sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Sertão, deserto – travessias


Gilberto Freyre diz, no livro póstumo De Menino a Homem (2010), que as palavras sertão e deserto possuem extrema relação. Tratando da origem da palavra, Freyre diz que “Sertão era aumentativo de deserto” . Essa assertiva remete às figurações de sertanejos que viviam em lugares distantes. Viviam longe da civilização. Pessoas que moravam no ermo. Pessoas “do sertão”, “de sertão”, daí o deserto ampliado – Desertão.

O sertão está em toda parte – anuncia Riobaldo em Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. O sertão é o mundo. No sertão do serrado brasileiro brota uma das anedotas políticas mais ricas em torno do presidente JK. Conta-se que Juscelino convidou as imprensas nacional e estrangeira para conhecerem o solo no qual seria erigida a futura capital do Brasil. Um mar do jornalistas e fotógrafos adentrou o serrado, atendendo ao convite do então presidente. Os profissionais da mídia cercavam Sua Excelência, quando uma jornalista francesa indagou a ele se não era um absurdo construir uma cidade em pleno deserto. Ao que Juscelino respondeu: “Absurdo, minha jovem, é o deserto”.

O deserto é absurdo? O que fica claro nessa assertiva de JK é a necessidade que temos, como sujeitos modernos em constantes deslocamentos, de enfrentarmos o deserto e suas fronteiras. Fronteiras que também se deslocam. Fica claro nessa assertiva presidencial, o desejo de “amar” o “deserto e seus temores” .
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Na anedota de JK, fica nítida a importância de lermos as figurações do deserto – os seus vazios, as suas faltas, as suas senhas e areias de superfícies. Os sinais do deserto. Dobras. Curvas e retas. O deserto como origem e fim da travessia. O deserto, suas repetições. O deserto mais o cansaço da terra. O deserto e os homens. O nômade e sua travessia infinda pelo deserto e seus silêncios. “O silêncio do deserto também é visual”, diz Baudrillard. Sua leitura atenta para os planos silenciosos do deserto onde brotam a palavra e a imagem.

Espaço plano de onde brotam imaginação e pensamento em travessias infindas, labirínticas, o deserto deseja ser lido. Lido como crítica e metáfora da cultura contemporânea. Essa leitura crítica e metafórica permite entendermos a nossa condição finita e vazia num mundo no qual as idéias de superfícies e deslocamento deletam os roteiros da profundidade e da fundamentação.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Arquivo de Formas da Tradição



Esteticamente rentáveis, o ciúme e a traição são “personagens” de inúmeros tomos da literatura universal. Independente de classe ou contexto ideológico, esses sentimentos arranham feito farpa e produzem narrativas de finais infelizes que são uma beleza.

Primeiro romance do poeta, professor e ensaísta Marco Lucchesi, O Dom do Crime (Record, 2010) põe em cena um narrador que possui nas “estações do ciúme” e no crime as suas armas. Há no Posfácio a “história de uma traição”. O arsenal do autor é ampliado pela presença do escritor Machado de Assis e do Rio de Janeiro transformados em “personagens”. Esse é um dos procedimentos mais produtivos e contemporâneos de Marco como romancista. Ele trata da mesma forma os fatos e discursos do escritor Machado e Carolina, sua esposa, ou as falas fictícias de Bentinho e Capitu, os personagens de Dom Casmurro (“Brás Cubas fez discípulos”). A esse quarteto, Marco acrescenta um casal gerador do ciúme e do crime: José Mariano e Helena Augusta.

Para re-construir as linguagens desses seis personagens, Marco lê o espaço da Capital Federal e suas águas (“A História terá olhos marítimos”), e empreende um dialogismo oblíquo e nada dissimulado em torno da bio-biografia do Bruxo do Cosme Velho. Essas releituras potencializam a trama do texto, multiplicando-se num intertexto com vários personagens literários e inúmeras figuras históricas da arte e da cultura produzidas no Brasil no início do século XX.

Formas e Linguagens da Cultura Brasileira

Ler O Dom... de Marco é dialogar com o que a nossa historiografia inscreveu de mais produtivo. Ecos, falas e citações de poetas, narradores e personagens da nossa tradição literária e cultural sedimentam a polifonia do seu romance. Nele ouvimos Dom Pedro, Silvio Romero, Monte Alverne, José de Alencar, Visconde de Tauney, Laurindo Rabelo, Joaquim Manoel de Macedo, o Marques de Maricá, Aluísio de Azevedo, Francisco Otaviano e, dentre outros, a escritora potiguar Nisia Floresta.

No Brasil, este contexto do final do século XIX e início do século XX é bastante produtivo para quem cria. Principalmente para quem pesquisa e escreve. A jornalista Anna Lee lançou, em 2006, O Sorriso da Sociedade, narrando as intrigas e os crimes do universo estético da nossa belle époque tropical. A idéia da autora é maravilhosa; o seu repertório é bom. Mas faz falta no seu texto um melhor encadeamento dos fatos. Sabemos que, na narrativa, quem dá o tom é a voz que narra. Falta nO Sorriso... um trabalho de linguagem em torno do tom romanesco.

Relendo semelhante contexto histórico e estético, e dialogando com alguns personagens presentes no livro de Anna, Marco ostenta a sua reconhecida erudição e produz uma tonalidade contemporânea, ao encadear os fatos e as linguagens daquele contexto do 1900 às ações da sua narrativa. Através dessa tonalidade, o autor inscreve, por meio de uma depurada poética da leitura, as linguagens da tradição.

Como o Conselheiro Aires que transita pelos dois ultimos romances de Machado – Esaú e Jacó e Memorial de Aires –, o narrador de O Dom do Crime parece não ter muita vocação para o casamento, adorar visitas e viver “à sombra das estantes”. Cúmplice com o leitor, ele dá a senha do romance, referindo-se às “obras anfíbias... entre a ficção e a realidade”. Neste diálogo que tece entre narrativa e história, a voz romanesca de Marco Lucchesi inscreve-se ao reler o Arquivo de Formas da nossa Tradição literária. Tomara que ele já esteja pensando no seu próximo romance.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sobre “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” II – o leitor



No poema “Um leitor”, do livro Elogio da Sombra, Borges inscreve a importância da leitura em sua vida logo nos dois primeiros versos: “Que outros se jactem das páginas que escreveram; / a mim me orgulham as que tenho lido.” Para Borges, quem assume relevância fundamental para a escritura, para a inscrição da literatura, é a ação da leitura.

O leitor é o grande personagem borgiano. O outro, o leitor – sua releitura, sua tradução. Nesta poética, o leitor passa a ser um doador de sentidos; um produtor de leituras para a forma que é o texto. São constantes as alusões feitas ao leitor na narrativa de Tlon... Mesmo a questão do tempo, associada à memória, ressalta a participação do leitor no processo literário, e descarta qualquer possibilidade referencial. Isso denota a narrativa: “Aqui dou término a parte pessoal do meu relato. O resto está na memória... de todos os meus leitores”.

Neste conto de Ficções, Borges esboça um planeta atemporal e alguns dos seus livros imaginários। Um planeta com leis totalmente diferentes das leis que regem o planeta terra, seja em relação aos sistemas de língua ou aos tipos de linguagens. No idioma de Tlon... predominam verbos pessoais, restando para os substantivos um valor apenas metafórico. Múltiplas linguagens de diferentes tons perpassam o cotidiano de Tlon..., como a didática das enciclopédias, as normas gramaticais, os sinais matemáticos, as citações literárias, as cartilhas filosóficas...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Esaú e Jacó: o outro, o leitor


Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo livro de Machado de Assis. Uma das primeiras coisas que chama sutilmente a atenção neste romance, é que se trata de um texto sobre a diferença. Uma prosa sobre a discórdia. Sobre temperamentos opostos às idéias políticas – republicanos, monarquistas. Uma narrativa sobre a ternura e o tesão, a glória e a agrura. Uma ficção do “desacordo no acordo”, “entre um ato e outro”...

Esaú e Jacó é um texto sobre o outro. Um texto sobre o leitor. Com ele, Machado dialoga o tempo todo. Nesse dialogismo, o autor pede que o leitor volte a página; ratifica ser melhor ler com atenção. Faz distinção entre homens e mulheres como leitores, e poupa o leitor apressado de alguns porquês. Esse diálogo com quem lê atravessa toda a narrativa. Nela predomina o intertexto com autores com os quais Machado dialoga ao longo de sua produção estética, como Homero, Dante, Cervantes e a Bíblia.

Como reza a “Advertência” do autor, Esaú e Jacó são os seis cadernos escritos pelo Conselheiro Aires com tinta encarnada. Leitor que amava a releitura, homem chegado às Letras clássicas, Aires escrevia bilhetes e cartas. Cordato, esse diplomata não era chegado a paixões nem casamentos. “Era homem de todos os climas” (Cap. XXXII). Tinha o feitio do solteirão que elege a solidão a ser atravessada a sós...

O sétimo caderno deixado pelo diplomata transformou-se no Memorial de Aires – último livro de Machado de Assis, publicado em 1908, ano de sua morte. Ambos os livros possuem como cenário o Rio de Janeiro – iluminado por lampiões de rua – que desde meados do século XIX até início do século XX constitui-se no espaço narrativo de Machado que nasce em 1839 no Rio.

É no bairro carioca do Catete onde mora Aires – o ex-ministro aposentado que oferece almoços (cheios de salmão e ofícios), para os gêmeos Pedro e Paulo e a bela Flora. É também no Catete onde termina o Conselheiro “apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.” Alguém vai morrer em Esaú e Jacó; e não é Aires. Ele e o seu memorial estarão vivíssimos no próximo romance de Machado.

A forma narrativa e o leitor ruminante

Com capítulos curtos de belos e inusitados títulos, o romance é formado de micro-narrativas, pequenos contos, canções sertanejas, quadrinha espanhola, ditos populares relidos e personagens cujos olhos trazem a ironia acesa nas retinas. Ironia e humor. Há bastante humor em Esaú e Jacó. Neste livro, o autor elucida parte do seu processo narrativo, através de um exercício metalingüístico que diz: “... porque há estados da alma em que a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo.”

Acerca da leitura crítica, Machado dialoga com o alemão Schlegel, de Conversa sobre a poesia e Outros fragmentos que diz: “um crítico é um leitor que rumina। Ele deve, portanto, ter mais de um estômago". No diálogo que aciona com esse autor romântico alemão, o romancista que rompeu com a linearidade da nossa narrativa escreve: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade...”

sábado, 13 de novembro de 2010

Sobre “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” I


A leitura da tradição nos mostra que as relações entre o tempo e o espaço, a leitura do topos, o foco narrativo, sempre despertaram muito a atenção do leitor. Essas leituras e relações sugerem que algumas obras literárias não são orientadas por um tempo linear, sucessivo, nem delimitam o espaço de sua inscrição a partir de dados geograficamente definidos.

A escrita dessas obras caracteriza-se por, dentre outros, dois procedimentos: a atenção para um tempo sincrônico – onde diferentes eras dialogam – e a leitura de imagens que remetem aos espaços mentais, virtuais. Estou pensando no tempo e nas imagens criados por autores como Cervantes, Camões, Lewis Carrol, Borges... Eles criaram alguns personagens e alguns espaços como grutas, ilhas, países e planetas que lecionam – para leitores de carne e osso – os seus cenários reais.

Cervantes – a quem Borges imitava quando começou a escrever – criou a gruta de Monterinos para as visitas de Dom Quixote. A Ilha dos Amores – espaço onde Cupido leciona amor – foi criada por Camões em sua odisséia sobre os portugueses, Os Lusíadas. Lewis Carrol construiu o País das Maravilhas que é visitado e relido por leitores de diferentes eras e gerações...

