segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Às curvas da estrada e da sola do pé



Embora tenha viajado por mares dantes, nunca ouviu chuva com a entrega de quem assiste missa. Também não pisa o limite de quem urra na cama ou num show.

Sabe que a antiga pitonisa continua solta dando senhas: são as pernas andróginas de Orlando e Dorian. Mas sempre do outro lado.

Como garçom, curte sola. Anuncia sempre um novo prato. Traz a inquietude de bandeja e repete falando sério: é bem melhor você parar com essas coisas. O sambódromo treme. O sertão inunda. Riobaldo acorda. Cansado de pactos nas veredas mortas, sussurra de amparo, aperta os dedos no pau da canoa e faz acordos que é uma beleza.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Tua presença faz a vida me acertar







Após a travessia de túneis escuros, declamo de cor o primeiro verso do “Ulisses” de Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”. Só quem atravessou túneis, adros, pontes, passadiços... sabe desta matéria concreta. Matéria da qual são feitos os sonhos e construídos mitos. Sei dos esquemas capitais e do cargo que atualmente assumes na prefeitura. Como amante de fluxos e movências, te ocupas com a decapitação de monstros que atanazam os munícipes e com o investimento na produção de teus filhos e eleitores, correto?

Prossigo com alma lavada. Lavada na chuva sobre o telhado da casa de campo. A imagem irriga em ti amores idos. Uma mulher reluz numa pegada pós-chuva. Pegada que você narra com as garras de quem apaga a luz para que a lanterna brilhe azulando a escuridão da sala e o pau quebre.

Bebo no brilho da lanterna deste olhar que tenta petrificar o instante. Os versos às vezes ardem, sei. Zunem no canteiro noturno. Procuram pouso. Versos abrem estradas. Dançam na noite da floresta negra. Letras dizem para eu plugar a boca no branco como cor que restaura a poça da vida. Mergulho no avesso desta pele. Vou fundo até ouvir o ronco que me conduz pela estrada noite adentro. A guia é toda tua. A mão que aperta, também. Desço pelo túnel escuro com trilha sonora de tua tosse. Não reclamo qualquer zunido; a tua presença faz a vida me acertar.

Sabes, por escrito, da “estima exponencial” – eu disse com todas as letras. Recuperando a memória afetiva, ordenas fragmentos de uma história repleta de cheiros, chás, suores, corpos em estado de sítio ou liquidação. Sob as bênçãos de Santa Libido, rogai por nós. Com a determinação de uma mancha que, lambida, vira signo. Assinatura corporal.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Cercado de Letras



Toda a literatura dos sobreviventes relata esse entorpecimento.
Bernhard Schlink, O Leitor


Amor, Analfabetismo, Auschwitz. Não necessariamente nessa ordem, são esses os principais ingredientes do filme O Leitor. Stephen Daldry, o diretor, demonstra habilidade no diálogo entre letras e telas desde As Horas, filme onde narra a vida da grande escritora inglesa Virgínia Wollf.

Baseado num livro do escritor alemão Bernhard Schlink, O leitor é uma história carregada de três ingredientes produtivos e perigosos: política, poesia e erotismo. A narrativa de Schlink é escrita numa linguagem clara e direta, numa forma linear, às vezes meio previsível. Mas essa história – repleta de visibilidade e incertezas, como a maioria das narrativas modernas – não é nada previsível.

A narrativa trata de um garoto de 15 anos. Ele conhece farpas e mel – do amor e dos fatos – ao envolver-se com uma mulher de 36 anos. Ela, uma ex-vigilante que encaminhava judeus para as câmaras de gás nos campos de concentração nazistas; ele, um jovem (futuro estudante de Direito) que lê Homero, Rilke, Cicero e Horácio, vivendo numa família cercada de Letras (seu pai é professor de Filosofia e sua irmã estuda Literatura).


Verdade e Lei


A ficção de Schlink se desenvolve numa Alemanha pós-guerra, na década de 40 do século XX. Esse contexto destroçado traduz-se, no filme, através de cores sóbrias sugerindo a melancolia que perpassa a maioria das imagens de Schlink. O contexto bélico, os sobreviventes e suas memórias são os referentes através dos quais as questões políticas e sociais se inscrevem.

Essas questões que remetem ao holocausto e ao entorpecimento aparecem principalmente no livro. São muitas as indagações que atravessam a narrativa: o que é o direito? Quais os papéis dos advogados e promotores numa sociedade pós-guerra? Quais os limites do “distanciamento profissional?” Como deve ser feita a leitura do nosso passado histórico? O que fazer com o medo, o entorpecimento e o horror que invadem “violentamente o cotidiano”? Enfim, a grande pergunta que atravessou todo o século XX e continua ecoando em nosso imaginário social: o que as gerações seguintes devem fazer “com as informações sobre as atrocidades dos extermínios dos Judeus?”


Entre os dois amantes rola sexo, leituras (Guerra e Paz) e uma infinda "batalha verbal". A tigresa Hanna tem um “corpo cheio de força e confiante”. Por isso, ela doa para o seu “filhote”-"menino"-“pedrinha” dois elementos raros na juventude: segurança e decisão. Em troca, Michael lê. Ele lê principalmente a nuca, as pernas, o corpo inteiro da amada. Lê também os livros em voz alta. Ao acionar o universo da leitura, o leitor atende aos pedidos dessa estranha funcionária do bonde, cujo passado bélico ele só conhecerá futuramente num tribunal público.

Quanto mais lê, mais ele se submete às ciladas dessa Lilith que se encontra no vigor da sua maturidade feminina. As brigas e os descompassos produzem mais intimidades. Mergulhos em águas turvas. Trevas e traças de uma história cujo futuro ninguém sabe, ninguém vê. Bombardeios de palavras e beijos. Cenas de sangue e poesia se alternam e aproximam o casal que grita de prazer enquanto trepa. Essa relação paradoxal e conflitante entre eles parece ser uma metonímia histórica das próprias relações políticas num país descompassado pela guerra.

Sem efeitos grandiloquentes nem ritmos alucinantes, O Leitor cria ritmos. É aquele tipo de filme que afeta a respiração de quem vê. Isso, por um motivo atroz demonstrado pela narrativa: aquele que narra e lê – belo, resignado, cheio de memórias – mostra que a verdade e a lei, em alguns contextos, são coisas bem distintas.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Alguns inícios são assim

Antes de iniciar este livro, imaginei
construí-lo pela divisão do trabalho.
Algum tempo hesitei se devia abrir
estas memórias pelo princípio.
Esta história começa numa noite
de março tão escura...

O céu tão azul lá fora,
e aquele mal-estar aqui dentro.
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto;
Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai...
O mal foi ter eu medido o meu
avanço sobre o cabresto.

João está na minha frente. Pálido.
Pergunta se não quero fazer
café. Nonada. Tiros que o senhor
ouviu ergo sum, aliás, Ego
sum Renatus Cartesius,

cá perdido.
Verdes mares bravios de minha
terra natal. Trilha sonora
ao fundo:a entrada do sertão.