sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Sertão, deserto – travessias


Gilberto Freyre diz, no livro póstumo De Menino a Homem (2010), que as palavras sertão e deserto possuem extrema relação. Tratando da origem da palavra, Freyre diz que “Sertão era aumentativo de deserto” . Essa assertiva remete às figurações de sertanejos que viviam em lugares distantes. Viviam longe da civilização. Pessoas que moravam no ermo. Pessoas “do sertão”, “de sertão”, daí o deserto ampliado – Desertão.

O sertão está em toda parte – anuncia Riobaldo em Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. O sertão é o mundo. No sertão do serrado brasileiro brota uma das anedotas políticas mais ricas em torno do presidente JK. Conta-se que Juscelino convidou as imprensas nacional e estrangeira para conhecerem o solo no qual seria erigida a futura capital do Brasil. Um mar do jornalistas e fotógrafos adentrou o serrado, atendendo ao convite do então presidente. Os profissionais da mídia cercavam Sua Excelência, quando uma jornalista francesa indagou a ele se não era um absurdo construir uma cidade em pleno deserto. Ao que Juscelino respondeu: “Absurdo, minha jovem, é o deserto”.

O deserto é absurdo? O que fica claro nessa assertiva de JK é a necessidade que temos, como sujeitos modernos em constantes deslocamentos, de enfrentarmos o deserto e suas fronteiras. Fronteiras que também se deslocam. Fica claro nessa assertiva presidencial, o desejo de “amar” o “deserto e seus temores” .
.
Na anedota de JK, fica nítida a importância de lermos as figurações do deserto – os seus vazios, as suas faltas, as suas senhas e areias de superfícies. Os sinais do deserto. Dobras. Curvas e retas. O deserto como origem e fim da travessia. O deserto, suas repetições. O deserto mais o cansaço da terra. O deserto e os homens. O nômade e sua travessia infinda pelo deserto e seus silêncios. “O silêncio do deserto também é visual”, diz Baudrillard. Sua leitura atenta para os planos silenciosos do deserto onde brotam a palavra e a imagem.

Espaço plano de onde brotam imaginação e pensamento em travessias infindas, labirínticas, o deserto deseja ser lido. Lido como crítica e metáfora da cultura contemporânea. Essa leitura crítica e metafórica permite entendermos a nossa condição finita e vazia num mundo no qual as idéias de superfícies e deslocamento deletam os roteiros da profundidade e da fundamentação.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Arquivo de Formas da Tradição



Esteticamente rentáveis, o ciúme e a traição são “personagens” de inúmeros tomos da literatura universal. Independente de classe ou contexto ideológico, esses sentimentos arranham feito farpa e produzem narrativas de finais infelizes que são uma beleza.

Primeiro romance do poeta, professor e ensaísta Marco Lucchesi, O Dom do Crime (Record, 2010) põe em cena um narrador que possui nas “estações do ciúme” e no crime as suas armas. Há no Posfácio a “história de uma traição”. O arsenal do autor é ampliado pela presença do escritor Machado de Assis e do Rio de Janeiro transformados em “personagens”. Esse é um dos procedimentos mais produtivos e contemporâneos de Marco como romancista. Ele trata da mesma forma os fatos e discursos do escritor Machado e Carolina, sua esposa, ou as falas fictícias de Bentinho e Capitu, os personagens de Dom Casmurro (“Brás Cubas fez discípulos”). A esse quarteto, Marco acrescenta um casal gerador do ciúme e do crime: José Mariano e Helena Augusta.

Para re-construir as linguagens desses seis personagens, Marco lê o espaço da Capital Federal e suas águas (“A História terá olhos marítimos”), e empreende um dialogismo oblíquo e nada dissimulado em torno da bio-biografia do Bruxo do Cosme Velho. Essas releituras potencializam a trama do texto, multiplicando-se num intertexto com vários personagens literários e inúmeras figuras históricas da arte e da cultura produzidas no Brasil no início do século XX.

Formas e Linguagens da Cultura Brasileira

Ler O Dom... de Marco é dialogar com o que a nossa historiografia inscreveu de mais produtivo. Ecos, falas e citações de poetas, narradores e personagens da nossa tradição literária e cultural sedimentam a polifonia do seu romance. Nele ouvimos Dom Pedro, Silvio Romero, Monte Alverne, José de Alencar, Visconde de Tauney, Laurindo Rabelo, Joaquim Manoel de Macedo, o Marques de Maricá, Aluísio de Azevedo, Francisco Otaviano e, dentre outros, a escritora potiguar Nisia Floresta.

No Brasil, este contexto do final do século XIX e início do século XX é bastante produtivo para quem cria. Principalmente para quem pesquisa e escreve. A jornalista Anna Lee lançou, em 2006, O Sorriso da Sociedade, narrando as intrigas e os crimes do universo estético da nossa belle époque tropical. A idéia da autora é maravilhosa; o seu repertório é bom. Mas faz falta no seu texto um melhor encadeamento dos fatos. Sabemos que, na narrativa, quem dá o tom é a voz que narra. Falta nO Sorriso... um trabalho de linguagem em torno do tom romanesco.

Relendo semelhante contexto histórico e estético, e dialogando com alguns personagens presentes no livro de Anna, Marco ostenta a sua reconhecida erudição e produz uma tonalidade contemporânea, ao encadear os fatos e as linguagens daquele contexto do 1900 às ações da sua narrativa. Através dessa tonalidade, o autor inscreve, por meio de uma depurada poética da leitura, as linguagens da tradição.

Como o Conselheiro Aires que transita pelos dois ultimos romances de Machado – Esaú e Jacó e Memorial de Aires –, o narrador de O Dom do Crime parece não ter muita vocação para o casamento, adorar visitas e viver “à sombra das estantes”. Cúmplice com o leitor, ele dá a senha do romance, referindo-se às “obras anfíbias... entre a ficção e a realidade”. Neste diálogo que tece entre narrativa e história, a voz romanesca de Marco Lucchesi inscreve-se ao reler o Arquivo de Formas da nossa Tradição literária. Tomara que ele já esteja pensando no seu próximo romance.