quinta-feira, 28 de maio de 2009

Seis Poetas Para o Próximo Milênio

















Territórios da Moderna Poesia



Publicado na Revista Poesia Sempre
n 27, FBN, Rio de Janeiro, 2007


I

Vivemos, nos cenários da arte e da cultura, uma democracia das formas. Diferentemente do início do século passado, quando as estéticas parnasianas e simbolistas ditavam seus modelos e credos, neste início de milênio nenhuma cartilha estética e formal nos aprisiona ou exclui. Isso não significa que, na contemporaneidade, tudo é permitido nos territórios artísticos e culturais.


Se nas décadas de 70 e 80 do século XX líamos uma poesia alternativa ou marginal, às vezes mais preocupada com uma estetização da existência e menos voltada para os aspectos formais do texto, a partir da década de 90 e neste início de milênio lemos uma produção poética que tem na releitura do arquivo de formas da tradição e na re-construção do verso suas marcas mais visíveis. Para alguns críticos, leitores e/ou poetas, trata-se de uma nova estética do rigor. Secadas as águas da Contracultura e deletados seus desbundes, o comportamento deixou de possuir status de elemento crítico, e as formas experimentais das vanguardas (centradas no texto) e a escrita da marginália (mais plugada na vida) fizeram dos excessos experimentais um filme meio déjà vu, neste cenário onde o pragmatismo e o que é politicamente correto roubam a cena.


Nesta cena poética que abre o milênio, algo é louvável: ela não privilegia nenhuma supremacia entre formas e núcleos temáticos, nem parece hierarquizar gêneros estéticos. Ou seja: adentramos o milênio com extrema liberdade estética. A poesia está livre; o seu formato também. O poema narrativo, em versos, e a forma do soneto convivem, sem atrito, com a dimensão extensiva da prosa poética e com a concisão formatada no poema curto, onde são audíveis os ecos da alegria e da irreverência de Oswald de Andrade.


Esta democracia estética evidencia o culto à forma e à estetização de um texto cuja tonalidade significante anuncia o permanente desejo de releitura, simulação, citação, intertexto, dentre outros procedimentos estéticos. Através desses procedimentos, é visível a porção amorosa e “vampiresca” de alguns dos nossos poetas que evocam e “vampirizam” assumidamente a tradição literária. Isso acontece, por exemplo, nas visíveis simulações poéticas de Ana Cristina Cesar (os ladrões de quem roubei versos de amor com que te cerco[1]) ou na rapidez com a qual Paulo Leminski, ao resgatar as metamorfoses da erótica do corpo, interroga e assume uma forma: Não somos os ossos de Ovídio? [2].


Esta “vampirização” move. Ela ratifica as relações entre a poesia e a memória, a poesia e suas relações com o arquivo de formas da tradição; seja essa a tradição clássica ou a tradição dos modernismos brasileiro e lusitano. O poeta contemporãneo “consulta” o arquivo de formas literárias herdadas da tradição, re-escrevendo a dimensão crítica já vislumbrada no poeta moderno nas suas relações com as linguagens da história. Nesta releitura ecoa uma multiplicidade de formas e linguagens, além de um tom imaginário onde o cotidiano tem voz. Essa releitura de linguagens históricas e estéticas se dá em sintonia com a lição de Ítalo Calvino, para quem o ato da escrita consiste em, dentre outras ações, retirar o peso da linguagem.


Longe vai o tempo no qual os poetas declaravam guerra às formas da tradição – como faziam algumas vanguardas do século XX – proclamando uma linguagem sem passado. Distante também estamos daqueles poetas “comprometidos” ou “engajados” que, na tentativa de dar voz ao povo e de acionar seu protesto, esqueciam, na maioria das vezes, a lição benjaminiana de que só existe engajamento politicamente correto quando a obra é esteticamente coerente [3]. Mas é bom lembrar: quando restrito apenas ao repertório cultural e às pesquisas lingüísticas, à utilização do domínio formal e à atitude crítica ou metalingüística, o poema pode resultar asséptico, frio. Parece carente de existência. Carência da própria existência que o criou?


A contemporaneidade sinaliza ser sua “letra” construída a partir das relações de alteridade, onde o diálogo entre o tempo e o espaço pesa. A inscrição desse olhar poético (uma proposta de visibilidade que possui na re-proposição da alteridade seu alvo), lê na “letra” contemporânea a possibilidade de construir a identidade celebrando a diferença. Com base nessas relações se produzem as formas, as linguagens, os discursos. Nessa problemática, a estrutura inter-subjetiva do sujeito contemporâneo invalida a maioria dos dogmas e procedimentos herdados do Humanismo e do moderno paradigma cartesiano que, ao isolar o corpo da mente, desdenhava o discurso sensorial.


