quarta-feira, 10 de março de 2010

Do Título



Segunda versão do prefácio do livro Ceia das Cinzas, coletânea de poemas de Eli Celso, Iracema Macedo e André Vesne. Natal, Boágua, 1998.




da Ceia



Ceia das Cinzas. Comecei a participar desta ceia desde que ouvi pela primeira vez o seu nome. Teria tido essa audição em Teresópolis, na companhia do poeta Eli Celso? Pensei na viabilidade de lê-lo – o título Ceia das Cinzas – pela lente dos discursos míticos, das narrativas poéticas, das histórias das culturas, dos saberes.

Ceia das Cinzas insere-se na tradição literária do Ocidente. Os vocábulos desse título fazem parte do arquivo histórico e estético de signos, formas e linguagens construtoras da nossa historiografia poética. Lembra A Cinza das Horas, o primeiro livro de Manuel Bandeira, publicado em 1917. Ceia das Cinzas remete a um verso de Mallarmé: “o bosque tinge-se de ouro e cinza”. Remete também a versos de Ledo Ivo: “... a cinza sonha / ...ser o dia/ condensado nas pétalas”. Cinzas trazem de volta o fogo criador de Clarice Lispector, e a sua consciência fruitiva de que, ao escrever, o sujeito renasce delas – as cinzas.

Bandeira, Mallarmé, Ledo, Clarice. Autores que inscrevem textos e traços da tradição literária. Tradição devorada, ceada na contemporaneidade. O poeta contemporâneo sabe que, desde o Romantismo, o autor perdeu a aura / idéia de gênio herdada da tradição clássica. O poeta é testemunha de que as grandes narrativas fragmentaram-se. Ele sabe que os conceitos de verdade e realidade tornaram-se relativos (vide a virtualidade), passando a ser relidos a partir de uma estética formatada com base nas noções da simulação e do inacabado. Em sintonia com esse contexto de mutações, rupturas e cinzas, diz o poeta Manoel de Barros: “é dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas – e estar cego. Cego e torto e nutrido de cinzas”.

Este cinza nutre. Possui sabor. Saboreia-se neste livro uma memorial poética das cinzas que possui no mito da Fênix o seu “horizonte das ficções” ("Hierografia", Eli Celso). Parafraseando Bachelard (na natureza “tudo o que corre é criminoso”), poderíamos dizer que, na cultura contemporânea, tudo o que move é vital. Essa vitalidade pode ser aferida na capacidade de mutação e renascimento, lingüísticos e culturais, observada em diferentes idiomas e culturas. Pensemos, por exemplo, na Língua Latina – idioma hoje em cinzas – e o seu percurso estético e histórico da região do Lácio até os mares lusitanos...

Neste contexto mutante e cultural, a ceia é ação; a cinza, matéria. Lemos, assim, o poeta e a sua proposta mais radical: acionar o desejo gerador do texto, através dos verbos reler e rememorar – ações vitais para a re-construção da linguagem poética.


das Cinzas


Entre os Maias, a cinza tem função mágica, ligada à imaginação e ao eterno retorno. Misturar sementes de milho às cinzas, imunizando-as contra a putrefação, além de construir cruzes de cinzas para defender os seus milharais, são gestos daqueles povos latinos. Os colombianos são mais cênicos e inusitados: chamam chuvas espalhando cinzas do alto das montanhas. Bonito, esse gesto de chamar chuva.

Todos nós sabemos, a consciência humana da nossa condição-cinza é explicitada na Bíblia, em primeiro pessoa. No livro do Gênesis 18, 27 lemos: “Eu, poeira e cinza, atrevo-me a falar do meu Senhor.” Cônscia dessa condição, a poeta Iracema Macedo estetiza a mulher que, entornada ao barro, vibra no verso que indaga: “Que queres na tua janela de vidro/ com o teu corpo de cinzas?” (“Canção de amor para uma moça judia”). È imperativo lembrar que, na tradição judaico-cristã, a cinza é utilizada em certos ritos, sendo a ressurreição simbolizada pela cor cinza.

