher, Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz. Augusto Massi, Heitor Ferraz, Duda Machado, Carlos Ávila, Paulo Henriques Brito, Arnaldo Antunes e Júlio Castañon Guimarães.


NG: Além dessa possibilidade de unir “inspiração” a “calculismo métrico”, o que mais caracteriza a produção desses autores?

MA: A concisão, sem escravizar-se a modelos formalísticos ou ideológicos, mas sem perder de vista a visão social.


NG: Essa “visão social” é bastante acentuada na escrita da modernidade, quando a consciência histórica do poema acentuou a pertinência do poeta-crítico. Você, que resenha e ensaia, como lê a situação da crítica?

MA: A pós-modernidade finge ser a convergência de vários estilos de época. Porém, entre a estética e a política e a preferência dita do crítico, prevalece a política. Ou seja: os cânones do poder vinculados a uma prática de dominação cultural, antes de ser o desenvolvimento do momento social posto a serviço da arte. A arte depende, portanto, dos artistas. Não dos cânones do poder.

NG: Existe uma nova sensibilidade no ar? A consciência da alteridade, o culto à diferença, a fragmentação estética, a consciência das identidades móveis e abertas, a produção de simulacros e o uso irônico e bem humorado do arquivo de formas herdadas da tradição caracterizam uma pós-modernidade?


MA: Existe algo novo no ar. Muito do que se escreve é ainda instinto. No pós-modernismo, se é que existe, parece que você está escrevendo no futuro. Eu não sei se estamos escrevendo no futuro. Somos reféns do século XIX, de todos os conceitos científicos e humanos. Se você pensa na máscara africana, ela tem todo um devir estético e social. A gente não fugiu da máscara africana, do construtivismo de Picasso. Tivemos estilos de época que se diferenciaram, com diluição de artes que vieram depois. O pós é uma continuação do moderno, com refrações indicando algo novo no ar, e que somente mais tarde será confirmado pela crítica, pelo gosto do público de arte.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Seis Poetas Para o Próximo Milênio

















Territórios da Moderna Poesia



Publicado na Revista Poesia Sempre
n 27, FBN, Rio de Janeiro, 2007


I

Vivemos, nos cenários da arte e da cultura, uma democracia das formas. Diferentemente do início do século passado, quando as estéticas parnasianas e simbolistas ditavam seus modelos e credos, neste início de milênio nenhuma cartilha estética e formal nos aprisiona ou exclui. Isso não significa que, na contemporaneidade, tudo é permitido nos territórios artísticos e culturais.


Se nas décadas de 70 e 80 do século XX líamos uma poesia alternativa ou marginal, às vezes mais preocupada com uma estetização da existência e menos voltada para os aspectos formais do texto, a partir da década de 90 e neste início de milênio lemos uma produção poética que tem na releitura do arquivo de formas da tradição e na re-construção do verso suas marcas mais visíveis. Para alguns críticos, leitores e/ou poetas, trata-se de uma nova estética do rigor. Secadas as águas da Contracultura e deletados seus desbundes, o comportamento deixou de possuir status de elemento crítico, e as formas experimentais das vanguardas (centradas no texto) e a escrita da marginália (mais plugada na vida) fizeram dos excessos experimentais um filme meio déjà vu, neste cenário onde o pragmatismo e o que é politicamente correto roubam a cena.


Nesta cena poética que abre o milênio, algo é louvável: ela não privilegia nenhuma supremacia entre formas e núcleos temáticos, nem parece hierarquizar gêneros estéticos. Ou seja: adentramos o milênio com extrema liberdade estética. A poesia está livre; o seu formato também. O poema narrativo, em versos, e a forma do soneto convivem, sem atrito, com a dimensão extensiva da prosa poética e com a concisão formatada no poema curto, onde são audíveis os ecos da alegria e da irreverência de Oswald de Andrade.


Esta democracia estética evidencia o culto à forma e à estetização de um texto cuja tonalidade significante anuncia o permanente desejo de releitura, simulação, citação, intertexto, dentre outros procedimentos estéticos. Através desses procedimentos, é visível a porção amorosa e “vampiresca” de alguns dos nossos poetas que evocam e “vampirizam” assumidamente a tradição literária. Isso acontece, por exemplo, nas visíveis simulações poéticas de Ana Cristina Cesar (os ladrões de quem roubei versos de amor com que te cerco[1]) ou na rapidez com a qual Paulo Leminski, ao resgatar as metamorfoses da erótica do corpo, interroga e assume uma forma: Não somos os ossos de Ovídio? [2].


Esta “vampirização” move. Ela ratifica as relações entre a poesia e a memória, a poesia e suas relações com o arquivo de formas da tradição; seja essa a tradição clássica ou a tradição dos modernismos brasileiro e lusitano. O poeta contemporãneo “consulta” o arquivo de formas literárias herdadas da tradição, re-escrevendo a dimensão crítica já vislumbrada no poeta moderno nas suas relações com as linguagens da história. Nesta releitura ecoa uma multiplicidade de formas e linguagens, além de um tom imaginário onde o cotidiano tem voz. Essa releitura de linguagens históricas e estéticas se dá em sintonia com a lição de Ítalo Calvino, para quem o ato da escrita consiste em, dentre outras ações, retirar o peso da linguagem.


Longe vai o tempo no qual os poetas declaravam guerra às formas da tradição – como faziam algumas vanguardas do século XX – proclamando uma linguagem sem passado. Distante também estamos daqueles poetas “comprometidos” ou “engajados” que, na tentativa de dar voz ao povo e de acionar seu protesto, esqueciam, na maioria das vezes, a lição benjaminiana de que só existe engajamento politicamente correto quando a obra é esteticamente coerente [3]. Mas é bom lembrar: quando restrito apenas ao repertório cultural e às pesquisas lingüísticas, à utilização do domínio formal e à atitude crítica ou metalingüística, o poema pode resultar asséptico, frio. Parece carente de existência. Carência da própria existência que o criou?