Nestes espaços-textos, as noções de tempo sucessório não existem. O que conta é a capacidade de inventar a partir da sincronia. Conta o desejo de tecer relações, criar formas do material imaginário. Poder negar o tempo linear e o seu direcionamento histórico. Desdenhar o referente. Rasurar a identidade estática individual. Desconfiar da existência de um “sentido racional para o universo” (Monegal) ... Tudo isso me faz pensar num planeta inscrito por Borges em Ficções, cujo nome é Tlon...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Bella



Morre Bella Josef. A notícia chega através de uma aluna minha na UFRRJ, cujo seminário sobre Borges motivou o seu grupo a marcar uma entrevista com a autora de História da Literatura Hispano-americana.

A morte de Bella deixa mais pobre o grupo de alunas que a entrevistariam neste novembro. A morte de Bella deixa mais pobre o meu curso cuja bibliografia inscreve dois dos seus títulos: Diálogos Oblíquos e Romance hispano-americano. Sem Bella, fica mais pobre toda uma geração que ela formou em torno da língua espanhola e da literatura latino-americana – de Borges e Sábato a Cesar Aira. Bella leu e dialogou com seus labirintos, fantasmas, abandonos...

Quando cursei doutorado na UFRJ, fui aluno de Bella Josef num curso sobre Ficção Hispano-americana. Com ela li Benjamin e Cortázar. Escrevi sobre utopia e realidade no espaço urbano, tendo o livro Rayuela como objeto de leitura. Aprendi que, neste romance de Cortázar, os deslocamentos do sujeito, seus movimentos utópicos pressupõem a crença numa espécie de ideal socialmente desejável que possui com o imaginário uma forte relação. Aprendi também que este ideal vem atrelado ao anseio de rupturas; que ele é contrário aos petrificados modelos existenciais fabricados principalmente pela norma burguesa.

A leitura de Rayuela sugere a produção de outras subjetividades através da construção de diferentes imagens e linguagens. Bella lia de forma arguta essas linguagens. Ela sabia que o romancista preenche “os silêncios da história”.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Uma dose de João Antonio




Com produtivo trânsito entre os universos da literatura e do jornalismo, João Antonio assumia ser o tipo de escritor atraído pela cultura popular e que preferia escrever sobre coisas experimentadas, coisas vividas na carne. Neste sentido, vários dos seus personagens remetem ao exemplo do narrador clássico. O narrador clássico é aquele calcado na oralidade, fincado na fala cotidiana. Ao narrar, ele recorre ao seu “acervo” de experiências próprias e alheias, a fim de inscrever a sua aprendizagem, a norma de vida que deseja repassar, como nos ensina a lição do Walter Benjamin.

Essa recorrência a uma narrativa que testemunha a experiência de vida e da memória, como no texto “Corpo-a-corpo com a vida”, possui uma profícua linhagem em nossa literatura. A essa linhagem filiam-se autores da maior importância como Graciliano Ramos e Lima Barreto. Ambos são lidos como parâmetros estéticos para a abordagem temática do cotidiano das camadas populares e das linguagens produzidas nas margens da sociedade brasileira. Assim como João, estes dois autores não enfeitam. Eles detestam a gordura literária; leia-se: eles deletam a grandiloqüência.

Sem cânone nem leitor

O próprio João Antonio considerava Lima Barreto o “maior romancista” da chamada “República Velha”, sendo Afonso Henriques de Lima Barreto o primeiro nome que aparece na dedicatória de Malagueta, Perus e Bacanaço. Por esse motivo, curto a leitura de Antônio Arnoni Prado ao reconhecer a filiação tonal da narrativa de João Antônio à escrita social de Lima Barreto; isso se pensarmos em questões como ética, forma social e estética.

Essas questões podem ser aferidas na leitura dos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), sucesso imediato de crítica que outorgou ao autor dois prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos). Nas relações traçadas entre as ações dos personagens de João Antonio e suas falas, o texto e o contexto dialogam de forma determinante para a produção das linguagens que o autor constrói. Essa construção leva em conta a oralidade da tribo da qual faz parte o autor e a visibilidade cortante que perpassa a retina do seu cotidiano concreto e carnal de sinucas, tampas, Cafua, fome, galinha, barrigas, lutas...

Apenas um seleto grupo de leitores conhece a obra de João Antonio. O autor de Malhação do Judas Carioca é lido por poucos e importantes nomes da crítica literária. Sua obra é ainda pouco estudada no universo acadêmico onde merece, sem dúvida, maior divulgação. É urgente a leitura deste autor não inscrito no cânone nacional. Principalmente para os alunos dos cursos de Letras.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

“As ruínas circulares” IV – o duplo


Assim como o sonho e o eterno retorno, o tema do duplo é também um dos procedimentos estéticos mais recorrentes nos enunciados fantásticos. Borges faz uso desse tema em toda a sua poética. Essa consciência do duplo faz-se presente no conto “As ruínas circulares”.

Neste conto do volume Ficções, o sonhador vê a cada sonho a construção do outro a que se propõe sonhar. Diz o narrador: “Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e ângulos”. Como sabemos, no final da narrativa o sonhador compreende “que ele também era uma aparência que outro o estava sonhando”. Era, portanto, o duplo de outro atemporal e anterior a ele.

Tamanha consciência do outro, possibilitou a Borges o exercício de vários textos relacionados à temática do duplo. Dentre essas narrativas destacam-se “Borges e eu”, “A Outra Morte” e “Sur” como textos que nos quais acontece essa representação do duplo. As semelhanças físicas, os processos telepáticos e a possibilidade de desdobramento do eu destacam-se como formas visíveis dessa representação.

Eu é um outro, diz a lição de Rimbaud। Essa possibilidade de um eu desdobrar-se em outro é a forma utilizada pelo autor de “As ruínas circulares”. Como vimos, o homem vindo do sul teria que sonhar um outro e “impô-lo à realidade”. Ele compartilha essa empresa com o Deus Fogo e sonha um homem “pensado entranha por entranha”.

domingo, 10 de outubro de 2010

"“As Ruínas Circulares” III – o sonho


“As Ruínas Circulares” é um conto do gênero fantástico, cuja narrativa é formatada em torno de três temas: o sonho, o duplo e o eterno retorno. Desses temas, o sonho é, sem dúvida, o mais freqüente neste conto que é uma usina onírica. Há nele ma profusão de sonhos caóticos, amorosos, premeditados... Um homem sonha outro homem: “Era um Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado.”

A temática do sonho perpassa toda a narrativa de Borges – um sonhador que dizia sonhar todas as noites. Ele assumia retirar dos sonhos alguns argumentos para os seus contos, e publicou em 1976 o Livro dos Sonhos. Os sonhos são textos atemporais lidos por Borges como um gênero antigo.

Segundo Freud, o sonho dá acesso ao inconsciente. A matéria prima de que se constroem os sonhos são os desejos inconscientes, embora os estímulos sensoriais também influam na tessitura dos sonhos. No conto, o homem sonhado desperta por fim: “Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.”

sábado, 9 de outubro de 2010

Sobre “As Ruínas Circulares” II


O círculo e o fogo. Prestem atenção neles dois. Na narrativa de “As Ruínas Circulares”, esses dois signos destacam-se como representativos do enunciado criado por Borges. O círculo e o fogo. Alusões a esses signos são freqüentes, como demonstra o recorte vocabular desse conto lido como texto representativo do gênero fantástico.

Em torno do círculo e sua forma, selecionamos o seguinte recorte: recinto circular, o sol, cântaro, anfiteatro circular, amoedar o vento, disco da lua... Já o signo “fogo” inscreve e acende, dentre outros, as expressões seguintes: cor do fogo, incêndios antigos, deuses incendiários, templo incendiado, o próprio fogo, culto do fogo...

Segundo o Dicionário de Símbolos, o círculo é o signo da Unidade de princípio, e também do céu. Remete, portanto, a coisas distantes. O círculo diz das abstrações e suas sangrias. Ratifica buscas infindas. Já o fogo, remete a libertação. Segundo o mesmo dicionário, algumas raças entram no fogo a fim de libertar-se do condicionamento humano. Com base nesta leitura, inferimos que o fogo pode queimar o clichê do corpo petrificado. Corpo de gesto rígido, autoritário. Engessado pelo capitalismo social que nos consome nas paradas do consumo e da repetição.

Este fogo libertador das ruínas está presente na poética do fogo de Bachelard: “antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem.” Este mesmo homem – mítico, sonhador, esanguentado – que no conto de Borges sonha e caminha “contra as línguas do fogo”.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sobre “As Ruínas Circulares” I



Alguém já disse que o escritor argentino Jorge Luís Borges teve em si próprio o seu grande personagem. Segundo o poeta Haroldo de Campos, Borges era uma metáfora da literatura; confundia-se c0m a própria obra. No dizer de vários críticos, o universo borgiano é concebido como um livro, uma biblioteca. A formatação desse universo leva em conta a estética do sonho e os meandros da imaginação, em sintonia com as estruturas do mito e a releitura da tradição.

Publicado em 1944 no volume Ficções, o conto “As Ruínas Circulares” possui elementos e procedimentos que o caracterizam como um texto fantástico. No prólogo do livro, o autor avisa: “Em As Ruínas Circulares tudo é irreal”.

Esse “irreal” é estetizado através de três temas: o sonho, o duplo e o eterno retorno. Os dois primeiros temas, além de concernentes à literatura de Borges, estão diretamente relacionados com o universo da literatura fantástica. Como acontece com o texto fantástico, a narrativa deste conto rompe com a ordem cotidiana, ao projetar o objetivo de sonhar um coração que se lê simulacro.

O objetivo de sonhar um homem

O homem taciturno e ensanguentado, vindo do sul, arrastou-se até ao recinto circular – um templo incendiado. Chegando ali sentiu que as feridas haviam cicatrizado e que a sua “imediata obrigação era o sonho.”As tarefas do seu corpo seriam dormir e sonhar. Seu objetivo: sonhar um homem e impô-lo à realidade. No começo, os sonhos eram caóticos; depois, de “natureza dialética”. Surgiram sonhos com alunos (fantasmas) que foram descartados por aceitar passivamente o que o homem doutrinava. O homem optou pelos que arriscam, apesar das contradições. Ele decide ficar com apenas um aluno “de feições afiladas, repetindo as do seu sonhador.”

O sonho com um coração e um deus múltiplo

Surge uma catástrofe: o homem deixa de sonhar. Sente a “intolerável lucidez da insônia.” Compreende ele ser árduo modelar a matéria de que se compõem os sonhos, e os abandona. Purifica-se nas águas do rio, adora deuses planetários. Pronuncia um nome poderoso e dorme. Ao dormir, sonha com um coração pulsando amorosamente durante 14 noites. Na 14ª noite ele roça o coração. Roça por dentro e por fora. O homem Foi sonhando paulatinamente até chegar ao esqueleto. Até chegar às pálpebras, ao homem inteiro adormecido – o Adão de sonho. Depois sonha com um deus múltiplo chamado Fogo e que havia sido cultuado no templo circular. Este deus agiria magicamente animando o fantasma sonhado pelo homem.