Eterna vizinha da brasa que é mãe e filha do fogo, cinza surge na ceia das cores como gris (cinzenta), sendo composta, em partes iguais, das cores branco e preto. Se o branco e o preto são, respectivamente, presença e negação de todas as cores, o cinza pode ser vista como uma cor una. Como visibilidade que unifica. Cinza lido como diálogo óptico que se dá no envolvimento das duas cores.

A universalidade das cores que compõem o cinza diz de um ser metaforizado pela própria cinza diária que o seu corpo tece. Essa metaforização pode ser aferida nas “labaredas/ queimando céus de um insuspeito azul”, que aquecem o poema “O mergulhador que deixou seus pulmões na superfície”, de André Vesne. O espaço no qual atua esse corpo é composto de cores variadas. Isso é visível no poema de Eli Celso, onde as cores que compõem o cinza matizam “Uma estrada de coisas mortas” na qual o outro convida, atalha e o estranhamento produz: “Ela me convidou a um pequeno apocalipse/ e atalhou caminho por mundos estranhíssimos”.


Essa universalidade das cores diz também de um tempo no qual os homens cantam “o sol desta manhã tão cinza”, e mulheres ardem dizendo assim: “a brasa que nos resume é muito mais ligeira” (“A casa”, Iracema Macedo). De ouvido atento a essas vozes, o que dizer de uma tela imaginária na qual as brasas estão acesas, brasas avermelhadas por entre mares de cinzas? Qual o nome desse olhar que lê e imagina brasa? Como chamar este olhar que a essa tela lê e discerne por entre o pó as brasas de la pasion?


do fogo poético


Ceia das Cinzas nos remete a Fênix, o ser mítico de dupla fábula: pássaro que arde em fogo próprio e ente que renasce das próprias cinzas. Simbologia do tempo circular e do eterno retorno (Borges e Nietzsche). Pássaro eterno como o fogo. Fogo poético roubado por Prometeu: “Eu libertei os homens da obsessão da morte... eu lhes presenteei o fogo... dele, eles aprenderão artes sem numero” (Ésquilo, Prometeu).

E o que faz o homem com o fogo que rouba dos deuses? Conscientes de sua condição de simulacro (Deleuze) perante a imagem divina, os poetas sabem que não salvam. Mas esses poetas nos convidam a cear. Há vários sabores nesta ceia. Ceia das cinzas de crianças devoradas pela mitologia potiguar adubam “A lenda da viúva Machado”, poema de Iracema Macedo. Nesta mesma ceia, uma poética memorialística inscreve-se no poema “O globo líquido”, de Eli Celso, cujas ruínas abissais de “babilônicas e babéis” anunciam que “a memória se arranja/ em alvéolos de barro”; enquanto os fragmentos das Lições de Trevas centelham, demonstrando que a palavra “se presta a vários encantamentos” (“Os jogos amorosos”, André Vesne).

Os poetas e leitores participantes desta ceia celebram sons e saboreiam novos sentidos, como em “Chove sobre a cidade”, de André Vesne. Junto com o poeta e professor Eli Celso, os participantes da ceia devoram ícones (“Angústia de Frida Khalo” e “O clitóris da história”), e flagram o verbo no seu passeio pelo imaginário (“Ancestral”, Iracema Macedo). Os 3 poetas convidam o leitor a degustar a linguagem do fogo. Linguagem do fogo eterno da poesia. Convidam o leitor a, como eles, também queimar neste fogo poético. Convidam para re-ler o idioma do pó e traduzir a sintaxe das cinzas, inscrevendo – na pele e na página – a perene memória da língua.

No cardápio destes poetas, destacam-se os textos cujo teor poético vem nos nutrindo desde as publicações de duas coletâneas: Vale Feliz (1991) e Gravuras (1995). Prometeus ladrões do fogo poético da tradição, a trindade (Eli, Iracema e André) arde, abrasa, cinza. Provemos deste fogo – da língua, da arte, da paixão – senhores leitores: nas próximas páginas é posta a ceia.