A contemporaneidade sinaliza ser sua “letra” construída a partir das relações de alteridade, onde o diálogo entre o tempo e o espaço pesa. A inscrição desse olhar poético (uma proposta de visibilidade que possui na re-proposição da alteridade seu alvo), lê na “letra” contemporânea a possibilidade de construir a identidade celebrando a diferença. Com base nessas relações se produzem as formas, as linguagens, os discursos. Nessa problemática, a estrutura inter-subjetiva do sujeito contemporâneo invalida a maioria dos dogmas e procedimentos herdados do Humanismo e do moderno paradigma cartesiano que, ao isolar o corpo da mente, desdenhava o discurso sensorial.


Essa poética que não descarta a dimensão sensorial e credita o imaginário cotidiano ratifica a movência das formas e a “letra” alheia. Elege uma horizontalidade harmônica que acolhe a visão da superfície, dos detalhes em torno, e do que elas – as formas, as vozes da alteridade – engendram de possibilidades de leitura e escrita. Esse trânsito pela superfície nos possibilita adentrar o espaço literário com um pé na reflexão e um outro na modernidade dos fatos (a poesia está nos fatos, diz Oswald de Andrade; a reflexão também reside nos fatos, sugere Walter Benjamin, ao escrever que a construção da vida, no momento está muito mais no poder de fatos que de convicções [4]).


Esta poética que se constrói sob efeito reflexivos e factuais empreende uma leitura do texto literário como documento do imaginário [5], desenvolvendo conexões com a memória (o pretérito) e a informação (o presente). Essas relações entre a reflexão, os fatos, a memória e a imaginação refletem os novos paradigmas e os saberes produzidos, na pós-modernidade, pelas artes, culturas, ciências e filosofias – campos aos quais interessam cada vez mais as relações dialógicas e interdisciplinares; e não o privilégio de nenhuma arte, cultura ou disciplina em relação à outra. Se antes aspirou-se à criação de uma ciência única que daria conta da leitura de todos os signos, hoje sabemos que a multiplicidade dos saberes e das formas vai de encontro a lição de Roland Barthes (com todo o prazer que o texto barthesiano propõe), segundo a qual todas as ciências encontrar-se-iam disseminadas no monumento literário [6].


Após a cena estruturalista outros monumentos, outros olhares foram erigidos, atentos à tecnologia e seu arsenal virtual. Esses olhares não desdenham a amplitude dos meios de comunicação e seus reflexos nas produções artísticas e culturais, na construção do saber. O poeta deste início de milênio sabe que essas relações científicas e tecnológicas estão diretamente relacionadas à criação artística. Isso pode ser aferido, por exemplo, na forma como Armando Freitas Filho estetiza, em Duplo Cego, o teste às escuras produzido pela ciência médica, ou na seguinte afirmação de um autor que transita por várias formas, como Calvino [7]:


...se a literatura não basta para me assegurar que não estou apenas perseguindo sonhos, então busco na ciência alimento para minhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído...

Nesse trecho no qual sugere a proposição da leveza, Calvino sinaliza dois dados bastante importantes: a necessidade de a literatura dialogar com outras áreas do saber e a sugestão da ausência de peso como princípio para a construção textual. Esse diálogo de Calvino com a ciência é sincrônico com a leitura moderna e meio premonitória feita por Baudelaire, cuja senha nos chega através de Walter Benjamin [8]. Atento à ruptura dos paradigmas iniciada no século XIX e que abrangia várias áreas do conhecimento, o poeta de As flores do mal – influenciado por Poe (assumida influência de Calvino) – dá a senha. Diz Baudelaire:


Não está longe o tempo em que se entenderá que uma literatura que se recusa a progredir de mãos dadas com a ciência e com a filosofia é uma literatura assassina e suicida.

Se atentarmos para o aparato crítico e teórico que rege os meandros da arte, da cultura, da filosofia e da ciência contemporâneas, perceberemos que entre esses campos do saber, da criação e da informação iniciou, a partir do século XX, um perene intertexto. Através deste, percebemos que alguns desses saberes e algumas dessas formas artísticas e culturais, embora filiados ao projeto da modernidade, são bastante diferenciados daqueles produzidos principalmente a partir da década de 70 do século XX, quando muitos dos que atuavam nos territórios da arte e da cultura assoletravam as lições de desconstrução do Estruturalismo, e/ou se banhavam nas desbundantes águas da Contracultura.


A essa arte e a cultura que levam em conta a moderna herança intertextual, são acrescidas a produção de cópias e da fabricação de simulacros. Isso faz com que o poeta contemporâneo admita seguir condenado por um simulacro [9], lendo na cópia do modelo o ápice do exemplo [10]. Essas cópias e simulações, os pastiches e os intertextos transformam-se em múltiplos procedimentos estéticos num contexto mediado por um conhecimento virtual que também se efetua através das ações de simular, copiar, citar, reler, atualizar...


Nesse mesmo contexto constata-se a construção de um texto que, além de fortemente ligado ao corpo que o produz, chega, às vezes, a simulá-lo. Essa construção textual advém, em parte, da lição estruturalista de que não existe narrativa sem corpo, e da experiência autoral de que a escrita surge do próprio corpo. A letra não advém de nenhuma dimensão espiritual, como anuncia a escritura nietzscheana: Eu sempre escrevi com meu corpo, com toda minha vida: não conheço problemas puramente espirituais [11].