O homem vê em si e no filho a condição de simulacro

Só eles dois – o homem sonhador e o deus múltiplo – julgavam ser de carne e osso o fantasma sonhado. Depois de cultuar o fogo, refez o homem o seu lado direito e pensou no filho: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.” O homem atinge o seu propósito: consegue uma espécie de êxtase. Vê no filho a condição de simulacro, teme pelo futuro do mesmo.
O final anuncia a leitura de sinais: nuvens, céu rosa, fumaça e fuga das bestas. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas. Chegada da morte. Reza o final: “Com alivio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Osso, luz


...
e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida

Esses versos de Ferreira Gullar fazem parte do poema “Inseto”. Esse poema está no livro “Em alguma parte alguma” que o poeta acaba de lançar. O livro faz parte de uma extensa bibliografia composta de diferentes formas como poesia, música, literatura infanto-juvenil, teatro, crônica, tradução, ficção...

Dentre os livros de poesia de Ferreira Gullar, três títulos podem ser lidos como textos representativos da poesia moderna produzida no Brasil: “A luta corporal”, “Dentro da noite veloz” e “Poema Sujo”. Muitos temas e formas desses volumes publicados na décadas de 60 e 70 estão no livro “Em alguma parte alguma”. Aqui temos novamente as frutas podres na quitanda ou amadurecendo sobre a mesa, vemos os velhos personagens do Maranhão, lemos nomes de ruas do Rio, relemos bichos (haja gato, aranha, rato...) e, dentre outros, um infindo exercício metalingüístico através do qual a trindade corpo-poema-cidade ganha vida e dialoga sem subordinação lingüística ou estética.

Esse diálogo entre o corpo, o poema e a cidade vivifica o ser e estar no espaço cotidiano. A vida vira um problema de linguagens e espantos. O escuro ganha necessidade de forma, como na abertura do poema “Bananas podres 4”: “É a escuridão que engendra o mel/ ou o futuro clarão no paladar”.

É do sol cotidiano que Gullar desentranha grande parte da sua poesia. O poeta sente na boca “o alarido do sol”. O cotidiano é sugado pela boca, pelo olho. Paladar e visibilidade engendram esse cotidiano do poeta moderno romanticamente atravessado por relâmpagos e clarões. Muitos relâmpagos. Pequenas epifanias. Não as epifanias à lá Clarice e Caio onde a luz atravessa, geralmente de forma atordoada e sã, o corpo de quem vê e frui. Em Gullar a luminosidade faz sua travessia nas próprias coisas, no cotidiano mais chão, de onde brota uma poesia feita de pequenos esplendores, assim:
...
mas o perfume daquelas frutas
que feito um relâmpago
desceu na minha carne
... volta a esplender

A juventude não é tudo

No próximo dia 10 Gullar completa 80 anos. Merece todas as comemorações, prêmios e reflexões. Na leitura madura (“A maturidade é tudo”) de Alfredo Bosi que abre o livro, o crítico indaga se materialismo e metafísica “podem conviver em amorosa tensão”. Concluída a leitura de “Em alguma parte alguma”, o leitor sabe que pode conviver sim. Pode casar luz e osso. Pode sugerir relações estéticas, filiações literárias que não acabam nunca.

Mas nesta poética onde Bosi ouve Drummond, meu ouvido escuta Cabral (embora uma tonalidade concretista ecoe de quando em vez dos muitos versos entrecortados, de algumas palavras fragmentadas ou de algumas estrofes alinhadas como nos tempos que o mundo era concreto). Dessa fonte ecoam, desde há muito, “Barulhos”, “Muitas Vozes”...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010


UFRRJ – UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
CURSO: Letras – DISCIPLINA: Teoria da Literatura– Carga H: 60 h
PROFESSOR: Dr. Raimundo Nonato Gurgel Soares


EMENTA

Conceitos de Teoria e de Literatura. Teoria da Literatura como disciplina. Teorias Críticas. Texto, contexto, intertexto. Autor, leitor, narrador. Metalinguagem no texto moderno. Procedimentos estéticos da narrativa contemporânea. Figurações da identidade nas relações entre o corpo e o espaço.


CONTEÚDOS


1 – TEORIA DA LITERATURA

1,1 – Conceitos de Teoria e Literatura
1.2 – Teoria da Literatura: objetivos, definições, funções
1.3 – Teorias Críticas do século XX: Formalismo, Nova Crítica, Estruturalismo, Psicanálise, Marxismo e Estudos Culturais

2 - CRÍTICA E NARRATIVA MODERNAS

2.1 – Re-leituras da tradição: intertextualidade e metalinguagem
2.2 – Benjamin: passagens do narrador e da narrativa
2.3 – Todorov leitor

3 – PROCEDIMENTOS ESTÉTICOS DA FICÇÃO

3.1 – Benjamin e as mutações perceptivas do discurso
3.2 – Barthes, a língua, a linguagem e o prazer do texto
3.3 – Bakhtin, a forma e as vozes do romance

4 – IDENTIDADE, CORPO E ESPAÇO

4.1 – O sujeito moderno e as identidades contraditórias
4.2 – Figurações da identidade na ficção contemporânea
4.3 – O mito fundador e a identidade cultural do Brasil


BIBLIOGRAFIA BÁSICA – Teoria da Literatura

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. Trad. Bernardini, Aurora Fornoni et al. São Paulo: Hucitec, 1990.
BARTHES, Roland. Lição. Lisboa: Edições 70, 1988.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 5a ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993.
CULLER, Jonathan. Teoria da Literatura: uma introdução. Trad. Sandra G. T. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes.


Bibliografia Complementar
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Lisboa: Edições 70, 1978.

CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: FPA, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
GURGEL, Nonato. “Walter Benjamin e um par de faróis” in Revista de Letras. Duque de Caxias: UNIGRANRIO, 2005.
LIMA, Luis Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. v. 1. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
SANTOS, L.A B., OLIVEIRA, S.P. de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins F., 1976.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 1986.
TODOROV. A Literatura em Perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro, 2009.
VILA MATAS, Enrique. “Intertextualidad y metaliteratura” (site do autor).
WELLEK, R. & WARREN, A. Teoria da Literatura. Lisboa: Nova América. 1962

Sobre Seminários

Para os seminários em grupo, serão sugeridos um roteiro metodológico, uma bibliografia com textos teóricos e textos de ficção dos seguintes autores: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Carlos Heitor Cony, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, César Aira, Albert Camus e Ítalo Calvino.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Floração da Prosa no Sertão


Entrevista de Katy Navarro e Sandra Ney com Nonato Gurgel para o PROLER – Casa da Leitura, Rio de Janeiro, 2010.

1) Qual o Curso que ministrou e qual foi a receptividade dos participantes?
R: Ministrei o curso “Floração da Prosa no Sertão” (27/07 a 14/09). A receptividade foi boa, como atestam 40 fichas de inscrição e as listas de presença.

2) Qual o perfil dos participantes?
R: Gostei muito do perfil dos participantes. Principalmente pela diversidade da faixa etária – de 18 a 60 anos –, como também pela multiplicidade dos perfis profissionais. Havia no curso professor, coordenador de curso, aluno de mestrado, pesquisador do IBGE, produtor cultural, além de graduandos dos cursos de Letras e História, escritor.

3) Qual a importância da realização de cursos como o seu na formação dos profissionais de educação e mediadores de leitura?
R: O curso empreende uma leitura da prosa moderna produzida no Brasil do século XX, e dos seus narradores mais representativos. Através dessa leitura, amplia-se o potencial de interpretação daqueles autores considerados intérpretes do Brasil, como Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, dentre outros. Além disso, o curso possibilitou um maior entrosamento entre profissionais e alunos da Baixada Fluminense, principalmente de Nova Iguaçu, São João do Meriti e Mesquita, com alunos e profissionais do Rio de Janeiro.

4) Como vê o Programa de Incentivo à Leitura, o PROLER?
R: Acho o PROLER um programa da maior importância para um país como o Brasil que possui um pequeno público leitor. Os cursos da Casa da Leitura evidenciam a prática da leitura como atividade política, na medida em que reúne profissionais e cidadãos dos mais variados extratos sociais, estabelecendo trocas, parcerias, e dilatando as possibilidades culturais.

5) Qual a diferença que a leitura faz na vida do indivíduo?
R: A leitura é uma ação. Ela auxilia na construção do discurso e o discurso engendra a identidade, a cidadania. Através da leitura, o sujeito torna-se um doador de sentidos. A leitura amplia a visão contextual, remove obstáculos existenciais. A leitura pode ser também – por que não? – terapêutica.

6) Como incentivar a leitura nas crianças nessa era de mídia digital?
R: Vejo as mídias digitais como suportes que intensificam as possibilidades de leitura e produção de textos. Cabe aos pais e educadores estabeleceram metas e propostas que incluam as leituras impressas e virtuais na formação das crianças.

7) O que a leitura acrescentou na sua vida?
R: A leitura não acrescentou. Ela fundamentou a minha existência como homem e cidadão. Sem a leitura, não haveria isso que as pessoas chamam “projeto de vida” ou “minha vida”. Fui salvo pelos livros. Autores e personagens foram os meus heróis desde a infância.

8) Cite os autores mais lidos por você.
R: Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Ana Cristina Cesar, Jorge Luís Borges, Cesar Aira, Enrique Vila-Matas, Roland Barthes e Walter Benjamin.

9) Se puder escreva um pequeno trecho de um texto de autor que tenha marcado sua vida.
R: O seguinte trecho foi transcrito do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.

"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. (...)
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (...)
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo (...).
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. (...)

sábado, 14 de agosto de 2010

Constância Duarte, cidadã norte-riograndense


I – Poesia
Ela leu e estudou a mulher e a poesia escrita por mulheres no RN.

II – Gênero
Detonou a “educação da agulha” e a “mística feminina” que oprimem e outorgam à mulher o reino do lar.

III – Memórias pedagógicas
Lecionou, para alunos de diferentes cursos de graduação e pós, a importância de reler como evocação a memória – mineira, potiguar – traduzindo os fatos e as percepções do seu tempo.

IV – Apontamentos
Escreveu vários apontamentos e notas sobre educação, identidade, história e cultura feminina.

V – Nísia
- Releu Nísia Floresta Brasileira Augusta como a primeira feminista do Brasil, resgatando-a de um imobilismo oficial e culturalmente vão.
- Pôs em circulação, no século XXI, a obra escrita no século XIX por esta educadora que sabia não ser o seu sexo inferior e desprezível, como achavam os homens do seu tempo.


VI – Livros
- Organizou, dentre vários outros livros, as cartas trocadas entre Nísia e Auguste Comte e a Correspondência e Fortuna Crítica de Henriqueta Lisboa.
- Dicionarizou os escritores mineiros, de Drummond a Ziraldo, apresentando os bastidores de suas pesquisas e parcerias.

VII – Pesquisa
Analisa atualmente as relações entre literatura, imprensa e emancipação da mulher no Brasil do século XIX à contemporaneidade.

VIII – Diálogos lítero-culturais
Dialoga com a história e o imaginário luso-brasileiro, inscrevendo na linhagem dos mortos que ecoa em nossas letras desde Machado de Assis, a linguagem de Inês Pedrosa e dos afetos que sobrevivem.

IX – Dentro do texto
Ara o espaço da página, verbalizando o ser e estar no texto. Não se oculta. Deleta véus. Delata vôos.