Essa poética que não descarta a dimensão sensorial e credita o imaginário cotidiano ratifica a movência das formas e a “letra” alheia. Elege uma horizontalidade harmônica que acolhe a visão da superfície, dos detalhes em torno, e do que elas – as formas, as vozes da alteridade – engendram de possibilidades de leitura e escrita. Esse trânsito pela superfície nos possibilita adentrar o espaço literário com um pé na reflexão e um outro na modernidade dos fatos (a poesia está nos fatos, diz Oswald de Andrade; a reflexão também reside nos fatos, sugere Walter Benjamin, ao escrever que a construção da vida, no momento está muito mais no poder de fatos que de convicções [4]).


Esta poética que se constrói sob efeito reflexivos e factuais empreende uma leitura do texto literário como documento do imaginário [5], desenvolvendo conexões com a memória (o pretérito) e a informação (o presente). Essas relações entre a reflexão, os fatos, a memória e a imaginação refletem os novos paradigmas e os saberes produzidos, na pós-modernidade, pelas artes, culturas, ciências e filosofias – campos aos quais interessam cada vez mais as relações dialógicas e interdisciplinares; e não o privilégio de nenhuma arte, cultura ou disciplina em relação à outra. Se antes aspirou-se à criação de uma ciência única que daria conta da leitura de todos os signos, hoje sabemos que a multiplicidade dos saberes e das formas vai de encontro a lição de Roland Barthes (com todo o prazer que o texto barthesiano propõe), segundo a qual todas as ciências encontrar-se-iam disseminadas no monumento literário [6].


Após a cena estruturalista outros monumentos, outros olhares foram erigidos, atentos à tecnologia e seu arsenal virtual. Esses olhares não desdenham a amplitude dos meios de comunicação e seus reflexos nas produções artísticas e culturais, na construção do saber. O poeta deste início de milênio sabe que essas relações científicas e tecnológicas estão diretamente relacionadas à criação artística. Isso pode ser aferido, por exemplo, na forma como Armando Freitas Filho estetiza, em Duplo Cego, o teste às escuras produzido pela ciência médica, ou na seguinte afirmação de um autor que transita por várias formas, como Calvino [7]:


...se a literatura não basta para me assegurar que não estou apenas perseguindo sonhos, então busco na ciência alimento para minhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído...

Nesse trecho no qual sugere a proposição da leveza, Calvino sinaliza dois dados bastante importantes: a necessidade de a literatura dialogar com outras áreas do saber e a sugestão da ausência de peso como princípio para a construção textual. Esse diálogo de Calvino com a ciência é sincrônico com a leitura moderna e meio premonitória feita por Baudelaire, cuja senha nos chega através de Walter Benjamin [8]. Atento à ruptura dos paradigmas iniciada no século XIX e que abrangia várias áreas do conhecimento, o poeta de As flores do mal – influenciado por Poe (assumida influência de Calvino) – dá a senha. Diz Baudelaire:


Não está longe o tempo em que se entenderá que uma literatura que se recusa a progredir de mãos dadas com a ciência e com a filosofia é uma literatura assassina e suicida.

Se atentarmos para o aparato crítico e teórico que rege os meandros da arte, da cultura, da filosofia e da ciência contemporâneas, perceberemos que entre esses campos do saber, da criação e da informação iniciou, a partir do século XX, um perene intertexto. Através deste, percebemos que alguns desses saberes e algumas dessas formas artísticas e culturais, embora filiados ao projeto da modernidade, são bastante diferenciados daqueles produzidos principalmente a partir da década de 70 do século XX, quando muitos dos que atuavam nos territórios da arte e da cultura assoletravam as lições de desconstrução do Estruturalismo, e/ou se banhavam nas desbundantes águas da Contracultura.


A essa arte e a cultura que levam em conta a moderna herança intertextual, são acrescidas a produção de cópias e da fabricação de simulacros. Isso faz com que o poeta contemporâneo admita seguir condenado por um simulacro [9], lendo na cópia do modelo o ápice do exemplo [10]. Essas cópias e simulações, os pastiches e os intertextos transformam-se em múltiplos procedimentos estéticos num contexto mediado por um conhecimento virtual que também se efetua através das ações de simular, copiar, citar, reler, atualizar...