Ao romper com a tradição filosófica centrada na razão instrumental, Nietzsche questiona a supremacia de Dona Razão e critica a verdade como valor supremo. Propõe a revisão dos valores, elogia a aparência e o fim das dicotomias. Perdida a crença nos valores transcendentes e metafísicos que nortearam a visão do sujeito iluminista, o sujeito da era do virtual olha em sintonia com os acontecimentos, suas circunstâncias. Ele leva em consideração a leitura dos fatos e não mais as convicções individuais nem as noções de essências; sua performance parece às vezes contemplativa – à postura de uma nova ‘pietas’ para com os outros, homens e coisas [12], mas sugere também o desejo de deixar marcada nossa existência, de problematizar, contatar e causar atrito com os homens, a natureza, as coisas.



I I



Quando no pórtico deste milênio dizemos da poesia, não nos referimos apenas ao poema escrito, à noção de poesia como arte que recria o significado das palavras e revitaliza a língua, tornando-se muitas vezes porta-voz e patrimônio simbólico do seu povo (como fazem Fernando Pessoa e Guimarães Rosa com o português, Dante com o italiano e Pound com o inglês, por exemplo). Referimo-nos também à poesia inscrita no corpo, nos gestos cotidianos e nas formas estéticas e culturais que resumem e acionam nossas idéias, nossos sentimentos e desejos; a poesia presente no imaginário coletivo e individual de nossa cultura.


Nessa travessia, o poema lê e experiencia o mundo, como produção que potencializa a estetização existencial. Isso sugere a importância de lermos os signos e as formas, os ritmos e as linguagens que engendram a letra e a experiência do presente. De olho nos textos criados a partir da subjetividade contemporânea, atentamos para a inscrição de uma corporeidade presentificada, no intuito de dialogar com alguns desses signos e algumas dessas formas e linguagens do final do século XX e deste início de milênio, lendo o poema – seus efeitos de leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade –, como um ideograma de um mundo que busca... sua orientação não num ponto fixo, mas na rotação dos pontos e na mobilidade dos signos. [13] Esse olhar de Octavio Paz lembra muito a visão de mundo inscrita pela poética de Paulo Leminski. Se os signos e as formas artísticas e culturais – e a leitura e a reflexão delas emanadas – são experienciados como produtos sociais e contextuais, eles traduzem os ritmos sociais e a subjetividade de uma época.


Sintonizado com Marx e Benjamin [14] – para quem as mudanças de percepção comunitária (patrocinadas principalmente pelas artes visuais e pelo desenvolvimento tecnológico) determinam mutações nas formas produzidas pela sociedade –, Leminski nos ensina que, não apenas os gestos, as linguagens e as formas, mas até os sentimentos (criados a partir desses gestos, dessas formas e linguagens) são históricos [15].


Nesse sentido, o conjunto de formas e linguagens estéticas de uma determinada época, isso que alguns chamam de estilo, estética, podem sinalizar as metamorfoses do seu espaço, os tons do seu tempo. Pode por isso o poema – óptico objeto rítmico – auxiliar no exercício e/ou na criação de um ritmo, um movimento, uma movência, uma estratégia óptica. Através de suas formas e linguagens (onde a cota sonora é geralmente altíssima), o poema sugere gestos, cortes e pausas que anunciam até onde a respiração – leia-se: a experiência – alcança. Ou, como no poema de Claudia Roquette-Pinto, "até onde a respiração me leve" [16].


A partir dos espaços lidos, dos objetos tematizados e das linguagens construídas pelo autor, a forma do texto pode, por exemplo, ajudar a ritmar essa respiração e/ou delinear uma movência, uma construção óptica. O poeta como criador de ritmos, produtor de conexões. Isso é visível, por exemplo, no livro Os olhos do deserto – texto de um poeta múltiplo como Marco Lucchesi – onde o deserto é lido como personagem, cenário e forma para a construção da narrativa poética. Ouçamos o próprio poeta [17]:


Minha busca do deserto foi e tem sido eminentemente poética, que tangencia claramente questões outras como as de ordem teológica, lingüística e política. ...O deserto é uma fábrica de metáforas.

Lido pelo poeta como fábrica de metáforas, o deserto, a busca da escrita poética ostenta, na contemporaneidade, a presença de uma memória metonímica, fragmentada. Lucchesi sabe que a poesia salva porque recolhe fragmentos. Ele caminha por desertos, sertões e circula por múltiplas cidades para inscrever a nostalgia da beleza e a sede de infinito que o devoram. Em sua poética, o deserto é um signo recorrente onde um tom lírico-religioso perpassa por vezes a escritura (essa tonalidade é audível, por exemplo, nos “Cadernos de Viagem”: Leila, teus dias esperam incêndios e inundações...” [18]). Com miradas distintas, é através desse signo do deserto – o hábitat dos nômades; o deserto interior de cada poeta – que algumas poéticas deste milênio ganham forma, se cruzam e bifurcam.


Estetizado através de uma outra percepção, o deserto e suas formas estão presentificados também numa poética urbana como a de Armando Freitas Filho. Na letra de Cabeça de Homem (1991) um eu poético saído de uma cama sem alma abre a porta de um quarto que dá direto para o deserto [19]. Neste mesmo livro, é também no deserto que o poeta conclui a estetização de sua ancestralidade, como anuncia o denso poema “Pai” [20]: Louco tempo depois/ logo após as lágrimas/ começa o deserto. Em Cicero, também, esse signo ganha forma no deserto sem saudades, sem remorsos, só/ sem amarras, barco embriagado ao mar [21].


Seja através da inscrição das formas desérticas do Oriente, acionada por Lucchesi ou desses desertos urbanos estetizados por Armando ou Cicero, seja através da leitura dos cenários desérticos da América [22], empreendida por Baudrillard, esses textos sugerem o quanto de esquecimento, vazio e busca acionam a construção da memória contemporânea, seja ela individual ou coletiva. Nessas leituras o deserto é lido não apenas como paisagem, mas também como forma e crítica cultural. É no intuito de construir essa forma, essa crítica, que o poeta vivifica, nos cenários desérticos (e também nos espaços urbanos), uma solidão virtual e a direção multifária de seu pensamento [23].