X – Ensaio
Ensinou-me que o prazer do texto e a escrita do ensaio são exercícios que, plugados na vida e na história, põem para funcionar quem escreve.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

PROLER – Casa da Leitura – BN


CURSO: Floração da prosa no Sertão

O curso empreende uma leitura da prosa moderna produzida no Brasil do século XX, e seus autores mais representativos: Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Guimarães Rosa। Leitura dos procedimentos estéticos utilizados por esses autores modernos na construção dos seus textos. Diálogos entre Literatura e Teoria Literária nas figurações da identidade, nas relações entre espaço e corpo.
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Plano do Curso

27/07 – AULA 1 – O sertão é o mundo
- Roteiros bibliográficos, recortes teóricos, formas e procedimentos

03/08 – AULA 2 – Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha
- A identidade cultural do Brasil
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10/08 – AULA 3 – Angústia (1936) de Graciliano Ramos
- A linguagem do corte ou a retórica do seco
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17/08 – AULA 4 – Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa
- O romance de formação do Brasil
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24/08 – AULA 5 – A Hora da Estrela (1977) de Clarice Lispector
- O sertanejo é, antes de tudo, forte ou paciente?
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31/08 e 14/09 – AULAS 6 e 7
A voz e a Vez: compartilhando efeitos de sentido
- Participações especiais

sábado, 7 de agosto de 2010

Sentimento do tempo

Resenha publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de Julho de २०१०


Quem conhece a produção ensaística e/ou assistiu a cursos e conferências do professor e escritor Davi Arrigucci Jr. sabe do cânone moderno e particular que ele vem recortando ao longo das quatro últimas décadas. Desse cânone fazem parte alguns dos nomes mais representativos das letras no século XX, como Walter Benjamin, Paul Valéry, Antonio Cândido, Jorge Luís Borges, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Carlos Drummond, dentre outros.

Assumidamente lidos de forma afetiva e pessoal, esses e outros autores estão de volta neste livro “O guardador de segredos” de 2010. Nele, a maioria dos textos – escritos nesta primeira década do século XXI – ratifica o método comparativo utilizado pelo professor aposentado de teoria literária e literatura comparada.

Essa metodologia compara autores e gêneros, textos e procedimentos, contextos históricos e estéticos. Munido dela e de um cabedal de leituras da tradição, Arrigucci ensaia acerca de escritores e gêneros de diferentes épocas analisando, dentre outros, a epopéia, o romance, a ironia e a sátira. Objetivando uma “visão intuitiva do todo”, ele atenta para as formas de construção e de recepção das obras. Aponta para as semelhanças e diferenças entre algumas dessas obras e entre os procedimentos estéticos e culturais utilizados por autores como Rachel de Queiroz e Dyonélio Machado.

O diferencial das leituras comparativas e das linguagens contemporâneas criadas por Arrigucci está presente logo no ensaio que abre o livro, onde a poesia lírica e reflexiva de Drummond filia-se à poética romântica alemã. Esse diferencial comparativo leva em conta o sentimento do tempo presente e perpassa vários escritos, culminando nas leituras de Guimarães Rosa e Juan Rulfo – dois autores antenados com as experiências da oralidade e da memória.

“Sertão: mar e rios de histórias” e “Fala sobre Rulfo” são textos que alumiam. No primeiro, Arrigucci lê a travessia romanesca no “estilo tão estilo” da narrativa de Guimarães Rosa. No segundo ensaio tece comparações entre “Grande sertão: veredas” e “Pedro Páramo”, lendo as identidades dos jagunços e camponeses mexicanos; além de arengar com parte da crítica leitora de Rulfo (principalmente com a leitura do exímio ensaísta Emir Monegal).

Miradas poéticas, vejam

Desde que lançou em 1990 o ensaio “Humildade, paixão e morte” sobre a poesia de Manuel Bandeira, Arrigucci foi aclamado um dos melhores críticos do Brasil. Apoiada na história, sua leitura revela. Em “O guardador...” essa revelação é visível logo na primeira parte do livro, onde diferentes poetas como João Cabral e Roberto Piva ganham leituras atentas à experiência histórica da modernidade tendo na forma o ponto de partida.

Como o Drummond reflexivo, contraditório e romântico, Arrigucci reflete sobre segredos e enigmas (“não existe interpretação definitiva porque o enigma é inesgotável”). Desentranha aos poucos a sua lógica interna e histórica, audível em trechos como este: “Gullar ouve as vibrações do mito, mas tem os pés no chão e a escuta dos homens.”

“O guardador de segredos” é título de um belo e denso ensaio sobre a poesia de Sebastião Uchoa Leite. Nele, Arrigucci lê o imaginário de uma poética urbana que é atravessada pela “sombra, o fascínio difícil”. Nessa travessia, o ensaísta atenta para os “fluídos orgânicos que tanto falam à imaginação...”, sem perder o tom da experiência. Essa tonalidade é audível numa linguagem que “puxa para o chão a espiritualidade elevada dos olhos...”, de ouvido atento aos monstros produzidos por Dona Razão.

Sem aura, plugada no chão de onde brotam o grotesco e seu reverso, o afetivo e o bélico, a poesia adentra o “inferno da linguagem”. Atento a essa realidade que provoca e pode fazer delirar, Arrigucci é um dos poucos críticos brasileiros que assume transitar pelo espaço imaginário: “O poder ser é o lugar da imaginação”. Um imaginário brotado do “chão histórico”. Nele o guardador finge revelar completamente os segredos da “linguagem mais condensada” que a experiência do homem criou: a poesia.

sábado, 29 de maio de 2010

O novo cânone urbano

Escritos sobre o poder da ficção

Ensaio publicado no Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de Maio de 2010


Como registra a nossa historiografia crítica e literária, alguns olhares estrangeiros foram determinantes para a tradução e para afirmação da literatura e da cultura produzidas no Brasil.

Alguns desses olhares nos legaram exímias leituras das nossas Letras e assinaram a autonomia da Literatura Brasileira, como atestam, no século XX, os textos de ensaístas como o alemão Willi Bolle e a italiana Luciana Stegagno Picchio, dentre outros.

Assim como eles, o professor, tradutor e ensaísta dinamarquês Karl Eric Schollhammer pesquisou sobre a nossa literatura, elegendo como objeto de sua reflexão a prosa escrita no Brasil a partir dos anos 70. Os resultados dessa pesquisa podem ser aferidos no livro “Ficção Brasileira Contemporânea”, recentemente lançado pela editora Civilização Brasileira. O volume integra a coleção “Contemporânea”, cuja organização do professor e escritor Evando Nascimento projeta a edição de 20 volumes; todos em sintonia com o que sugere o adjetivo que intitula a referida coleção.


Um novo perfil de autor


A partir da idéia do que é o contemporâneo, o autor reflete sobre a nossa ficção resgatando a leitura feita por Agamben em seu ensaio “O que é o contemporâneo?” Essa reflexão inicial resgata as “Considerações intempestivas” de Nietzsche lidas por Barthes, para quem “o contemporâneo é o intempestivo”. Esse resgate teórico feito por Karl Eric aponta para o diferente e o anacrônico como categorias perceptivas capazes de ler o contexto e suas transformações históricas e estéticas.

Essas leituras contextuais dialogam com os discursos da mídia e da academia, resultando numa celebração enfática do real, da realidade, do realismo, através do qual até um outro regionalismo é indagado. Trata-se de um novo realismo. Realismo que possui como base um novo cânone urbano, em contraposição ao cânone regionalista e/ou sertanejo herdado da tradição literária, do qual fazem parte autores como José de Alencar (“O Sertanejo”), Euclides da Cunha (“Os Sertões”), Graciliano Ramos (“Vidas Secas’) e Guimarães Rosa (“Grande Sertão: Veredas”), dentre outros.

Na leitura de Karl Eric, esse novo cânone realista é inaugurado por Rubem Fonseca no século XX, e dele fazem parte novos autores como Bernardo Carvalho, Luiz Rufatto, Milton Hatoum e Cristóvão Tezza, dentre outros. Segundo o autor de “Ficção Brasileira Contemporânea”, esse “novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força transformadora.”

Como vemos, trata-se de um olhar inusitado, a partir do qual o autor elabora leituras argutas, como as que propõe em torno do texto transgressor de João Gilberto Noll e das “estratégias autobiográficas” de Cristóvão Tezza, por exemplo. De olho nos novos autores que começaram a publicar a partir da década de 90, é interessante perceber que com essa geração realista surge uma outra forma de profissionalização. Um outro perfil do autor literário passa a ser redefinido, em sintonia com os gráficos do mercado e suas múltiplas demandas. Daí, as agendas trepidantes e os infindos roteiros – reais e virtuais – da maioria desses autores.

A atuação desse novo profissional da literatura difere de tudo o que foi visto até hoje no universo das Letras. Esse novo perfil autoral pouco possui do autor que tinha na leitura e na escrita de textos verbais as bases do seu roteiro literário. Para alguns desses autores realistas, a literatura transformou-se em algo bastante diferente do que era, por exemplo, a arte literária para um escritor do século XIX – o mais literário de todos os séculos, como diz o crítico português Eduardo Lourenço.

Segundo Karl Eric, para esses novos realistas a literatura é “apenas uma entre um leque de atividades do escritor, que agora atua em todos os campos possíveis, da imprensa aos meios visuais de comunicação, passando pelo cinema, pela televisão, pelo teatro e pela produção de textos para os sites virtuais.”

Esses intertextos produzidos entre a literatura e outras artes possibilitam outras formas de criação; requerem do crítico e do leitor um repertório estético e cultural calcado principalmente nas noções de Visibilidade (fragmentos) e Rapidez (formas breves) – duas das propostas sugeridas por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio. O próprio Karl Eric é, neste sentido, um leitor exemplar dessa nova postura crítica, já que o seu discurso ensaístico ostenta um profícuo diálogo semiótico da literatura com o cinema e as artes plásticas, dentre outros.

Nesse discurso crítico reflete-se, dentre outros, a porção benjaminiana do autor, ao eleger as letras urbanas e as ruas da modernidade como “personagens” de suas leituras. Isso é visível, por exemplo, quando ele lê como “imagem do pensamento” (título de uma das partes de “Rua de Mão Única”, de Walter Benjamin) os recursos estéticos criados por Luiz Ruffato em seu romance Eles eram muitos cavalos.


Overdose do real


Além dessa opção de ler os novos autores brasileiros por um viés realista, o livro “Ficção Brasileira Contemporânea” abre com um texto que é um roteiro exemplar para quem deseja historicizar a ficção produzida no Brasil pós anos sessenta: “Breve mapeamento das últimas gerações”. A partir desse “mapeamento”, é possível indagarmos algumas ausências com base na opção realista do autor, no seu diálogo com as formas do real, nesse “contato visceral com o real”.

Esse realismo não tem nada a ver com aquele Realismo cheio de certezas e das noções de totalidade que aprendemos com Lukács, nem acredita no poder supremo da representação. Também não desdenha as relações entre forma e conteúdo. No entanto, essa overdose do real causa alguns efeitos. Em nome de um certo “exaurimento do experimentalismo mais técnico e formal”, o “mapeamento” omite romances experimentais como “Catatau” (1975), onde Paulo Leminski reúne história, filosofia e literatura para inscrever de forma sincrônica uma ruptura de formas e linguagens em sintonia com as leituras da tradição.

O “mapeamento” não menciona uma escritora de assinatura assumidamente antirealista, como Hilda Hilst – autora que transitou, durante 5 décadas, entre os mais variados gêneros e formas como a prosa, a poesia, o teatro e a crônica. De fora do “mapeamento” fica também um autor contemporâneo como Rubens Figueiredo, cuja prosa não é pautada por nenhum “fervor naturalista” ou compromisso com a “realidade verdadeira”.

Essas ausências não diminuem as teses e leituras deste livro. Atentam apenas para o acentuado recorte histórico e realista patrocinado pelo autor. O seu livro ratifica com todas as letras o que pode a prosa produzida no Brasil da ditadura militar, passando pela redemocratização até hoje.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Borges


Natal, 1998

Para as professoras Sara Araújo, Magnólia Brasil, Silvia Carcamo
e Ana Isabel, exímias leitoras da língua e da literatura espanhola


Yo me llamo Nonato, soy profesor de teoria y literatura. Me gusta mucho los textos y autores de la literatura española, principalmente del género Barroco: Cervantes, Gôngora, Quevedo y Calderón de La Barca .