Nesse mesmo contexto constata-se a construção de um texto que, além de fortemente ligado ao corpo que o produz, chega, às vezes, a simulá-lo. Essa construção textual advém, em parte, da lição estruturalista de que não existe narrativa sem corpo, e da experiência autoral de que a escrita surge do próprio corpo. A letra não advém de nenhuma dimensão espiritual, como anuncia a escritura nietzscheana: Eu sempre escrevi com meu corpo, com toda minha vida: não conheço problemas puramente espirituais [11].


Ao romper com a tradição filosófica centrada na razão instrumental, Nietzsche questiona a supremacia de Dona Razão e critica a verdade como valor supremo. Propõe a revisão dos valores, elogia a aparência e o fim das dicotomias. Perdida a crença nos valores transcendentes e metafísicos que nortearam a visão do sujeito iluminista, o sujeito da era do virtual olha em sintonia com os acontecimentos, suas circunstâncias. Ele leva em consideração a leitura dos fatos e não mais as convicções individuais nem as noções de essências; sua performance parece às vezes contemplativa – à postura de uma nova ‘pietas’ para com os outros, homens e coisas [12], mas sugere também o desejo de deixar marcada nossa existência, de problematizar, contatar e causar atrito com os homens, a natureza, as coisas.



I I



Quando no pórtico deste milênio dizemos da poesia, não nos referimos apenas ao poema escrito, à noção de poesia como arte que recria o significado das palavras e revitaliza a língua, tornando-se muitas vezes porta-voz e patrimônio simbólico do seu povo (como fazem Fernando Pessoa e Guimarães Rosa com o português, Dante com o italiano e Pound com o inglês, por exemplo). Referimo-nos também à poesia inscrita no corpo, nos gestos cotidianos e nas formas estéticas e culturais que resumem e acionam nossas idéias, nossos sentimentos e desejos; a poesia presente no imaginário coletivo e individual de nossa cultura.


Nessa travessia, o poema lê e experiencia o mundo, como produção que potencializa a estetização existencial. Isso sugere a importância de lermos os signos e as formas, os ritmos e as linguagens que engendram a letra e a experiência do presente. De olho nos textos criados a partir da subjetividade contemporânea, atentamos para a inscrição de uma corporeidade presentificada, no intuito de dialogar com alguns desses signos e algumas dessas formas e linguagens do final do século XX e deste início de milênio, lendo o poema – seus efeitos de leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade –, como um ideograma de um mundo que busca... sua orientação não num ponto fixo, mas na rotação dos pontos e na mobilidade dos signos. [13] Esse olhar de Octavio Paz lembra muito a visão de mundo inscrita pela poética de Paulo Leminski. Se os signos e as formas artísticas e culturais – e a leitura e a reflexão delas emanadas – são experienciados como produtos sociais e contextuais, eles traduzem os ritmos sociais e a subjetividade de uma época.


Sintonizado com Marx e Benjamin [14] – para quem as mudanças de percepção comunitária (patrocinadas principalmente pelas artes visuais e pelo desenvolvimento tecnológico) determinam mutações nas formas produzidas pela sociedade –, Leminski nos ensina que, não apenas os gestos, as linguagens e as formas, mas até os sentimentos (criados a partir desses gestos, dessas formas e linguagens) são históricos [15].


Nesse sentido, o conjunto de formas e linguagens estéticas de uma determinada época, isso que alguns chamam de estilo, estética, podem sinalizar as metamorfoses do seu espaço, os tons do seu tempo. Pode por isso o poema – óptico objeto rítmico – auxiliar no exercício e/ou na criação de um ritmo, um movimento, uma movência, uma estratégia óptica. Através de suas formas e linguagens (onde a cota sonora é geralmente altíssima), o poema sugere gestos, cortes e pausas que anunciam até onde a respiração – leia-se: a experiência – alcança. Ou, como no poema de Claudia Roquette-Pinto, "até onde a respiração me leve" [16].


A partir dos espaços lidos, dos objetos tematizados e das linguagens construídas pelo autor, a forma do texto pode, por exemplo, ajudar a ritmar essa respiração e/ou delinear uma movência, uma construção óptica. O poeta como criador de ritmos, produtor de conexões. Isso é visível, por exemplo, no livro Os olhos do deserto – texto de um poeta múltiplo como Marco Lucchesi – onde o deserto é lido como personagem, cenário e forma para a construção da narrativa poética. Ouçamos o próprio poeta [17]:


Minha busca do deserto foi e tem sido eminentemente poética, que tangencia claramente questões outras como as de ordem teológica, lingüística e política. ...O deserto é uma fábrica de metáforas.