Este pensar elege a tradição não apenas no sentido de reverência e culto, mas principalmente como possibilidade de releitura crítica, de recriação. Esse, um dos desafios do poeta desde o final do século XX e neste início de milênio: viver esta direção multitária, sem nenhuma bula literária, nenhuma bússola ou comando. De olho nos imaginários e nos milenares arquivos da arte e da cultura, que tipos de timbres e ópticas a percepção e a subjetividade contemporâneas conseguem apreender e/ou recriar a partir das linguagens verbais e imagéticas produzidas nestes cenários finisseculares?



I I I



O ritmo veloz das imagens pós-modernas parece possibilitar uma sintaxe através da qual as informações oriundas do imaginário e da reflexão não postulam uma leitura calcada apenas na noção de profundidade. Trata-se, portanto, de uma leitura que em vez de ressaltar a hermenêutica de uma profundidade escondida, insiste na política da superfície do texto, ou seja, da sua inserção real enquanto enunciado, na prática da linguagem [24]. As leituras da letra e dessa imagética contemporânea ressaltam, sobretudo, o que de superfície suas imagens ostentam, como anuncia o juramento estético de Marco Lucchesi [25]: Cultivo Jardins abstratos. Formas do silêncio. Mas não se preocupe. Juro pela superfície.

Essa, a lição poética inscrita por Lucchesi: apesar do mergulho, é salutar optarmos pela superfície, pelos planos, por uma certa horizontalidade harmônica. Essa opção pela superfície é também visível, dentre outras, nas poéticas de Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz; nas formas leves como o primeiro relê o vocabulário das formas míticas e filosóficas que habitam nosso imaginário, e numa espécie de reflexão óptica que engendra a letra do segundo. Há um verso no poema “Falar e Dizer” [26], do livro Guardar, onde Cicero sugere esse diálogo entre o arquivo de formas da tradição e os planos da superfície que engendram a letra contemporânea: Herdeiro das superfícies e das profundezas então/ Desponta o sol.

A tonalidade imaginária sugerida por essa poética, em alguns trechos, é tradutora de um olhar que não desdenha as intervenções do acaso (Augusto de Campos) na “letra” ensaística ou poética, e crê na potência do presente e do devir. Isso sinaliza a crença de que se o tempo é outro, conseqüentemente as concepções do espaço, da visibilidade, da tonalidade e das formas contemporâneas também são outras. Ao fazermos um rápido paralelo comparativo entre o espaço urbano da modernidade e o que caracteriza um topos considerado contemporâneo, percebemos claramente suas diferenças.


Se na era moderna Benjamin elegia o flâneur (e seu olhar rápido, efêmero) como personagem representativo das metrópoles, na pós-modernidade podemos eleger o detetive – sugerido por Ricardo Piglia em seu livro O laboratório do escritor, e “encenado” por alguns estudiosos da lógica [27] -- como personagem que, ao perambular pelo espaço, transforma-se em sujeito-signo da rapidez, da velocidade e das fachadas descartáveis da contemporaneidade. Esse detetive e sua imagem podem também ser associados ao olhar estético de Armando Freitas Filho, que se refere à importância do computador para a sua escrita e à ação de escrever sem deixar marcas.


Essa imagem do detetive parece refletir uma outra postura crítica. Sinaliza outras formas de ouvir e olhar. Trata-se, na pós-modernidade, de um olhar e de uma voz que renunciam ao aspecto moral da experiência (Ana C.) e apostam mais nos aspectos estéticos experimentais. Ou seja: apostam no artifício da cena, na encenação, na performance. Na releitura benjaminiana acionada por Beatriz Resende, não é mais possível ser um flâneur. Você não sai mais ‘dando mole’ pela cidade grande [28].

Sabemos que, desde a leitura da modernidade feita por Walter Benjamin, os procedimentos múltiplos da reprodutibilidade técnica passaram a gerar miríades de possibilidades de leituras em relação ao original. O poeta contemporâneo sabe que avançar uma página é retornar ao princípio [29]. Assim sendo, cópias decalcam de cópias, gestos são repetitivos, exercícios de simulação são efetuados no sentido de propor a construção de outras formas e a leitura de múltiplos sentidos.


Esses exercícios de simulação podem ser comparados, por exemplo, nas formas como Antonio Cicero e Paulo Leminski atualizam o nosso repertório imaginário, através dos ícones e dos textos da mitologia grega, como Perseu e Prometeu. As diferenças começam entre os gêneros escolhidos por ambos para a estetização do referido imaginário: enquanto Cicero opta pela inscrição de uma letra cuja forma o aproxima, em alguns poemas, do estilo clássico, Leminski opta por uma prosa poética, rompendo definitivamente com a noção de gênero literário.


A crise virou substância, diz Leminski. As imagens e linguagens poéticas são colhidas nestas ruínas circulares, nos arquivos da tradição. Sem dramas. Sem a nostalgia do original. Herdeiro das desconstruções, da solidez que desmancha no ar, das movências, suas descontinuidades e do mal-estar gerado pela crise dos paradigmas da modernidade, o poeta contemporâneo busca fazer dessa herança matéria para sua criação. O poeta contemporâneo sabe que escreve para ser reescrito [30]. Agora saem de cena a postura down ou o comportamento blasé muitas vezes cultuados por alguns poetas das décadas de 70/80. Apesar da morte nestes cenários em ruínas onde a poesia se faz, não estamos num tempo favorável às vitimas. Daí o desejo de construir, vigorar.


