sábado, 9 de janeiro de 2010

Cercado de Letras



Toda a literatura dos sobreviventes relata esse entorpecimento.
Bernhard Schlink, O Leitor


Amor, Analfabetismo, Auschwitz. Não necessariamente nessa ordem, são esses os principais ingredientes do filme O Leitor. Stephen Daldry, o diretor, demonstra habilidade no diálogo entre letras e telas desde As Horas, filme onde narra a vida da grande escritora inglesa Virgínia Wollf.

Baseado num livro do escritor alemão Bernhard Schlink, O leitor é uma história carregada de três ingredientes produtivos e perigosos: política, poesia e erotismo. A narrativa de Schlink é escrita numa linguagem clara e direta, numa forma linear, às vezes meio previsível. Mas essa história – repleta de visibilidade e incertezas, como a maioria das narrativas modernas – não é nada previsível.

A narrativa trata de um garoto de 15 anos. Ele conhece farpas e mel – do amor e dos fatos – ao envolver-se com uma mulher de 36 anos. Ela, uma ex-vigilante que encaminhava judeus para as câmaras de gás nos campos de concentração nazistas; ele, um jovem (futuro estudante de Direito) que lê Homero, Rilke, Cicero e Horácio, vivendo numa família cercada de Letras (seu pai é professor de Filosofia e sua irmã estuda Literatura).


Verdade e Lei


A ficção de Schlink se desenvolve numa Alemanha pós-guerra, na década de 40 do século XX. Esse contexto destroçado traduz-se, no filme, através de cores sóbrias sugerindo a melancolia que perpassa a maioria das imagens de Schlink. O contexto bélico, os sobreviventes e suas memórias são os referentes através dos quais as questões políticas e sociais se inscrevem.

Essas questões que remetem ao holocausto e ao entorpecimento aparecem principalmente no livro. São muitas as indagações que atravessam a narrativa: o que é o direito? Quais os papéis dos advogados e promotores numa sociedade pós-guerra? Quais os limites do “distanciamento profissional?” Como deve ser feita a leitura do nosso passado histórico? O que fazer com o medo, o entorpecimento e o horror que invadem “violentamente o cotidiano”? Enfim, a grande pergunta que atravessou todo o século XX e continua ecoando em nosso imaginário social: o que as gerações seguintes devem fazer “com as informações sobre as atrocidades dos extermínios dos Judeus?”


Entre os dois amantes rola sexo, leituras (Guerra e Paz) e uma infinda "batalha verbal". A tigresa Hanna tem um “corpo cheio de força e confiante”. Por isso, ela doa para o seu “filhote”-"menino"-“pedrinha” dois elementos raros na juventude: segurança e decisão. Em troca, Michael lê. Ele lê principalmente a nuca, as pernas, o corpo inteiro da amada. Lê também os livros em voz alta. Ao acionar o universo da leitura, o leitor atende aos pedidos dessa estranha funcionária do bonde, cujo passado bélico ele só conhecerá futuramente num tribunal público.

Quanto mais lê, mais ele se submete às ciladas dessa Lilith que se encontra no vigor da sua maturidade feminina. As brigas e os descompassos produzem mais intimidades. Mergulhos em águas turvas. Trevas e traças de uma história cujo futuro ninguém sabe, ninguém vê. Bombardeios de palavras e beijos. Cenas de sangue e poesia se alternam e aproximam o casal que grita de prazer enquanto trepa. Essa relação paradoxal e conflitante entre eles parece ser uma metonímia histórica das próprias relações políticas num país descompassado pela guerra.

Sem efeitos grandiloquentes nem ritmos alucinantes, O Leitor cria ritmos. É aquele tipo de filme que afeta a respiração de quem vê. Isso, por um motivo atroz demonstrado pela narrativa: aquele que narra e lê – belo, resignado, cheio de memórias – mostra que a verdade e a lei, em alguns contextos, são coisas bem distintas.