Lido pelo poeta como fábrica de metáforas, o deserto, a busca da escrita poética ostenta, na contemporaneidade, a presença de uma memória metonímica, fragmentada. Lucchesi sabe que a poesia salva porque recolhe fragmentos. Ele caminha por desertos, sertões e circula por múltiplas cidades para inscrever a nostalgia da beleza e a sede de infinito que o devoram. Em sua poética, o deserto é um signo recorrente onde um tom lírico-religioso perpassa por vezes a escritura (essa tonalidade é audível, por exemplo, nos “Cadernos de Viagem”: Leila, teus dias esperam incêndios e inundações...” [18]). Com miradas distintas, é através desse signo do deserto – o hábitat dos nômades; o deserto interior de cada poeta – que algumas poéticas deste milênio ganham forma, se cruzam e bifurcam.


Estetizado através de uma outra percepção, o deserto e suas formas estão presentificados também numa poética urbana como a de Armando Freitas Filho. Na letra de Cabeça de Homem (1991) um eu poético saído de uma cama sem alma abre a porta de um quarto que dá direto para o deserto [19]. Neste mesmo livro, é também no deserto que o poeta conclui a estetização de sua ancestralidade, como anuncia o denso poema “Pai” [20]: Louco tempo depois/ logo após as lágrimas/ começa o deserto. Em Cicero, também, esse signo ganha forma no deserto sem saudades, sem remorsos, só/ sem amarras, barco embriagado ao mar [21].


Seja através da inscrição das formas desérticas do Oriente, acionada por Lucchesi ou desses desertos urbanos estetizados por Armando ou Cicero, seja através da leitura dos cenários desérticos da América [22], empreendida por Baudrillard, esses textos sugerem o quanto de esquecimento, vazio e busca acionam a construção da memória contemporânea, seja ela individual ou coletiva. Nessas leituras o deserto é lido não apenas como paisagem, mas também como forma e crítica cultural. É no intuito de construir essa forma, essa crítica, que o poeta vivifica, nos cenários desérticos (e também nos espaços urbanos), uma solidão virtual e a direção multifária de seu pensamento [23].


Este pensar elege a tradição não apenas no sentido de reverência e culto, mas principalmente como possibilidade de releitura crítica, de recriação. Esse, um dos desafios do poeta desde o final do século XX e neste início de milênio: viver esta direção multitária, sem nenhuma bula literária, nenhuma bússola ou comando. De olho nos imaginários e nos milenares arquivos da arte e da cultura, que tipos de timbres e ópticas a percepção e a subjetividade contemporâneas conseguem apreender e/ou recriar a partir das linguagens verbais e imagéticas produzidas nestes cenários finisseculares?



I I I



O ritmo veloz das imagens pós-modernas parece possibilitar uma sintaxe através da qual as informações oriundas do imaginário e da reflexão não postulam uma leitura calcada apenas na noção de profundidade. Trata-se, portanto, de uma leitura que em vez de ressaltar a hermenêutica de uma profundidade escondida, insiste na política da superfície do texto, ou seja, da sua inserção real enquanto enunciado, na prática da linguagem [24]. As leituras da letra e dessa imagética contemporânea ressaltam, sobretudo, o que de superfície suas imagens ostentam, como anuncia o juramento estético de Marco Lucchesi [25]: Cultivo Jardins abstratos. Formas do silêncio. Mas não se preocupe. Juro pela superfície.

Essa, a lição poética inscrita por Lucchesi: apesar do mergulho, é salutar optarmos pela superfície, pelos planos, por uma certa horizontalidade harmônica. Essa opção pela superfície é também visível, dentre outras, nas poéticas de Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz; nas formas leves como o primeiro relê o vocabulário das formas míticas e filosóficas que habitam nosso imaginário, e numa espécie de reflexão óptica que engendra a letra do segundo. Há um verso no poema “Falar e Dizer” [26], do livro Guardar, onde Cicero sugere esse diálogo entre o arquivo de formas da tradição e os planos da superfície que engendram a letra contemporânea: Herdeiro das superfícies e das profundezas então/ Desponta o sol.

A tonalidade imaginária sugerida por essa poética, em alguns trechos, é tradutora de um olhar que não desdenha as intervenções do acaso (Augusto de Campos) na “letra” ensaística ou poética, e crê na potência do presente e do devir. Isso sinaliza a crença de que se o tempo é outro, conseqüentemente as concepções do espaço, da visibilidade, da tonalidade e das formas contemporâneas também são outras. Ao fazermos um rápido paralelo comparativo entre o espaço urbano da modernidade e o que caracteriza um topos considerado contemporâneo, percebemos claramente suas diferenças.