Algumas poéticas retomam esse rigor da forma com muita fome. As vezes essa retomada resulta na produção de um poema que estetiza no papel uma escritura desvinculada da experiência, distanciada da pele. Para alguns críticos e/ou leitores, esse distanciamento entre a pele e o papel poderia sugerir, em alguns casos, um divórcio entre poesia e vida. Mas esse divórcio foi sinalizado apenas num certo momento. Referindo-se ao contexto poético de meados dos anos 90, o poeta Armando Freitas Filho dizia haver ali um certo ‘estilo bouquet’, meio faisander, com flores falsas, de permeio [31]. Ao voltar-se para o novo milênio, é outro o olhar do poeta de Fio Terra:

... agora, os punhos de renda que teimavam em aparecer por baixo das mangas dos casacos populares se esgarçaram de vez, por impróprios. Pode-se obter finesse com outros meios; afinal, talvez com alguma fissura (como já dizia Ledussa)...

É saudável o esgarçamento desses punhos de renda. Melhor ainda se houver, no poema, fissura e forma. Depois do desprezo de grande parte dos poetas alternativos ou marginais pela construção do poema, entende-se como necessário e produtivo esse rigor que predomina na maioria dos textos contemporâneos. Mas isso se constitui num dos ângulos do caleidoscópio. Apesar de contextual e convincente, através dele – o rigor – podemos problematizar o efeito inverso de sua inscrição.


Não seria interessante, por exemplo, que futuras gerações venham a insinuar que – depois do formalismo e do pragmatismo do final do século XX e/ou deste início de milênio – seja necessário à poesia aliar-se novamente à vida; a poesia retornar o seu diálogo com a existência. De olho nesta problemática, o poeta Waly Salomão – para quem Leminski realizava a contribuição milionária de todos os erros da raça de que falava Oswald – pensa que cada poema de per se constitui uma poética. Com base nisso, o parceiro de Antonio Cicero expõe sua atual receita para o produto que vem elaborando desde o início dos anos 70. Diz o autor de Algaravia [32]:

O que surge com a marca evidente de derivação vivencial deve passar pelo crisol do lido para que não permaneça um produto naturalista. E a operação inversa deve ser buscada para o que surgir precipitado por leitura: deve passar por uma imersão nos líquidos amnióticos da vivência. Por estas brechas elaboro minha poesia hoje: nem naturalismo vitalista, nem intelectualismo excludente da experimentalidade. Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre o coloquial e o pensado.


Esse é o brilhante desafio de Waly para seus contemporâneos: a possibilidade de construir formas literárias com base numa cota de investimento afetivo e/ou numa estética da existência que inclui dados reflexivos e imaginários, sem desdenhar as linguagens da história. Esta multiplicidade de formas e timbres do atual cenário poético aponta para o fato de que depois do enxugamento radical da sintaxe e das tentativas de morte do verso (executados principalmente pelo Concretismo e pelo Poema Processo), e após os excessivos experimentos lítero-existenciais dos marginais, os poetas contemporâneos retornaram mais vigorosos (afoitos e rigorosos) para a re-construção do verso, do poema.


BIBLIOGRAFIA

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Nonato Gurgel é doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Possui Mestrado em Estudos da Linguagem, Especialização em Literatura Brasileira e Graduação em Letras pela UFRN. É professor substituto de Literatura Brasileira da UFRJ e do Instituto de Humanidades da UNIGRANRIO.





[1] CESAR, Ana C. Inéditos e Dispersos. 1985. p. 170.
[2] LEMINSKI, Paulo. Catatau. 1989. p. 63.
[3] HOLLANDA, Heloísa B. de. Impressões de Viagem. 1980. p. 27.
[4] BENAJMIN, Walter. Rua de mão única. 1995. p. 11.
[5] CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. 1997. p. 96.
[6] BARTHES, Roland. Lição. 1988. p. 19.
[7] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. 2001. p. 20.
[8] BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. 1994. p. 40.
[9] LUCCHESI, Marco. Os olhos do deserto. 2000. p. 129.
[10] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit.1989. p. 77.
[11] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 1983.
[12] MONTALE, Eugenio. Poesias. 1997. p. 9.
[13] PAZ, Octavio. Convergências. 1991. p. 97.
[14] BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica. Arte e Política. 1993. p. 169.
[15] LEMINSKI, Paulo. Vida. 1998. p. 19.
[16] ROQUETTE-PINTO, Claudia. Corola. 2000. p. 11.

[18] LUCCHESI, Marco. Op. Cit. 2000. p. 30.
[19] FREITAS FILHO, Armando. Cabeça de Homem. 1991. p. 69.
[20] FREITAS FILHO, Armando. Op. Cit. 1991. p. 49.
[21] CICERO, Antonio. Guardar. 1996. p. 51.
[22] Cf. BAUDRILLARD, Jean. América. 1986. p. 106.
[23] LUCCHESI, Marco. Op. Cit. 2000. p. 84.
[24] SCHOLLAMMER, Karl E. Revista Ipotesi. 2002. p. 60.
[25] LUCCHESI, Marco. Op. Cit. 2000. p. 107.
[26] CICERO, Antonio. Op. Cit. 1996. p. 33.
[27] COPI, Irving M. Introdução à Lógica. 1978. p. 391.
[28] RESENDE, Beatriz. Jornal do Brasil. 2002. p. 3.
[29] CARPINEJAR, Fabrício. Biografia de uma árvore. 2002. p. 81.
[30] CARPINEJAR, Fabrício. Op. Cit. 2002. p. 19.
[31] FREITAS FILHO, Armando. Revista Cult. 2000. p. 10.
[32] SALOMÃO, Waly. Revista Poesia Sempre. 2000. p. 361.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Caio 68




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A narrativa do olhar invisível


Ensaio publicado in Terceira Margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Ano XII, n 19, UFRJ, Faculdade de Letras, Agosto/Dezembro, 2008.

Resumo

Este ensaio elabora uma leitura do percurso literário do escritor Caio Fernando Abreu, atentando para as formas do imaginário que ele herda do contexto de 68. Dessa herança brota uma narrativa centrada principalmente na ação do olhar, embora muitos dos seus personagens não apresentem interação óptica.