De la poesia más moderna (siglo XX) aprecio Antonio Machado. Él nació em Sevilla y escribió Soledades – su primer libro, hablando de “las olorosas ramas del eucalito” – nome del lugar donde habitó. Me alegra hablar sobre esto.

Pero el autor de la lengua española que más me gusta leer es de Hispanoamérica: se llama Jorge Luís Borges. Es argentino. Él hablaba alguns idiomas (ingles, Frances, italian...) y escribió muchos libros: Ficciones, Libro del sueños, Historia de La eternidad, Otras Inquisiciones y Elogyo de la sombra...

Borges habla unas palabras muy lindas sobre Buenos Aires – su ciudad: “A mi se me hace cuento nació Buenos Aires. La juzgo tan eterna como el agua y el aire.” El texto de Borges és muy agrdable y sus ideas sobre sueño, tiempo, creación y espejos son muy buenas.

Sobre el famoso, universal y modern Borges, escribió su amigo Cioran: “Pero, después de todo, Borges podria convertirse en el símbolo de una humanidad sin dogmas ni sistemas, y si existe una utopia a la cual yo adheriría con guesto, sería aquella em la que todo el mundo imitaria a él, a uno de dos espíritus menos graves que han existido, al ultimo delicado...” Yo también adheriría a esta utopia: emitaria el ancho y eterno Borges.

Mi gusto por los textos borgeanos és antigo. Con ellos aprendi sobre la palabra, el diálogo y los escritores más frecuentes de la hsitoria de las literaturas hispánica y universal. Borges habla mucho del Quijote, de la flor y de los puñales en sus libros. Habla tambien de la lectura, del lector y su importância. Él responde a las perguntas más completas sobre la vida y la literatura, en sus más de cincuenta obras de poesía, prosa, ensayo y crítica.

Borges, com su lenguage, ayudó a crear uma identidad em la Hispanoamérica.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Letra urbana no calor da hora



“Amor que cruza a madrugada e no dia seguinte ajuda a tirar água do poço”. Nessa dedicatória cheia de afeto para a sua Valquiria, o autor Marcus Vinícius Faustini entrega o contexto cotidiano e amoroso no qual inscreve o seu Guia Afetivo da Periferia, lançado em 2009 pela coleção Tramas Urbanas da editora Aeroplano. Afetivo. O adjetivo “afetivo” anunciado no título salta da dedicatória para os roteiros do sumário, e perpassa depois o território da narrativa num “ritual de passagem para o amor”. Afetivo é também o que ecoa dos mapas e bússola da leitura.

Escrito por quem vinga no trânsito entre teatro, cinema e cultura, o livro de Marcus começa na verdade pelo corpo que serve de laboratório para a escrita. “A primeira verdade está na terra e no corpo”, diz Clarice em Perto do Coração Selvagem. No braço do autor uma tatuagem anuncia um “mar de possibilidades”. Seriam essas as várias possibilidades de leituras do Guia..., apontadas no belo Prefácio de Luís Eduardo Soares? Diz o primeiro parágrafo:

“Romance de formação; etnografia urbana; história social do subúrbio carioca; ...fragmentos de um discurso amoroso sobre o Rio de Janeiro...”. Guia... pode ser tudo isso. Tudo animado pelos ritmos e repetições de um “narrador-DJ” que é pura mixagem e espécie de intérprete das várias vozes que narram, guiam, transitam...

Crença nas Conversas

Marcus pertence a uma linhagem de autores andarilhos. Sujeitos que se deslocam incessantemente por trajetos urbanos carregando sacolas, memórias, latidos. Seus “personagens” transitam por entre livros de Dostoievski, frases de Proust, radiola de ficha, anúncios e quadrinhos. Assistem aos filmes do cemitério, do cinema, Corujão.

Nestas páginas, uma “geografia humana” habita becos e bairros produzindo gestos e imagens urgentes. Takes sem aura nem transcendência. Há nesses takes rastros ideológicos que sinalizam o quanto de crença existe nas práticas sociais e nas conversas entre os homens. Pegadas de um imaginário que se afirma como potência e espaço de sobrevivência: “O espaço sideral era a forma de afirmar a nossa imaginação”.

Guia... são letras ágeis em estado bruto. Narrativas escritas a partir de identidades provisórias e encantamentos infindos. Literatura selvagem no calor do corpo, no ritmo da hora. Texto que lembra, na sua eletricidade, a rapidez sinestésica da escrita marginal dos anos 70 e o seu legado romântico de passar para a página o que o corpo registra: “Fiz da minha tuberculose meu pacto com a literatura”.

Urbano, ligado no ritmo dos trens e das vans (“sempre acreditei nas conversar”), o “narrador-DJ” é também uma câmara. De olho nas paisagens do centro e da periferia, ele lê de dentro do ônibus o texto da cidade, seus travessões, suas lacunas. Ficcionaliza, no percurso da viagem diária, a força do belo e essa crença nas conversas. Possui, como bom flâneur andarilho, a percepção acesa e declara, no sentido mais Walter Benjamin do calor da hora, o seu amor pela cidade: “Sempre vivi para a rua e para as coisas que tinham nela”. É bom quando a escrita fala a voz do nosso tempo com linguagens do nosso tempo.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Passagens


I
Mãos e olhos desnudaram arestas e interrogações infindas. Sob os olhares de Perseu e Atena, emergiu uma luz que assinava o tempo da diferença. Audição de planos e timbres que oscilavam entre o agrário e o urbano. Raiz e Antena. Uma perene metodologia dos contrários em festa. Nutrição e senha. Passou, Baby.

II
Diálogos com mitos, com a tradição no tempo da outra voz। Ela rezava um dialogismo feito de experiências coletivas, fatos urbanos. Livros, filmes, séries de TV serviram de roteiros para Sergio Leone e George Lucas, dentre outros.

III

No filme que estava em cartaz entraram cartilhas, folhetos de catecismos, anúncios de mesas brancas, pretas. Partidas de homens ao mar e de futebol. Hoje, nenhuma epifania. Saudades de Hall e suas identidades provisórias.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Canil que trago no peito

Texto publicado no blog de Ailton Medeiros em Maio de 2009


O poeta consagrado elogia minha rede. Sua vida e obra abrangem os mais variados gêneros. Ele saca a sarna da vida. Não é mais um sem cais nem canil. Encara a sombra de antigos espelhos que carrega nos ombros.

Erra uma vez e foi lindo. Mas não vai passar: já passou. Enquanto escuto o poeta, o cachorro ao lado aproxima-se. Encosta a cara em meus lábios. O que deseja esse bicho sugar da minha boca? Esse Cão não teme a mim. Lembro do cachorro que é um rio cujas águas amolecem ossos e pedras. Bebo o que me resta: essa tentativa de beijo animal. Seus cheiros, os conheço bem; seu rosnado, agasalha quando o contexto pede silêncio viril.

Para viver este ciclo canino, desenvolvo uma metodologia animal. Uso líquidos de uma mulher que me ama e faz do corpo obra de arte. Foi ela quem nomeou o canil que trago no peito. Antes dela, provei chás suicidas da moça que enxuga dorso de montanha.

Ouvi cão sem dono mais uma boca que rumina afetos caninos. Essa, curte Ribeira, Lapa, Beco do Rato, faunas noturnas. Nutre-se de Clarice Lispector e seus animais. Clarice é bicho corajoso. Confessa que certa vez apaixonou-se, de cara, por Dilermando – um cachorro com cara de brasileiro encontrado numa rua da Itália. Resultado: pagou (isso: pagou) e levou o cão para casa. Rolou a partir daí uma narrativa de cheiros, comidas, abanos, gestos obscenos e, claro, beijos disfarçados. As visitas – coitadas – ficavam passadas.

Segundo Clarice, cachorro cheira as coisas para compreendê-las. Diz ela que eles não raciocinam muito, mas são guiados pelo amor dos outros e deles mesmos.Clarice é a autora brasileira que mais entende de bichos. Em sua obra eles constituem uma simbologia do ser. Por isso ela saca no cão um bicho misterioso que quase pensa. Sem falar que ele sente tudo, menos a noção do futuro.

Na sua escrita, cachorro tem fome de gente. Tem desejo de (ser) homem. Aprendi com Clarice e TT que, às vezes, para abanar o humano é preciso contatar nos lábios o Cão que te deseja. Principalmente quando você e esse Cão usam o mesmo remédio, as mesmas formas.Tudo isso para responder as mesmas perguntas que os questionários da existência e do cotidiano repetem, sem dó, para quem optou por si, por ser só. Mesmo quando o humano rosna ou ri – lindo – por perto.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Do lírico que não se distancia




Tarde percebeu: nem todo lirismo tem olhar dispersivo. Lembrou Macau, livro do Paulo Henriques Brito: são as palavras, e não os ombros, que suportam o mundo. Prestou atenção nas palavras ao lado. Palavras dos ombros. Atenção para o que roça. Celebração do que está próximo. Tia Lica achava o longe geralmente passível de adiamentos...

Impelido pela movência do seu tempo, embarcou em fluxos musicais, repetitivos. Fluxos prolongados que nem uma nota longa e lânguida de antiga canção. Sintaxe antidiscursiva e musical que circunda de forma repetitiva o objeto. Desvios coordenados na rememoração.

Ele não sabe a que tipo de impulso – unificador, múltiplo? – as coisas amoldam-se. Coisas moldam. Inscreve, na previsão do romance, uma “lógica perfeita de nervuras” –. como diz o poeta-engenheiro Joaquim Cardoso. Lírico plugado no seu tempo, ele traça em sua poética um diálogo afirmativo entre mitologia e sonho. As formas da mitologia dialogam com os sonhos da razão e seus monstros.

Centrado numa razão fictícia, esse diálogo registra a memória dos homens, mangues e cajus nordestinos।

segunda-feira, 22 de março de 2010

A infância das máquinas e a maturidade das letras

Em parte a gente é arte/ em outra parte, técnica

Antonio Cicero e Marina Lima, “Acende o Crepúsculo”


A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão। Só a maquinaria। E os transfusores de sangue.

Oswald de Andrade, “Manifesto Antropofágico”





Sabemos que, desde Aristóteles e sua Poética, arte e técnica têm tudo a ver (embora ambos os conceitos sejam hoje bem diferentes da Antiguidade Clássica). Sabemos também que, desde o final do século XIX, a linguagem – principalmente a linguagem literária - começou a ganhar um novo impacto a partir do desenvolvimento tecnológico. Isso foi intensificado durante todo o século XX com a instauração do que chamamos de Modernidade: uma estética que possui no ceticismo e no deslocamento duas de suas principais “senhas”.

A criação de objetos e máquinas como a lâmpada elétrica, o automóvel, o cinematógrafo, o vídeo, a TV e a máquina de escrever transformaram radicalmente os cenários e costumes da vida urbana. Nas cidades, as ações cotidianas – mediadas principalmente pela técnica - passaram a ser mais imediatas, o que de certa forma interferiu no ritmo da produção da escrita e na recepção das artes e culturas.

Também o aparecimento da imprensa diária contribuiu para a mudança de hábitos. Formou um novo tipo de leitor. Um leitor com um outro ritmo de leitura. Desde então, a literatura passou a ter uma forma mais apressada de recepção; e gêneros como o romance, por exemplo, sofreu influência do jornal. A literatura começava a perder a sua aura.