Se na era moderna Benjamin elegia o flâneur (e seu olhar rápido, efêmero) como personagem representativo das metrópoles, na pós-modernidade podemos eleger o detetive – sugerido por Ricardo Piglia em seu livro O laboratório do escritor, e “encenado” por alguns estudiosos da lógica [27] -- como personagem que, ao perambular pelo espaço, transforma-se em sujeito-signo da rapidez, da velocidade e das fachadas descartáveis da contemporaneidade. Esse detetive e sua imagem podem também ser associados ao olhar estético de Armando Freitas Filho, que se refere à importância do computador para a sua escrita e à ação de escrever sem deixar marcas.


Essa imagem do detetive parece refletir uma outra postura crítica. Sinaliza outras formas de ouvir e olhar. Trata-se, na pós-modernidade, de um olhar e de uma voz que renunciam ao aspecto moral da experiência (Ana C.) e apostam mais nos aspectos estéticos experimentais. Ou seja: apostam no artifício da cena, na encenação, na performance. Na releitura benjaminiana acionada por Beatriz Resende, não é mais possível ser um flâneur. Você não sai mais ‘dando mole’ pela cidade grande [28].

Sabemos que, desde a leitura da modernidade feita por Walter Benjamin, os procedimentos múltiplos da reprodutibilidade técnica passaram a gerar miríades de possibilidades de leituras em relação ao original. O poeta contemporâneo sabe que avançar uma página é retornar ao princípio [29]. Assim sendo, cópias decalcam de cópias, gestos são repetitivos, exercícios de simulação são efetuados no sentido de propor a construção de outras formas e a leitura de múltiplos sentidos.


Esses exercícios de simulação podem ser comparados, por exemplo, nas formas como Antonio Cicero e Paulo Leminski atualizam o nosso repertório imaginário, através dos ícones e dos textos da mitologia grega, como Perseu e Prometeu. As diferenças começam entre os gêneros escolhidos por ambos para a estetização do referido imaginário: enquanto Cicero opta pela inscrição de uma letra cuja forma o aproxima, em alguns poemas, do estilo clássico, Leminski opta por uma prosa poética, rompendo definitivamente com a noção de gênero literário.


A crise virou substância, diz Leminski. As imagens e linguagens poéticas são colhidas nestas ruínas circulares, nos arquivos da tradição. Sem dramas. Sem a nostalgia do original. Herdeiro das desconstruções, da solidez que desmancha no ar, das movências, suas descontinuidades e do mal-estar gerado pela crise dos paradigmas da modernidade, o poeta contemporâneo busca fazer dessa herança matéria para sua criação. O poeta contemporâneo sabe que escreve para ser reescrito [30]. Agora saem de cena a postura down ou o comportamento blasé muitas vezes cultuados por alguns poetas das décadas de 70/80. Apesar da morte nestes cenários em ruínas onde a poesia se faz, não estamos num tempo favorável às vitimas. Daí o desejo de construir, vigorar.


Algumas poéticas retomam esse rigor da forma com muita fome. As vezes essa retomada resulta na produção de um poema que estetiza no papel uma escritura desvinculada da experiência, distanciada da pele. Para alguns críticos e/ou leitores, esse distanciamento entre a pele e o papel poderia sugerir, em alguns casos, um divórcio entre poesia e vida. Mas esse divórcio foi sinalizado apenas num certo momento. Referindo-se ao contexto poético de meados dos anos 90, o poeta Armando Freitas Filho dizia haver ali um certo ‘estilo bouquet’, meio faisander, com flores falsas, de permeio [31]. Ao voltar-se para o novo milênio, é outro o olhar do poeta de Fio Terra:

... agora, os punhos de renda que teimavam em aparecer por baixo das mangas dos casacos populares se esgarçaram de vez, por impróprios. Pode-se obter finesse com outros meios; afinal, talvez com alguma fissura (como já dizia Ledussa)...

É saudável o esgarçamento desses punhos de renda. Melhor ainda se houver, no poema, fissura e forma. Depois do desprezo de grande parte dos poetas alternativos ou marginais pela construção do poema, entende-se como necessário e produtivo esse rigor que predomina na maioria dos textos contemporâneos. Mas isso se constitui num dos ângulos do caleidoscópio. Apesar de contextual e convincente, através dele – o rigor – podemos problematizar o efeito inverso de sua inscrição.