Palavras-chaves: Literatura Brasileira – Caio Fernando Abreu – Narrativa contemporânea –Imaginário – 1968.
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“...meu Deus, como sou típico,
como sou estereótipo da minha geração”.

Caio F.

Escrita por Caio Fernando Abreu (1948 – 1996) na "Carta ao Zezim" (José Márcio Penido) de 1979, essa assertiva acima dialoga com a contracapa da primeira edição do livro Pedras de Calcutá, de 1977. Nesse livro onde biografa uma geração que testemunha o fim do sonho, o escritor define a sua como “uma geração violentada, colonizada e drogada a partir de 1964”.

Esse diálogo entre a contracapa do livro de 1977 e a carta de 1979 sugere como a trilogia da violência política, da colonização cultural e do consumo de drogas contribuiu para o roteiro existencial da geração do autor. Está presente também, essa trilogia, em grande parte da bibliografia de 15 volumes que ele escreveu, englobando os mais diferentes gêneros e formas estéticas, como o romance, o conto, o teatro, a crônica, a tradução e as cartas (Caio F., Ana C. e Paulo Leminski fazem parte da última geração literária que escrevia e colecionava cartas?).

Diagnosticada por Caio já 1964, essa trilogia da violência, da colonização e das drogas potencializou-se ainda mais naquele que é considerado o ano que sacudiu e esboçou um novo mundo no século XX: 1968. Em 68, Caio F. tem 20 anos. Larga os cursos de Letras e Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e transfere-se para São Paulo, após ser selecionado, em concurso nacional, para integrar a primeira redação da revista Veja.

Dispensado depois dessa revista — em plena ditadura militar — ele foi perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ligado ao regime dessa mesma ditadura que cortaria, anos depois, três contos do livro O ovo apunhalado, e que proibiria mais tarde a sua peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora. Devido a essa perseguição iniciada em 1968, Caio refugiou-se no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas (SP). Depois, o autor viajou para Estocolmo, Rio de Janeiro, Paris, Londres... Aquele era um tempo de viagens. Muitas viagens. Como aquelas que fazem, por exemplo, os personagens do conto “Os sobreviventes”, de Morangos Mofados (1982), como veremos adiante.

O imaginário de 68 como herança

Segundo Georges Balandier, “o imaginário encontra sua substância nos espaços, mas vai além: projeta-se neles, inscreve-se neles tornando-se inventor de situações construídas”. Na literatura brasileira do final do século XX, Caio F. destaca-se como um autor cuja “substância” histórica inclui, nas suas formas de narrar, um imaginário desejante e vigoroso que, apesar de herdado de 68, projeta-se e inscreve-se a partir da década de 70.

Em 68 Caio tinha um texto publicado: o conto “Príncipe Sapo”, lançado na revista Claudia, de 1966. Iniciava ali a produção de uma obra que privilegia principalmente as formas breves e fragmentadas – o conto, a crônica, a carta, a resenha. Além dessa predileção pelo texto abreviado, distanciado da oralidade que sedimenta a narrativa clássica, Caio herda do imaginário daquele contexto político e cultural suas formas estéticas e ideológicas, outros modos de visão, outras formas de sentir.

O imaginário herdado de 68 produz outras escritas. Trata-se de um imaginário que elege o desejo como algo produtivo e que contém elementos técnicos e maquínicos. As formas construídas por esse imaginário levam em conta o cinema, a tv e a música popular, embora dialoguem freqüentemente com a tradição literária. Esse diálogo entre diferentes formas de percepção estética altera as noções de literariedade. O contexto de ruptura de 68 gerou novos mitos e diferentes paradigmas culturais. Embora o advento das vanguardas no início do século XX tenha patrocinado rupturas irreversíveis nos paradigmas artísticos, nas décadas anteriores a 68 o imaginário produtor de literatura era ainda habitado basicamente por signos literários relacionados àquele mesmo imaginário estético cujo apogeu de dá no século XIX (“o mais literário de todos os séculos”, segundo o ensaísta português Eduardo Lourenço).

O século XX, dando mais ênfase à visibilidade e, portanto, bem mais cinematográfico do que literário, produziu as seguintes cenas e tomadas: estudantes e policiais nas ruas de Paris; o sonho da democracia em Praga; a passeata dos cem mil e a ditadura militar do Brasil, o Ato Institucional número 5 e o Vietnã. No filme de 68 tinha ainda “personagens” e obras como: Hendrix, Godard, Tropicália e Roda Viva. 68 produziu com esse “filme” uma revitalização das linguagens, sugerindo a inversão dos valores e criticando a lógica da produção massificada, inscrita nos grafites dos muros e gritadas como novas palavras de ordem: “sejamos realistas, peçamos o impossível” ou “Sob o asfalto, a praia!”.

Com a herança histórica dessas linguagens e formas políticas, artísticas e culturais herdadas do imaginário de 68, Caio tece o seu roteiro existencial e o enredo do primeiro romance escrito aos 18 anos: Limite Branco – segundo livro publicado em 1971. Produz, com essa herança imaginária, uma narrativa que leva em conta não apenas o vestuário e os gestos, mas as gírias, os clichês, trechos de canções, fragmentos de linguagens cotidianas. Muitos dos seus personagens herdaram os hábitos alimentares do universo hippie, suas técnicas de meditação e seus roteiros astrológicos; alguns herdaram também os produtos naturais e suas fumaças, fabricando formas e leituras de mundo que nem sempre privilegiam os modelos “vencedores”.

É do manancial de imagens urbanas, velozes e sombrias, da mistura de ritmos dos Beatles e dos timbres de Billie Holiday, do diálogo entre os tons literários e esotéricos (mistura do poeta W Whitman com o místico Krisnamurti) e, principalmente, do recorte lingüístico e vocabular concernente às ruas de 68 e às esquinas dos anos 70, que o escritor gaúcho recolhe a matéria para a criação dos seus personagens e a produção do seu discurso.

