sábado, 30 de maio de 2009

O Evangelho dos Fatos













Com este título repetido ou recriado, esta resenha foi publicada em:

- Suplemento Literário 1275, Belo Horizonte, 2004
- Jornal da UBE - O Escritor, São Paulo, 2004
- Revista Laralana nº 10, Salvador, 2004.
- Forum Virtual O que é Literatura e Teatro, Rio de Janeiro, 2004
- Bestiário. Revista de Contos. Ano 1, número 9. Porto Alegre, 01/11/2004
(
http://www.bestiario.com.br/)



Sobre Trinca dos Traídos

Polifonia e visibilidade engendram este “tratado de traições”. Os sons do broto renascido, as imagens do escritor que escava, a letra do homem sondado pelo verbo da rua, do velho que dialoga com a dor ou da professora que trama traduzem os ritmos e as cenas de múltiplos espaços onde a subjetividade se constrói: um casario antigo, o sinal no asfalto, o quarto da casa em reforma... Nesses espaços alguns narram a partir de um centro fixo. Outros são narradores visivelmente em trânsito ou vozes narrantes procurando - haja gerúndio para tanto hoje. Existem aqueles que sequer se anunciam, de renascidos que são, e por isso podem “tanger delicadamente a fala”. Esses, os narradores de Trinca dos Traídos e sua visibilidade acesa para a escritura dos fatos.

Esse visível apego aos fatos – “O fel dos fatos” –, essa escritura das coisas miúdas e cotidianas, possibilita a inscrição de um jogo narrativo onde o corpo rouba a cena. Um corpo (seus “mananciais internos, insuspeitos”) que dá as cartas na trilha da diferença - “oito de copas”, “oito de ouros” e “oito de espadas”. Em torno desses três naipes se organizam os 24 contos dessa Trinca..., cuja segunda parte - “Oito de Ouros” - inicia com uma epígrafe do bruxo do Cosme Velho, onde se lê: "os fatos são tudo”. Esse diálogo entre os fatos e as múltiplas subjetividades dos narradores de Trinca dos Traídos é audível logo na primeira linha - “Qual a importância desse fato agora?” - do primeiro conto do livro, e faz-se presente em vários outros textos, como no contemporâneo “Apenas voltar”, onde a voz que narra tem na memória um “oceano repleto de chamados”.
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Sabemos que, ao contrário do que acontece na lírica, o individual não condiz muito bem com a forma narrativa. A narrativa possui sintonia com o social produzido pela linguagem na interação com o outro; daí porque a ação de narrar solicita do autor uma conexão muito mais efetiva com a concretude dos fatos. Essa conexão entre a escritura e os fatos tem sido rentável em vários gêneros. Não é apenas no texto de Machado de Assis que "os fatos são tudo”. Walter Benjamin inicia Rua de mão única “narrando” o poder dos fatos sobre as convicções; Oswald de Andrade inscreve, no Manifesto Pau-Brasil, a poesia que existe nos fatos. Nesse roteiro que estetiza os fatos em formas e contextos os mais diversos, inscreve-se este texto de Iacyr Anderson Freitas. Seu vigor narrativo é visível tanto nos jogos que se estabelecem entre os três naipes e os núcleos temáticos de cada conto, como na seleção das epígrafes e na utilização de procedimentos estéticos herdados do Modernismo, como a parceria do autor com o leitor e seu repertório.
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Exemplar desse jogo que conta com a cumplicidade do leitor e sua óptica é o conto “A reforma”. Esse texto parece um vídeo. No quarto no qual transcorre a trama, um neutro narrador sugere, em 3ª pessoa, conexões entre a traição, a mudança espacial e a transformação do discurso. A concisão desse conto, que aciona a visibilidade e a oralidade do leitor com exatidão, é expressa na utilização do discurso sintético dos ditos populares - síntese de revelação e luz - e nas epifanias que eles encerram, esses ditos. Isso porque, como ensina Walter Benjamin em “O Narrador”, o homem contemporâneo só cultiva o que pode ser abreviado. Formas breves como esse conto onde, como nos bons contos, o mais importante não se diz.

Autor que transita entre gêneros díspares aparentando fidelidade a cada forma (seja essa forma o ensaio, a poesia ou o conto), Iacyr Anderson não se inscreve naquela que alguns autores modernos costumam chamar de “linha” da ruptura de gêneros. Em sua prosa não há experimentalismos estéticos ou metalingüísticos. Sua narrativa apresenta, ao contrário, certa “roupagem clássica”, como lê Luiz Ruffato nas orelhas. Independente dessas “linhas”, é visível nesta escritura a poesia e o exercício reflexivo que formatam seus melhores contos, como acontece em mines roteiros existenciais tipo “No dorso dos domingos”, quando o narrador ouve do pai um “rosário de sílabas sem brilho” e absorve “uma tristeza estrangeira”.
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Outros cenários e roteiros são trilhados no referido “Apenas voltar”, onde um gerúndio final - Procurando - anuncia o que brota depois da poda. Trinca dos Traídos estetiza a narrativa das “pequenas traições” diárias nos cenários que nos consomem e nos quais nos nutrimos. Por isso estes narradores em trânsito e seus evangelhos dos fatos. Por isso a perene travessia de verbos que sondam com delicadeza exata a figura do traído que trai - sua excelência, o leitor. São estas narrativas que regem a falta e sintonizam o duplo. Narrativas do esquecimento - categoria que, como nas “Escavações de um escritor aposentado”, vem sendo cada vez mais acionada pelo narrador contemporâneo.