Uma nova sensibilidade no ar

Difícil não perceber que a entrada de tanta tecnologia em cena contribuiu para a mudança de percepção do sujeito. E a lição do crítico e pensador Walter Benjamin nos ensina que quando muda essa percepção, transformam-se os modos de existência da coletividade e os seus meios de produzir arte e cultura. Cria-se, com essa transformação perceptiva, uma re-leitura do contexto.


Para essa releitura do contexto, gosto muito de lembrar um autor que os jovens alunos adoram: o poeta Paulo Leminski, romancista que publicou em 1975 o denso e injustamente esquecido Catatau. Ele foi professor de História, ensaísta e tradutor de Petrônio, Joyce e Lennon, dentre outros.

Sintonizado com a concretude do seu contexto histórico e estético, Leminski leu Oswald de Andrade, e por isso sabia que a poesia existe na maquinaria e nos fatos. Por causa deles, os fatos, o poeta não perde a sintonia com o contexto, e sabe que não apenas as formas estéticas e culturais são históricas e mutantes, mas até os sentimentos, os nossos gestos... São as mutações identitárias dos filhos da modernidade e suas movências... Leminski leu Karl Marx, é claro. E escreveu um texto belíssimo, como diria minha querida amiga Tetê, chamado "Latim com gosto de vinho tinto".

Voltemos às novas sensibilidades que sedimentam as identidades modernas. Somos testemunhas de que vários fatos contribuíram para a produção de outras linguagens, além das mutações e alterações nos ritmos e tons do texto literário. Dentre esses fatos e mutações mencionamos:

- a leitura do jornal

- a possibilidade de observarmos imagens que se locomovem na tela - do cinema, da TV, do PC

- a transformação do ritmo temporal gerada pelos meios de locomoção

- a criação de uma escrita automática...

Esses são alguns dos fatos e/ou motivos que contribuíram para que o texto literário ganhasse uma outra oralidade e/ou um outro ritmo no início do século XX. Neste início de milênio, esse ritmo torna-se mais radical, a partir do advento da informática, dos roteiros da computação e da escrita virtual. Surge uma oralidade maquínica que gera outras modalidades de escrita.

Nada disso eu soube dizer quando defendi a “letra” contemporânea na Universidade. "Letra" essa sintomaticamente inscrita num Departamento de Tecnologias e Linguagens. Tudo a ver. Uma “letra” do meu tempo. Escrita com as tintas e as trevas do presente. Conteúdos mais voltados para os roteiros das novas tecnologias que se inscrevem, de forma irreversível, em nosso contexto histórico, estético e cultural. Isso porque muito me inquieta a distância que separa a subjetividade maquínica que aciona atualmente o nosso cotidiano, e o quadro de giz do século VXIII com o qual buscamos inscrever o universo de quem nos assiste.

Essa “letra” contemporânea faz-me pensar na palestra que o crítico George Yudice proferiu na UFRJ em 2009. O autor de A conveniência da cultura: usos da cultura na era global iniciou a sua comunicação ressaltando a importância dos professores e pesquisadores atentarmos para o universo dos jovens. Segundo ele, os jovens alunos devem ser inseridos "libidinosamente". Essa inserção tema ver com o fato de que, na sua opinião, "as mudanças culturais não estão relacionadas apenas com a cultura". Essas mudanças têm a ver com a escola e com as políticas educacionais, pois no atual contexto a cultura é lida como "prática material", e não apenas como uma abstração, um bem simbólico.

Professores gostam?

Segundo Yudice, a maioria dos professores não conhecem (ou não se interessam) pelas práticas culturais dos jovens contemporâneos: video-games, yotube, blogs, chats, MP-3, músicas no pc... Para ele, esse desconhecimento dificulta a interação entre mestres e alunos. Inseridos na atual "cultura do acesso", esses jovens sentem-se desinteressados pelo modelo proposto pela escola.

. Atentando para a importância dos suportes materiais e dos produtos midiáticos da cultura, o ensaísta ressalta "os lugares de socialização da internet". Para tecer relações com o atual contexto digital e midiático, onde novas tecnologias proporcionam o surgimento de outras sensibilidades, o crítico americano resgata a leitura que Walter Benjamin faz do flaneur e do seu trânsito no espaço urbano no século XX.

Segundo ele, a expressão dessas sensibilidades exige outros modos de percepção, outros meios de interação; assim como as formas perceptivas que o pensador alemão conseguiu captar nas primeiras décadas do século XX, principalmente através do cinema e da arquitetura. Principalmente através das Passagens de Paris, suas modas e mercadorias, e da poesia de Baudelaire.


Já ouvi muita gente boa dizer que, se vivo estivesse, Walter Benjamin leria hoje os shoppings... Tudo a ver. Ele sabia que o crítico é um leitor que rumina. Por isso precisa ter vários estômagos, múltiplos olhares... Benjamin sabia principalmente que a tecnologia circula na veia moderna escrevendo outra letra.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Notas sobre o Prefácio de As Palavras e as Coisas




Texto escrito e apresentado durante o Curso Estudos da Linguagem
UFRN, Natal, Maio de 1995



01 – No livro Borges: uma poética da leitura, o crítico Emir Monegal ressalta o “estímulo” que o escritor argentino despertou em autores das mais diversas áreas do saber. Dentre esses autores, o crítico destaca o filósofo francês Michel Foucault, cujo livro As Palavras e as Coisas inicia afirmando que a sua obra “nasceu de um texto de Borges”. Segundo Foucault, o escritor argentino cita, no referido texto, “uma certa enciclopédia chinesa” onde existe uma inusitada divisão dos animais.

02 – Na página 42 do seu livro, Monegal afirma: “É preciso observar primeiro que Foucault talvez devesse ter indicado, com mais precisão, que o texto que ele atribui a Borges é atribuído por Borges (“El idioma analítico de John Wilkins”, em Otras Inquisiciones) ao Dr. Franz Kuhn que, por sua vez, o atribui a “certa enciclopédia chinesa que se intitula Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos”. Encontramos aqui o recurso, tipicamente borgiano, da mise-en-abyme: a perspectiva infinita de textos que remetem a textos que remetem a textos.”

03 – Sem mencionar o título do texto borgiano, Foucault o tem como ponto de partida para a escritura de sua obra. Refere-se, no prefácio, ao riso provocado pelo texto de autor latino, cuja leitura suscita novas possibilidades de pensar. Para o filósofo, o texto borgiano “...perturba todas as familiaridades do pensamento.” (p. 5).

04 – Por mais de uma vez, o autor menciona o “mal-estar” causado pelo riso ao ler Borges. O riso provocado pelo texto que contém a divisão dos animais, evidencia a suspeita de uma “... desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito.” (p. 7).

05 – Segundo o Aurélio, heteróclito é o que “... se desvia dos princípios da analogia gramatical ou das normas de arte.” “Singular”, “Excêntrico” e “Extravagante” são adjetivos também atribuídos ao referido termo. Foucault refere-se ainda às “heterotopias” como algo contrário às utopias. Para o filósofo, aquelas “inquietam” porque “impedem” a nomeação (“isto e aquilo”), pondo em questão a sintaxe, a gramática, a linguagem. Já as utopias estariam relacionadas com a linearidade da linguagem; o que possibilita a construção de fábulas e discursos.

06 – As heterotopias desconstroem a ordem, criando outras possibilidades de leituras, a produção de novas relações e múltiplas formas de ordenar a linguagem, o mundo.

07 – O riso oriundo do texto borgiano é responsável pelo “mal-estar” “daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o “comum” do lugar e do nome. Atopia, afasia.” (p. 8).

08 – Lembremos uma das lições do Roland Barthes: “Fichado: estou fixado num lugar (intelectual), numa residência de casta (se não de classe). Contra isso, só uma doutrina interior; a da atopia (do habitáculo em deriva)”. Barthes afirma ser a utopia inferior à atopia; no que Foucault concorda ao afirmar o consolo oriundo das utopias, em contraste com a inquietação consequente das heterotopias.

09 – Segundo Barthes, a utopia é útil para fazer sentido. Heterologia é outro termo usado pelo autor de Roland Barthes por Roland Barthes ao referir-se a uma certa teoria textual. Para ele essa teoria possui relações com a deriva, a ruptura.

10 – Referindo-se à obra do poeta Sebastião Nunes, diz Ilza Mathias em Figuras e cenas Brasileiras: leituras semióticas de Papéis Higiênicos: “É a prática de uma tererodoxia face à ortodoxia institucional”.

11 – Questionar a ordem previsível e linear, estabelecer outras leituras.

- Heterotopia – Foucault
- Heterologia – Barthes
- Heterodoxia – Ilza

12 – Arnaldo Antunes:
“A vida que vai á deriva é a nossa condução/ Mas não seguimos à toa”

- Produção à margem do processo institucional?

13 – Retomemos As Palavras e as Coisas

O Prefácio de Foucault explica que esta obra teria como objetivo iluminar o “campo epistemológico” dos saberes. Entender a experiência da ordenação dos saberes no espaço da cultura ocidental, a partir dos estudos que remontam aos séculos XVIII (Classicismo, Revolução Francesa) e XIX (limiar da modernidade). A filologia (as palavras na sua origem), Economia e Política, Biologia e Arte são os principais saberes e formas lidos por Foucault.

14 – Segundo o autor de A História da Loucura (a história do outro, da diferença), As palavras e as coisas seria uma “história da semelhança”. Trata-se, neste livro, de estudar a cultura observando “a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los”. (p. 13).

15 – O que parece determinar o critério temporal do Clássico e do Moderno escolhidos como base da escritura foucaultiana, é o fato de o autor ter como parâmetro a ideia da representação. A “história da semelhança”, do “mesmo”. É a partir daí que o autor considera o surgimento do “homem” na história do saber.

16 – A idéia da representação estaria relacionada às idéias de mimese, imitação, verossimilhança postuladas por Aristóteles em sua Poética (p. 12 do Prefácio).

17 – Ao distorcer a classificação animal, Borges nos remete ao oriente. Denomina a China (já que a divisão dos animais acontece numa enciclopédia chinesa) como espaço mítico, “solene”, antagônico ao nosso. Naquele espaço, é sempre possível nomear, falar, pensar por meio de outras formas de sistematização. Foucault cita a escrita chinesa como exemplo, já que esta prática cultural “... não reproduz em linhas horizontais o vôo fugidio da voz... “ (p. 9).

18 – Ou seja: o ideograma chinês permite que a leitura seja feita de forma simultânea. Com base nesta constatação, Foucault contradiz Saussure e sua crença na noção de linearidade.

19 – Para o filósofo francês, toda experiência, toda similitude, cada distinção resulta “de uma operação precisa e da aplicação de um critério prévio.” Conclusão: “um sistema de elementos é indispensável para o estabelecimento da mais simples ordem.”

20 – A “arqueologia” proposta por Foucault visita o “espaço geral do saber”. Busca a definição de “... sistemas de simultaneidade” e as “mutações necessárias” “para circunscrever o limiar de uma positividade nova.” (p. 12).

21 – Em Borges: uma poética da leitura, Emir Monegal afirma: “Foucault ... aponta para o centro da escritura borgiana: uma empresa literária que se baseia na “total” destruição da literatura e que, por sua vez, paradoxalmente, instaura uma nova literatura; uma “écriture” que se volta para si mesma para recriar, com suas próprias cinzas, uma nova maneira de escrever; uma fênix, oh, não muito freqüente.” (p. 44).


BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Rolando. Rolando Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla perrone moisés. São Paulo, Cultrix.

