sexta-feira, 29 de maio de 2009

A fala do "poliglota de silêncios"





Por Entre Nervuras


Publicado nO Jornal de Hoje
Natal, 18 / 06 /1998


A poesia feita nos anos 90 no Brasil vem revelando, ao contrário da década de 80, alguns bons e produtivos autores. Selecionado para Esses Poetas - a nova antologia poética de Heloísa Buarque de Hollanda e prefaciado por Décio Pignatari, Marco Antonio Saraiva é um dos novos. Nascido em 1960 no Rio de Janeiro e formado em Biologia e Literatura (UFRJ), o poeta lançou dois livros: Entre Nervuras (Sete Letras) e Sete jardins e uma paisagem. A seguir, a fala deste “poliglota” que conhece o “idioma da luz e o dialeto das sombras” e que, segundo Décio, apresenta “tanta sinuosidade promissora”, além de chegar “maduro demais “a sua poesia inaugural”.


Nonato Gurgel: Os títulos e textos Entre Nervuras (1995) e Sete Jardins e Uma Paisagem (1997) remetem ao que você chama de uma “educação pela pluma, pela folha”. Em que isso difere da poetizada “educação pela pedra” de João Cabral?

Marco Antonio: Quando Cabral trabalha a linguagem seca, está buscando a forma, diferente do lirismo barato. Na leveza da pluma, você tem diversos encontros com a vida, com o lirismo. Embaixo da pedra há umidade, folha, que são um tipo de lirismo em estado de latência. O que interage com a pedra é a leveza, a folha. Mas isso é uma faca de dois gumes: a nuvem é mais leve que a pedra, mas quando chove pode ter mais peso.


NG: Em termos literários, o que diferencia Entre Nervuras de Sete Jardins e Uma Paisagem?

MA: Quando falo entre nervuras, estou literalmente no espaço da metáfora; quando entro no jardim, estou do lado de fora da nervura. As metáforas são, entre as árvores, genealogias de diversas linguagens de poesia. Ou seja: universalização.


NG: Os procedimentos literários, o culto à forma e o sofisticado recorte vocabular que você seleciona têm por base a produção poética de João Cabral, dos irmãos Campos e de Otávio Paz, dentre outros. Quem mais influenciou na elaboração do seu texto?

MA: Drummond, Bandeira, Trakl, Ungaretti, Décio, os poetas ingleses e franceses, românticos e modernos do século passado: J Donne, Keats, Baudelaire, Mallarmé. Penso muito na idéia de tempo em Proust. Rilke, não da forma que a geração de 45 leu, mas com um olhar presente. Vejo uma atitude muito sensata nos concretos, pela crítica e visualidade. O concretismo renovou a linguagem; 45 freia o verso, o pensamento, a sensibilidade. Depois dos concretos, a gente voltou melhor para o verso.


NG: Que bom, esse retorno! Usar termos oriundos do contexto tecnológico e das áreas científicas é um recurso ao qual você recorre, assim como o fizeram Augusto dos Anjos e João Cabral. Qual a importância dessa terminologia para a construção poética?

MA: Além da universalização de você buscar algo que atualize a emoção e o sentimento, típicos da nossa cultura através do pensamento que é geral, lidando com palavras de outros contextos, tem o processo de você retransformar o que é meramente tecnológico, em prol da necessidade do homem de expressão que se forma do espírito, da própria arte. Esse processo torna mais humana a própria tecnologia. A arte tem um lado biológico e outro artístico.


NG: Essa dualidade lembra-me um verso do Antonio Cícero: “em parte a gente é arte; em outra parte, técnica”. Mas, voltemos a Rilke e seu “olhar presente”, como você sugere. O poeta das elegias diz que todos os poetas falam uma língua comum, com estilos diferentes. Além do apreço pela simetria, da consciência da metalinguagem e dos acentuados ritmos sintáticos, quais procedimentos caracterizam o seu estilo?

MA: A tentativa de fundir aspectos da cultura popular e artesanal (Patativa do Assaré) com o que há de mais salutar, desde expoentes do nosso modernismo aos concretos e Ferreira Gullar, junto com paradigmas da ciência. Reler as artes plásticas em relação ao verso. O caos, por não ter resposta, me dá todos os domínios destas. Não posso ficar num determinado autismo. É preciso ser instintivo e cultural: você começa a desconfiar da cultura e volta a usar o instinto dentro da cultura. Recuperar o olhar da caverna, do indígena.


NG: Para os parnasianos e simbolistas do final do século passado, a música e o exercício da arte pela arte eram a tônica da criação. Além dessas posturas instintivas e culturais, o que move um criador neste final de século?

MA: Todos os paradigmas plásticos e musicais do Romantismo, do Parnasianismo e Simbolismo convergem, neste final de século, de forma sincrética, na minha criação. De forma não apenas estética, mas social e humana, onde busco o enfrentamento com o mundo frio e calculista da tecnologia. Por isso no meu neo-barroco, se é que posso chamar meu estilo assim, aparece a mais pura carga cênica. Houve uma época em que era possível ter só inspiração ou calculismo métrico. Agora é viável uni-los.


NG: Quais autores se destacam como representativos da poética brasileira dos anos 90?

MA: Claudia Roquete Pinto, Naila Rachid, Josely Viana Batista, Lu Meneses, Janice caiafa, Ângela de Campos, Rose Calza, Maria Rita Kehl, dentre outras. Em nenhuma época houve uma geração em que as mulheres tenham se destacado tanto em qualidade e quantidade, em suas produções e na geração. Dentre os poetas, Nelson Ascher, Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz. Augusto Massi, Heitor Ferraz, Duda Machado, Carlos Ávila, Paulo Henriques Brito, Arnaldo Antunes e Júlio Castañon Guimarães.


NG: Além dessa possibilidade de unir “inspiração” a “calculismo métrico”, o que mais caracteriza a produção desses autores?

MA: A concisão, sem escravizar-se a modelos formalísticos ou ideológicos, mas sem perder de vista a visão social.


NG: Essa “visão social” é bastante acentuada na escrita da modernidade, quando a consciência histórica do poema acentuou a pertinência do poeta-crítico. Você, que resenha e ensaia, como lê a situação da crítica?

MA: A pós-modernidade finge ser a convergência de vários estilos de época. Porém, entre a estética e a política e a preferência dita do crítico, prevalece a política. Ou seja: os cânones do poder vinculados a uma prática de dominação cultural, antes de ser o desenvolvimento do momento social posto a serviço da arte. A arte depende, portanto, dos artistas. Não dos cânones do poder.

NG: Existe uma nova sensibilidade no ar? A consciência da alteridade, o culto à diferença, a fragmentação estética, a consciência das identidades móveis e abertas, a produção de simulacros e o uso irônico e bem humorado do arquivo de formas herdadas da tradição caracterizam uma pós-modernidade?


MA: Existe algo novo no ar. Muito do que se escreve é ainda instinto. No pós-modernismo, se é que existe, parece que você está escrevendo no futuro. Eu não sei se estamos escrevendo no futuro. Somos reféns do século XIX, de todos os conceitos científicos e humanos. Se você pensa na máscara africana, ela tem todo um devir estético e social. A gente não fugiu da máscara africana, do construtivismo de Picasso. Tivemos estilos de época que se diferenciaram, com diluição de artes que vieram depois. O pós é uma continuação do moderno, com refrações indicando algo novo no ar, e que somente mais tarde será confirmado pela crítica, pelo gosto do público de arte.