Não seria interessante, por exemplo, que futuras gerações venham a insinuar que – depois do formalismo e do pragmatismo do final do século XX e/ou deste início de milênio – seja necessário à poesia aliar-se novamente à vida; a poesia retornar o seu diálogo com a existência. De olho nesta problemática, o poeta Waly Salomão – para quem Leminski realizava a contribuição milionária de todos os erros da raça de que falava Oswald – pensa que cada poema de per se constitui uma poética. Com base nisso, o parceiro de Antonio Cicero expõe sua atual receita para o produto que vem elaborando desde o início dos anos 70. Diz o autor de Algaravia [32]:

O que surge com a marca evidente de derivação vivencial deve passar pelo crisol do lido para que não permaneça um produto naturalista. E a operação inversa deve ser buscada para o que surgir precipitado por leitura: deve passar por uma imersão nos líquidos amnióticos da vivência. Por estas brechas elaboro minha poesia hoje: nem naturalismo vitalista, nem intelectualismo excludente da experimentalidade. Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre o coloquial e o pensado.


Esse é o brilhante desafio de Waly para seus contemporâneos: a possibilidade de construir formas literárias com base numa cota de investimento afetivo e/ou numa estética da existência que inclui dados reflexivos e imaginários, sem desdenhar as linguagens da história. Esta multiplicidade de formas e timbres do atual cenário poético aponta para o fato de que depois do enxugamento radical da sintaxe e das tentativas de morte do verso (executados principalmente pelo Concretismo e pelo Poema Processo), e após os excessivos experimentos lítero-existenciais dos marginais, os poetas contemporâneos retornaram mais vigorosos (afoitos e rigorosos) para a re-construção do verso, do poema.


BIBLIOGRAFIA

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Nonato Gurgel é doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Possui Mestrado em Estudos da Linguagem, Especialização em Literatura Brasileira e Graduação em Letras pela UFRN. É professor substituto de Literatura Brasileira da UFRJ e do Instituto de Humanidades da UNIGRANRIO.





[1] CESAR, Ana C. Inéditos e Dispersos. 1985. p. 170.
[2] LEMINSKI, Paulo. Catatau. 1989. p. 63.
[3] HOLLANDA, Heloísa B. de. Impressões de Viagem. 1980. p. 27.
[4] BENAJMIN, Walter. Rua de mão única. 1995. p. 11.
[5] CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. 1997. p. 96.
[6] BARTHES, Roland. Lição. 1988. p. 19.
[7] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. 2001. p. 20.
[8] BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. 1994. p. 40.
[9] LUCCHESI, Marco. Os olhos do deserto. 2000. p. 129.
[10] LEMINSKI, Paulo. Op. Cit.1989. p. 77.
[11] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 1983.
[12] MONTALE, Eugenio. Poesias. 1997. p. 9.
[13] PAZ, Octavio. Convergências. 1991. p. 97.
[14] BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica. Arte e Política. 1993. p. 169.
[15] LEMINSKI, Paulo. Vida. 1998. p. 19.
[16] ROQUETTE-PINTO, Claudia. Corola. 2000. p. 11.

[18] LUCCHESI, Marco. Op. Cit. 2000. p. 30.
[19] FREITAS FILHO, Armando. Cabeça de Homem. 1991. p. 69.
[20] FREITAS FILHO, Armando. Op. Cit. 1991. p. 49.
[21] CICERO, Antonio. Guardar. 1996. p. 51.
[22] Cf. BAUDRILLARD, Jean. América. 1986. p. 106.
[23] LUCCHESI, Marco. Op. Cit. 2000. p. 84.
[24] SCHOLLAMMER, Karl E. Revista Ipotesi. 2002. p. 60.
[25] LUCCHESI, Marco. Op. Cit. 2000. p. 107.
[26] CICERO, Antonio. Op. Cit. 1996. p. 33.
[27] COPI, Irving M. Introdução à Lógica. 1978. p. 391.
[28] RESENDE, Beatriz. Jornal do Brasil. 2002. p. 3.
[29] CARPINEJAR, Fabrício. Biografia de uma árvore. 2002. p. 81.
[30] CARPINEJAR, Fabrício. Op. Cit. 2002. p. 19.
[31] FREITAS FILHO, Armando. Revista Cult. 2000. p. 10.
[32] SALOMÃO, Waly. Revista Poesia Sempre. 2000. p. 361.