FOUCAULT, Michel. “Prefácio” in As Palavras e as Coisas. Trad. Selma Tannus Muchail. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

RODRIGUES MONEGAL, Emir. “A heterotopia borgiana” in Borges: uma poética da leitura. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1980.

SOUZA, Ilza Matias de. “Figuras e cenas brasileiras” in Figuras e cenas brasileiras: leituras semióticas de papéis Higiênicos (Dissertação de Mestrado).

terça-feira, 16 de março de 2010

Machado

Quando retornou daquele espanto
era um dicionário de sensações.
Trazia uma aflição consolada
pela leitura da lua sem quarto
minguante no contato viril

Sem nome para o que sentia,
aceitou, num gesto, a predição.
Entre convicto e verdadeiro ora,
apostou na gerção do sublime
que lhe pareceu bem mais útil.

Com a alma metida em si,
não ousou palavras. Muda,
entre ruínas no chão ao lado,
uma flor deslocada e sã,
não o deixava mentir.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Do Título



Segunda versão do prefácio do livro Ceia das Cinzas, coletânea de poemas de Eli Celso, Iracema Macedo e André Vesne. Natal, Boágua, 1998.




da Ceia



Ceia das Cinzas. Comecei a participar desta ceia desde que ouvi pela primeira vez o seu nome. Teria tido essa audição em Teresópolis, na companhia do poeta Eli Celso? Pensei na viabilidade de lê-lo – o título Ceia das Cinzas – pela lente dos discursos míticos, das narrativas poéticas, das histórias das culturas, dos saberes.

Ceia das Cinzas insere-se na tradição literária do Ocidente. Os vocábulos desse título fazem parte do arquivo histórico e estético de signos, formas e linguagens construtoras da nossa historiografia poética. Lembra A Cinza das Horas, o primeiro livro de Manuel Bandeira, publicado em 1917. Ceia das Cinzas remete a um verso de Mallarmé: “o bosque tinge-se de ouro e cinza”. Remete também a versos de Ledo Ivo: “... a cinza sonha / ...ser o dia/ condensado nas pétalas”. Cinzas trazem de volta o fogo criador de Clarice Lispector, e a sua consciência fruitiva de que, ao escrever, o sujeito renasce delas – as cinzas.

Bandeira, Mallarmé, Ledo, Clarice. Autores que inscrevem textos e traços da tradição literária. Tradição devorada, ceada na contemporaneidade. O poeta contemporâneo sabe que, desde o Romantismo, o autor perdeu a aura / idéia de gênio herdada da tradição clássica. O poeta é testemunha de que as grandes narrativas fragmentaram-se. Ele sabe que os conceitos de verdade e realidade tornaram-se relativos (vide a virtualidade), passando a ser relidos a partir de uma estética formatada com base nas noções da simulação e do inacabado. Em sintonia com esse contexto de mutações, rupturas e cinzas, diz o poeta Manoel de Barros: “é dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas – e estar cego. Cego e torto e nutrido de cinzas”.

Este cinza nutre. Possui sabor. Saboreia-se neste livro uma memorial poética das cinzas que possui no mito da Fênix o seu “horizonte das ficções” ("Hierografia", Eli Celso). Parafraseando Bachelard (na natureza “tudo o que corre é criminoso”), poderíamos dizer que, na cultura contemporânea, tudo o que move é vital. Essa vitalidade pode ser aferida na capacidade de mutação e renascimento, lingüísticos e culturais, observada em diferentes idiomas e culturas. Pensemos, por exemplo, na Língua Latina – idioma hoje em cinzas – e o seu percurso estético e histórico da região do Lácio até os mares lusitanos...

Neste contexto mutante e cultural, a ceia é ação; a cinza, matéria. Lemos, assim, o poeta e a sua proposta mais radical: acionar o desejo gerador do texto, através dos verbos reler e rememorar – ações vitais para a re-construção da linguagem poética.


das Cinzas


Entre os Maias, a cinza tem função mágica, ligada à imaginação e ao eterno retorno. Misturar sementes de milho às cinzas, imunizando-as contra a putrefação, além de construir cruzes de cinzas para defender os seus milharais, são gestos daqueles povos latinos. Os colombianos são mais cênicos e inusitados: chamam chuvas espalhando cinzas do alto das montanhas. Bonito, esse gesto de chamar chuva.

Todos nós sabemos, a consciência humana da nossa condição-cinza é explicitada na Bíblia, em primeiro pessoa. No livro do Gênesis 18, 27 lemos: “Eu, poeira e cinza, atrevo-me a falar do meu Senhor.” Cônscia dessa condição, a poeta Iracema Macedo estetiza a mulher que, entornada ao barro, vibra no verso que indaga: “Que queres na tua janela de vidro/ com o teu corpo de cinzas?” (“Canção de amor para uma moça judia”). È imperativo lembrar que, na tradição judaico-cristã, a cinza é utilizada em certos ritos, sendo a ressurreição simbolizada pela cor cinza.

Eterna vizinha da brasa que é mãe e filha do fogo, cinza surge na ceia das cores como gris (cinzenta), sendo composta, em partes iguais, das cores branco e preto. Se o branco e o preto são, respectivamente, presença e negação de todas as cores, o cinza pode ser vista como uma cor una. Como visibilidade que unifica. Cinza lido como diálogo óptico que se dá no envolvimento das duas cores.

A universalidade das cores que compõem o cinza diz de um ser metaforizado pela própria cinza diária que o seu corpo tece. Essa metaforização pode ser aferida nas “labaredas/ queimando céus de um insuspeito azul”, que aquecem o poema “O mergulhador que deixou seus pulmões na superfície”, de André Vesne. O espaço no qual atua esse corpo é composto de cores variadas. Isso é visível no poema de Eli Celso, onde as cores que compõem o cinza matizam “Uma estrada de coisas mortas” na qual o outro convida, atalha e o estranhamento produz: “Ela me convidou a um pequeno apocalipse/ e atalhou caminho por mundos estranhíssimos”.


Essa universalidade das cores diz também de um tempo no qual os homens cantam “o sol desta manhã tão cinza”, e mulheres ardem dizendo assim: “a brasa que nos resume é muito mais ligeira” (“A casa”, Iracema Macedo). De ouvido atento a essas vozes, o que dizer de uma tela imaginária na qual as brasas estão acesas, brasas avermelhadas por entre mares de cinzas? Qual o nome desse olhar que lê e imagina brasa? Como chamar este olhar que a essa tela lê e discerne por entre o pó as brasas de la pasion?


do fogo poético


Ceia das Cinzas nos remete a Fênix, o ser mítico de dupla fábula: pássaro que arde em fogo próprio e ente que renasce das próprias cinzas. Simbologia do tempo circular e do eterno retorno (Borges e Nietzsche). Pássaro eterno como o fogo. Fogo poético roubado por Prometeu: “Eu libertei os homens da obsessão da morte... eu lhes presenteei o fogo... dele, eles aprenderão artes sem numero” (Ésquilo, Prometeu).

E o que faz o homem com o fogo que rouba dos deuses? Conscientes de sua condição de simulacro (Deleuze) perante a imagem divina, os poetas sabem que não salvam. Mas esses poetas nos convidam a cear. Há vários sabores nesta ceia. Ceia das cinzas de crianças devoradas pela mitologia potiguar adubam “A lenda da viúva Machado”, poema de Iracema Macedo. Nesta mesma ceia, uma poética memorialística inscreve-se no poema “O globo líquido”, de Eli Celso, cujas ruínas abissais de “babilônicas e babéis” anunciam que “a memória se arranja/ em alvéolos de barro”; enquanto os fragmentos das Lições de Trevas centelham, demonstrando que a palavra “se presta a vários encantamentos” (“Os jogos amorosos”, André Vesne).

Os poetas e leitores participantes desta ceia celebram sons e saboreiam novos sentidos, como em “Chove sobre a cidade”, de André Vesne. Junto com o poeta e professor Eli Celso, os participantes da ceia devoram ícones (“Angústia de Frida Khalo” e “O clitóris da história”), e flagram o verbo no seu passeio pelo imaginário (“Ancestral”, Iracema Macedo). Os 3 poetas convidam o leitor a degustar a linguagem do fogo. Linguagem do fogo eterno da poesia. Convidam o leitor a, como eles, também queimar neste fogo poético. Convidam para re-ler o idioma do pó e traduzir a sintaxe das cinzas, inscrevendo – na pele e na página – a perene memória da língua.

No cardápio destes poetas, destacam-se os textos cujo teor poético vem nos nutrindo desde as publicações de duas coletâneas: Vale Feliz (1991) e Gravuras (1995). Prometeus ladrões do fogo poético da tradição, a trindade (Eli, Iracema e André) arde, abrasa, cinza. Provemos deste fogo – da língua, da arte, da paixão – senhores leitores: nas próximas páginas é posta a ceia.

domingo, 7 de março de 2010

Letras e coisas que voam

Rosto batido de tantos ventos
a despeito de muitos mares
navegados, sua prosa pede pele,
íris e quase nenhum enfeite

Escrita com os olhos, sua frase
recusa os brincos que o céu
faz chover sobre a noite
de brisa em tempo quente

Para exilar a tristeza de se saber
sem voo, escreve os objetos
da rua e as coisas que vira
num quarto de hotel em Ouro

sábado, 6 de março de 2010

E o romance do final do século XX?



Uma versão deste texto foi publicada em O Jornal de Hoje, Natal-RN, 19 /10/ 1999



Aconteceu na sala de aula. Aconteceu mais de uma vez. Em meio a uma aula do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura, na UFRJ, o professor encara a turma e indaga: quem se destaca na prosa brasileira da década de sessenta para cá?

Uma certa insatisfação compõe o silêncio que se instala na sala. Há risos incômodos e palavras silenciadas de alguns de nós; principalmente por parte daqueles que escrevemos dissertação de mestrado sobre autores brasileiros, como Lígia Fagundes Telles ou Ana Cristina Cesar, por exemplo.

As garotas que tiveram as tragédias de Nelson Rodrigues e os diários de Lúcio Cardoso como objetos de estudo, abrem um sorriso de uma orelha a outra. Por questão contextual e mesmo de consenso, os seus objetos de estudo estão a salvo da indagação. Quem, durante o Curso de Mestrado, aventurou-se além das letras nacionais e viajou pela Grécia de Kavafis ou pela Argélia de Camus, parece sentir-se menos responsável pela resposta à pergunta do professor.

Alunos bem intencionados sugerem Rubem Fonseca e Hilda Hilst como autores representativos da prosa brasileira na década de sessenta. De pronto o professor pronuncia-se: nenhum deles. Sinto vontade de perguntar: nenhum dos textos desses dois autores embarcariam na sua arca no dia do dilúvio? Uma pesquisadora de literatura contemporânea “arrisca” o nome da escritora Patrícia Melo. Discípula de Rubem Fonseca, a autora de O Matador (1995) é um dos nomes cultuados pela vertente pós-moderna da academia. Mas o professor desconhece a escrita da moça que também escreve roteiros cinematográficos. O seu desconhecimento ganha adesão de um outro aluno, cujo argumento possibilita ao mestre elaborar o seguinte raciocínio: “... não me interesso por entender o imaginário dos delegados de polícia”.