Com a memória das viagens e das experiências estocadas nos músculos e no olhar, o autor publica na década de 70 os seus quatro primeiros livros: Inventário do Irremediável (1970), Limite branco (1971), O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977). São letras da urgência. Literatura parida do mergulho nas entranhas. Narrativas que tematizam a solidão, o sonho, o fantástico, a evasão urbana e a clausura da vida moderna. Textos que privilegiam os discursos abissais de personagens que transitam à margem da sociedade: ex-hippies, presidiários, loucos, homossexuais, vagabundos, viajantes, prostitutas, militares autoritários, mulheres que abortam, adolescentes sem pais nem país...

O gosto de mofo na boca e o “nó no peito” herdados do contexto político e existencial da década de 60 e das seguintes são estetizados com vigor no livro Morangos Mofados (1982) – primeiro volume a dar uma maior visibilidade ao autor. O texto começa com um conto chamado “Diálogo”. Nele, dois jovens identificados pelas letras A e B dialogam, e a palavra que mais se repete ao longo das duas páginas (repletas de paranóia e escuridão) é “companheiro”. “Os companheiros” é também o título do sexto conto que compõe “O mofo” – a primeira das três partes desse livro (as outras duas são, respectivamente, “Os morangos” e “Morangos mofados”).

Recorrente no contexto sócio-político e estético de 68, “companheiro” é uma das palavras mais pronunciadas pela mídia e foi inscrita pelo discurso memorialístico da geração de intelectuais e escritores do Brasil pós 68. Em sintonia com o recorte vocabular daquele contexto, “companheiro” disputa sua primazia com termos, expressões e títulos como: estrangeiros, exilados, sobreviventes, é proibido proibir, a imaginação no poder, “Paris não é uma festa” (Pedras de Calcutá)... Todas essas palavras, expressões e clichês são recorrentes nas páginas de Morangos Mofados e de outros textos, atestando a sintonia lingüística e cultural do autor com o seu tempo. Um tempo – a década de 80 do século XX – que ele leu assim num “palanque” de uma revista semanal (ABREU, 1986, p. 30):

Então, para nos distrairmos, há o pós. Pós-punk, pós-new-wave, pós-moderno, pós-tudo, pós-pós. ...Ninguém falou ainda no pré. Pré –qualquer - coisa. Anos 80 como o pré cara a cara com a nossa perdição de micróbios doentes na crosta frágil de um planetinha insignificante? Anda, sim, tudo muito triste.

Esse discurso de tonalidade irônica e confessional é alternado por uma dicção meio chula, às vezes cáustica, ríspida ou dramática, onde gírias e palavrões convivem harmoniosamente com títulos de Chopin e citações de Clarice Lispector. Além de Carlos Drummond, Clarice Lispector é a grande influência literária de Caio F: “...é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando” (ABREU, 2005, p. 154), diz ele na mesma "Carta ao Zezim", citada no início deste texto. “Aquela Macabéa é o Brasil”, diz o autor em entrevista. Como Clarice, ele filia-se a uma linhagem literária onde a repercussão dos fatos e as possibilidades epifãnicas da linguagem dizem geralmente muito mais que os próprios fatos da narrativa.

Caio herda de Clarice um forte apreço pela porção religiosa da vida. Em alguns momentos seus personagens parecem possuir uma “compreensão sagrada” e sangrada de si e do outro. É audível na prosa de ambos, um certo tom religioso que, de modo aparentemente ambíguo, os põe em contato com o lado romântico e desejante de cada um em plena modernidade irônica. Há na escrita deles, uma inusitada sintaxe entre religião, sabedoria e desejo, onde o grotesco ou o dramático geralmente se fazem presentes. O desejo de “compreensão sagrada” parece denotar certa sintonia com a esfera de um saber que não exclui o corpo na sua relação com a escrita; o que se constitui como outra marca da criação dessa família literária.

Esse discurso de dicção alternativa, de tons aflitos e às vezes violentos estetiza, ao contrário do que acontece neste início de milênio, o comportamento como elemento crítico. Diz também do horror vivificado por uma geração que questionou as heranças antigas, e atualiza as formas de solidariedade e participação que 68 nos legou, quais sejam: o apreço pelo discurso das “minorias” – negros, gays, mulheres, sem terras e audição para os defensores das causas ecológicas, dentre outros.

Esse discurso alia a atitude cotidiana e existencial ao gesto político, seja esse gesto oriundo dos jovens alternativos do desbunde ou dos companheiros da luta armada dos anos 70. O que Caio denuncia em ambos os segmentos – seja no desbunde e/ou na luta armada – é o automatismo comportamental e extremista de ambas as “facções”. Além do vazio existencial de sua geração, sua literatura documenta a falta de apreço pelas micro-políticas do cotidiano, em prol de um total engajamento com as chamadas “grandes causas”.

Tais “causas” nos trazem de volta ao conto “Os Sobreviventes”, de Morangos Mofados. Nesse texto de 1982, a voz narradora é uma militante consciente. Ela comparece a atos públicos e picha muros contra usinas nucleares. O seu discurso fragmentado e sem pontuação parece denotar os roteiros ideológicos de uma geração cuja falta de ritmo é experienciada na própria fala. Ouçamos a voz de quem sobreviveu: “Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?” (ABREU, 1983, p. 15).

O nó no peito, a falta de jeito, a ausência de senhas sobre o que fazer são imagens também recorrentes nos autores que vivificaram e /ou herdaram, no Brasil, essa imagética dos nós por desatar, da falta do que dizer, do nada que restou após as perdas das utopias e seus desdobramentos políticos e culturais. Atesta isso o verso curto e preciso de outro autor também sintonizado com os roteiros de 68, Paulo Leminski. Em seus Caprichos & Relaxos (1983), livro lançado na coleção Cantadas Literárias da qual Morangos... também faz parte, o poeta curitibano que biografou Jesus confessa: “Nadei nadei e não dei em nada” (LEMINSKI, 1983, p. 31).