A questão do critério de valor é realmente ambígua, aberta. Uma questão que gera querelas infindas. Produz violência. Isso é visível na fala de uma outra professora do referido curso da UFRJ. Na sua arca não viajaria o romancista João Gilberto Noll e os seus 7 livros – escritos de 1980 até hoje – devidamente traduzidos para o inglês. Motivo? “Noll é um autor menor” – diz a referida pesquisadora. Esse tipo de assertiva tem geralmente os autores clássicos e canônicos como parâmetro; possui na Poética de Aristóteles, escrita na Antiguidade clássica, a sua fundamentação em torno da problemática das formas e dos gêneros. Trata-se, portanto, de um ajuizamento que tem como leme uma arte normativa – forma desvinculada das poéticas modernas centradas muito mais nas noções de deslocamento e mutação.

O aluno que agora escreve sente-se provocado pela indagação do professor e tenta inscrever as suas senhas. Cito Raduan Nassar (Lavoura Arcaica e Um copo de cólera) e Paulo Leminski (Catatau, Agora é que são elas e Metaformose). Apenas a primeira senha é aceita. Apesar disso, o professor deixa claro que gostava muito do poeta de Curitiba. Gostava do Leminski como pessoa. Mas aqui no jornal onde escrevo, assim como na sala de aula, o que conta é o autor e a sua obra. Conta principalmente a dificuldade de criação na prosa brasileira, após as produções monumentais e de ruptura de Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Benjamin: voz quase ficcional

Essa dificuldade criativa perpassa o atual debate crítico e acadêmico. Não é por acaso que o crítico Davi Arrigucci Jr, professor da USP, lançou em 1999 o seguinte desafio através do Jornal do Brasil: “Qualquer escritor que se pretenda como tal, deve pensar nisso: como dar forma a essa coisa viva que é a substância histórica?” Noutras palavras: “a literatura brasileira está a espera de um escritor que dê conta dessa coisa viva que é a substância histórica”, ratifica o referido jornal elucidando a fala de Arrigucci.

Em sua entrevista, o autor de Humildade, Paixão e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, diz do ensaio como obra de arte e o compara a outros gêneros. Diz ele: “vejo o ensaio como obra de arte não diferente dos demais gêneros como o romance e o poema”. Ao referir-se ao ensaio dessa forma, Arrigucci revela a sua visão moderna de crítico e ensaísta. Ele lê na ruptura de gêneros miríades de formas de re-ler e construir o texto. Essa releitura sugere a possibilidade de registrar, na escrita ensaística, uma percepção do sensível buscando traduzir uma tonalidade que brota da faculdade da imaginação.

Ao expor essa leitura do gênero ensaístico, o autor refere-se a uma tradição de escrita que possui em Montaigne a sua gênese, e na qual se insere autores representativos como, dentre outros, Barthes e Benjamin... Autores de cujas páginas são audíveis ecos de um certo tom romanesco। Barthes utiliza o seu ensaio para, dentre outros objetivos, “psicanalizar” o imaginário do discurso, os mitos modernos e as formas da escrita. Na construção do seu texto, ele dialoga com os materiais do desejo, vinculando-se principalmente ao tempo presente. O autor anota o presente. Prepara o texto do tempo presente. Em alguns dos seus livros, é audível o tom romanesco de Barthes. Por isso que a sua escrita aciona no leitor os ritmos do seu tempo, e às vezes lemos o seu ensaio como se fora um romance. Segundo o autor de A preparação do romance, esta forma literária consiste numa ”prática para lutar contra a secura do coração”. Essa “luta” é notória principalmente nos últimos textos do autor.

Já a prosa ensaística de Benjamin é repleta de palavras e ecos da tradição, do passado. Essas palavras e ecos são lidos no tempo presente sem susto nem censura. O escritor é atento aos fatos do seu tempo. Ao penetrar no coração das obras, das coisas e das mercadorias, o autor de Rua de Mão Única escreve uma história repleta de elementos românticos, na qual aquela “substância histórica” de que fala Arrigucci está presente. Sua narrativa histórica é repleta de “pequenas catástrofes” e de “avisos de incêndios” causados pos elementos políticos, culturais, teológicos. Por pura sintonia estética, o escritor João Gilberto Noll aparece nesta mesma edição do JB de 1999, respondendo a pergunta “O que eles estão lendo.” O autor gaúcho diz estar lendo “muito Walter Benjamin”.

Confirmando a assertiva de Arrigucci ao comparar o ensaio ao romance, Noll diz que Benjamin “substitui um certo tipo de romance que anda meio escasso”. Além de atestar essa substituição textual, Noll ressalta no autor das Passagens uma voz “quase” “ficcional”. Exímia leitura, essa que consegue ouvir um certo tom romanesco que emana da letra benjaminiana, em meio a tanta letra sem eco, sem trabalho com a linguagem. Em seu último romance, A céu aberto (1996), o autor elabora narradores múltiplos, cuja tonalidade anuncia deslocamentos constantes, e nos ajuda a ler e construir o imaginário do nosso tempo. No desejo de inscrever as identidades mutantes e contraditórias desses narradores, Noll os situa num “campo de batalha” onde são confrontadas as questões estéticas e culturais componentes das identidades contemporâneas.


Tradutores de formas e subjetividades contemporâneas


Além de Noll e dos demais autores acima mencionados, escritores como Rubens Figueiredo, Bernardo Carvalho, Milton Hautoum e Silviano Santiago, dentre outros, continuam produzindo prosa. Poucos deles possuem o aval do público, da academia ou da mídia. Mas é muito importante o registro das marcas culturais e históricas dessa produção. Quem sabe, no futuro, alguns deles sejam tradutores das formas literárias utilizadas para pensar as questões estéticas e culturais do final do século XX. Quem sabe as suas práticas textuais possam traduzir as subjetividades individuais e coletivas inscritas no cotidiano – nas aulas, na crítica, na academia – deste milênio que se anuncia.

Afinal, Kafka não se tornou canônico logo que os seus primeiros escritos foram publicados. Sousândrade esperou mais de um século para ser lido. E Guimarães Rosa, vejam só, não foi de início muito bem recepcionado pelo celebrado autor de Vidas Secas. Ou seja: demorou muito para que fosse possível “uma rosa de Guimarães/ nos ramos de Graciliano.” (Paulo Leminski).

segunda-feira, 1 de março de 2010

O signo literário da prosa brasileira


Texto publicado em O Jornal de Hoje, Natal-RN, 1998


Sob o signo de câncer (água dá luz), nasceu a dupla de prosadores mais representativos de nossa historiografia literária: o carioca Machado de Assis (21/07/1839) e o mineiro Guimarães Rosa (27/06/1908).

Sincronia astrológica e literária, o autor mineiro nasceu no mesmo ano no qual o romancista carioca morreu, aos 69 anos. Fundador da ABL – Academia Brasileira de Letras, Machado construiu uma obra que transcende os limites dos gêneros literários e os demarcados estilos de época. Arquitetou personagens com a sutileza e a ironia de quem não se contenta com a descrição do real. Fez das discórdias históricas e diferenças culturais as matérias de suas narrativas, transformando “a linguagem da realidade em realidade da linguagem” (João Alexandre Barbosa). De posse do nosso instinto de nacionalidade, ele sabia que o Brasil precisava construir uma identidade lingüística e cultural.

Rosa não deixou por menos: radicalizou na ruptura dos gêneros e na revitalização do idioma. Elaborou um prosa experimental que, ultrapassando o referente do sertão, alcança alto teor poético e amplia as dimensões estética e existencial do sertanejo. Calcado nas tradições literária, mítica e filosófica, o seu texto transcende o espaço da denotação e produz uma poética do imaginário sertanejo, tendo principalmente a oralidade por base, atentando para os diferentes tons e timbres da fala do sertão. De posse dos roteiros sertanejos traçados por Euclides da Cunha, ele recria o homem e o seu espaço geográfico, a partir da imagem da linguagem falada por esse homem. E não a partir da imagem física de quem fala.

Alguns procedimentos literários são comuns aos textos produzidos por ambos os autores. A produção literária e cultural de Machado de Assis antecipa, principalmente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (18881), alguns dos procedimentos que irão nortear as principais poéticas da modernidade. Em ambos os autores, portanto, a modernidade e suas idéias de deslocamento e ruptura são signos da maior relevância. Tanto em Machado como em Rosa, a fragmentação e corte caracterizam um texto que, em sintonia com os procedimentos de outras artes (o cinema, por exemplo) rompe com a linearidade da narrativa. Essa ruptura sugere ao leitor outras possibilidades de leituras a partir das novas dimensões de tempos e espaços sugeridas por esses cortes e fragmentos.

A evocação de leituras, o uso de citações, trechos de canções, a reciclagem dos provérbios e ditos populares atestam os intertextos produzidos por Rosa e Machado. Mas são a consciência da importância do leitor e o processo da metalinguagem dois procedimentos que muito aproximam esses autores. O dialogismo estabelecido na ação da leitura (e a preocupação com quem lê), mais a tentativa de explicar a construção do texto dentro da própria narrativa são procedimentos estéticos visíveis tanto em obras como Memórias Póstumas... (1881) e Quincas Borba (1891), assim como em livros como Grande Sertão: Veredas (1956) e Tutaméia (1967).

Drummond lê Machado e Rosa

De volta ao plano astrológico, outra sintonia temporal remete à dupla de escritores: somente na maturidade ambos publicam os seus primeiros livros. Essa lição da maturação textual é bastante útil em nosso tempo, quando grande parte dos jovens autores demonstra excesso de pressa e falta de ritmo na publicação dos seus primeiros textos. Machado, que publicara vários contos, poemas e textos teatrais durante a década de 60 do século XIX, publicou em 1871 o seu romance de estréia – Ressureição –quando contava 33 anos de idade.

Rosa não se lançou mais jovem: os contos de Sagarana só vieram a público em 1946, quando o autor somava 38 anos। Grande Sertão..., o seu primeiro e único romance, só seria lançado dez anos depois. Além de outros textos, Machado legou-nos 9 romances; Rosa, 5 livros de contos e o referido romance. Leitor de ambos, o poeta Carlos Drummond escreveu sobre eles. Do “bruxo” do Cosme Velho que cedia às inquietações e leituras do seu tempo, disse o poeta: “Outros leram da vida um capítulo, tu lestes o livro inteiro”. Acerca do Rosa conterrâneo, diz o mineiro de Rosa do Povo: “Ficamos sem saber o que era João e se ele existiu de se pegar”.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Agora um salto

Com a alma azul de sempre,
continuava a ser de todos
os tempos, vãos e climas.
Ironia acesa nas retinas,

vira andorinha dispersa
num farfalhar de gestos
e pensou: agora um salto.
Do pé no chão brotou

um temperamento oposto
às ideias urtigas: glória
é amaciar agruras e arar
brotos de outra verdura

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Romance

Espécie de deus avulso
e contraditório, o acaso
requer alguma graça e frase
sutil por concluir: ora veja...

Duplicado, mel nos alicerces
repostos, ungido fui por este
Deus de pouca quilometragem
que transita em três tempos

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Esaú e Jacó

Como um segredo cansado
de sua mudez, bebeu a luz
da manhã e narinas abriu
ao pasto aberto sob o sol.
Vexado de tanta luz, bradei:

Tabuadas da minha infância
ai, Cartilhas, dai-me o gosto
de cobrir feras e descobrir,
a título de novos ares e elos,
Lili e o Lobo entre Letras.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Destino do Inacabado

Sempre verdíssimas
estas montanhas mineiras.
Folheio-me nelas ao som
de riachinhos que narram
sempre às mesmas margens.

Sem a pressa de quem
cedo nomeia, sem pose
e leitor da bula brutal
da paixão, cedo, ativo,
aos ritmos do meu tempo.

No silêncio do vale
escrevo versos às coisas.
Comigo acostumadas, elas
movem e ditam o destino
do inacabado: a criação