Quem também escancara a marca desse discurso da perda e do desencanto oriundos em grande parte da quebra das utopias e do fim dos projetos grupais, é a poeta Ana Cristina Cesar, em A teus pés (1982), livro lançado na mesma coleção Cantadas Literárias. Ao reler a poeta norte americana Elizabeth Bishop em sua longa temporada brasileira, entre Rio de Janeiro e Minas Gerais, Ana C. dialoga com o seu poema “Uma arte”, do livro Geografia III (1976), e descreve (CESAR, 1982, p. 44):

Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.

Caio F., Leminski e Ana C. são autores que se deslocam por espaços de buscas e roteiros inacabados, testemunhando experiências de perdas. Suas micro-narrativas são repletas de narradores em trânsito, de paisagens em movimento, de estrangeiros que se deslocam. Suas “letras” traduzem a subjetividade aflita e algumas das perdas dos “sobreviventes” de 68.

Em Caio F. a tradução dessa aflição e a inscrição dessas perdas são mediadas pelo desejo de encontrar, em meio a pedras e concreto armado, ao redor do mofo urbano, do musgo e dos sacos de lixo do asfalto, alguma coisa urgentemente, algum naco de luminosidade. Seus personagens decidem plantar morangos em pleno edifício metropolitano. São gestos e coisas de quem, como leitor de Clarice Lispector, acredita em “pequenas epifanias”. A partir dessa crença cria-se outra visibilidade; outras categorias de ver e traçar outros roteiros.

A narrativa do olhar invisível

A partir do arquivo de formas herdadas daquele imaginário de 68 e das décadas seguintes, Caio F. tece uma narrativa centrada principalmente na ação do olhar. Para a tessitura dessa narrativa que dialoga com o cinema e outras artes, o autor elege outras categorias de ver. A leituras das cartas sugere que, dentre outros, três elementos díspares dialogam entre si, engendrando esta narrativa do olhar invisível. São eles: a melancolia lusa, a sensualidade afro-tropical e algumas gramas da dramaticidade espanhola, seus “vendavais de ciúmes e impulsos homicidas” (ABREU, 2002, p. 94).

A estética do olhar invisível inclui o desvio, a deriva, o viés. Daí a aparição nesta obra de tantos narradores que olham e contemplam através de persianas, por trás das vidraças, dentro de vagões velozes, como acontece em algumas crônicas de Pequenas Epifanias (1996). Nestes textos publicados antes no jornal O Estado de São Paulo, de 1986 a 1995, deparamos com narradores que vislumbram o outro pela fenda, pelo buraco da fechadura. Tentam também olhar pela fresta, pela nesga de luz que o dia faz brotar e depois transforma em treva, sombra, mofo, alguma coisa estranha.

Em Caio, este olhar para o outro e para as coisas instaura a narrativa do olhar invisível, sem interação. Um olhar que olha, mas nem sempre se deixa ver. “Olhar de quem tem uma asa ferida”, como a Macabéa de A hora da estrela (LISPECTOR, 1993, p. 41). Acerca desse olhar vejamos dois trechos de dois contos de Morangos Mofados: “só era visível quando o olho ficava tão inundado de luz que enxergava esse invisível no meio do tocável” (“Sargento Garcia”) e “... o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda... (“Além do Ponto”). Em ambos os contos os narradores se valem de outro sentido – o tato, e não apenas da visão – para conseguir a interação que a visibilidade não alcança na relação com o outro.

Na crônica “Pálpebras de neblinas”, a visão da prostituta que chora em plena rua Augusta, em Sampa, também não possibilita qualquer interação óptica: “Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para sua própria dor que estava, também, meio cega. Via para dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou.” (ABREU, 2006, p. 77). No conto “uma estória de borboletas”, de Pedras de Calcutá, essa falta de interação é estetizada de forma extrema: “... quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse...” (ABREU, 1977, p. 94).

Sargentos, prostitutas, detentos, estranhos estrangeiros e exilados sem prazos... Seus narradores trocam de óculos – e de cidade – de olho na fenda imposta pela fala. Outros tocam, ao narrar, a brecha onde, por vezes, o real revela sua face menos previsível e solitária: “Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrines, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono”.

Em meio a essas “descargas de monóxido”, alguns personagens amanhecem e descobrem – vermelhos – ser tempo de morangos. Eles sabem que para colher o sim dos morangos, é preciso remover o mofo do olho, o fungo do corpo e ter fé no musgo da paisagem, como leciona a narrativa do olhar invisível. Nela, mais do que ser visto, quem narra quer apenas ser.

Bibliografia


ABREU, Caio Fernando. Pedras de Calcutá. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.
____ Morangos Mofados. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
____ “Duas ou três coisas sobre os anos 80” in (?). (coluna “palanque”). 1986.
____ Morangos Mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
____ Estranhos Estrangeiros. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
____ Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
____ Cartas. Moriconi, Ítalo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
BALANDIER, Georges. “O imaginário na modernidade” in O Contorno. Poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
CALLEGARI, Jeanne. Caio Fernando Abreu. Inventário de um escritor irremediável. São Paulo: Seoman, 2008.
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982.
FUENTES, Carlos. Em 68. Paris, Praga e México. Trad. Ebréia de Castro Alves. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
GURGEL, Nonato. “A crônica epifânica de Caio Fernando Abreu...” in Jornal Tribuna do Norte. Natal, 1998.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “Hoje não é dia de rock” in Morangos Mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
LEMINSKI, Paulo. Caprichos & Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 22a ed. Rio de Janeiro: Frco. Alves, 1993.