terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sobre “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” II – o leitor



No poema “Um leitor”, do livro Elogio da Sombra, Borges inscreve a importância da leitura em sua vida logo nos dois primeiros versos: “Que outros se jactem das páginas que escreveram; / a mim me orgulham as que tenho lido.” Para Borges, quem assume relevância fundamental para a escritura, para a inscrição da literatura, é a ação da leitura.

O leitor é o grande personagem borgiano. O outro, o leitor – sua releitura, sua tradução. Nesta poética, o leitor passa a ser um doador de sentidos; um produtor de leituras para a forma que é o texto. São constantes as alusões feitas ao leitor na narrativa de Tlon... Mesmo a questão do tempo, associada à memória, ressalta a participação do leitor no processo literário, e descarta qualquer possibilidade referencial. Isso denota a narrativa: “Aqui dou término a parte pessoal do meu relato. O resto está na memória... de todos os meus leitores”.

Neste conto de Ficções, Borges esboça um planeta atemporal e alguns dos seus livros imaginários। Um planeta com leis totalmente diferentes das leis que regem o planeta terra, seja em relação aos sistemas de língua ou aos tipos de linguagens. No idioma de Tlon... predominam verbos pessoais, restando para os substantivos um valor apenas metafórico. Múltiplas linguagens de diferentes tons perpassam o cotidiano de Tlon..., como a didática das enciclopédias, as normas gramaticais, os sinais matemáticos, as citações literárias, as cartilhas filosóficas...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Esaú e Jacó: o outro, o leitor


Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo livro de Machado de Assis. Uma das primeiras coisas que chama sutilmente a atenção neste romance, é que se trata de um texto sobre a diferença. Uma prosa sobre a discórdia. Sobre temperamentos opostos às idéias políticas – republicanos, monarquistas. Uma narrativa sobre a ternura e o tesão, a glória e a agrura. Uma ficção do “desacordo no acordo”, “entre um ato e outro”...

Esaú e Jacó é um texto sobre o outro. Um texto sobre o leitor. Com ele, Machado dialoga o tempo todo. Nesse dialogismo, o autor pede que o leitor volte a página; ratifica ser melhor ler com atenção. Faz distinção entre homens e mulheres como leitores, e poupa o leitor apressado de alguns porquês. Esse diálogo com quem lê atravessa toda a narrativa. Nela predomina o intertexto com autores com os quais Machado dialoga ao longo de sua produção estética, como Homero, Dante, Cervantes e a Bíblia.

Como reza a “Advertência” do autor, Esaú e Jacó são os seis cadernos escritos pelo Conselheiro Aires com tinta encarnada. Leitor que amava a releitura, homem chegado às Letras clássicas, Aires escrevia bilhetes e cartas. Cordato, esse diplomata não era chegado a paixões nem casamentos. “Era homem de todos os climas” (Cap. XXXII). Tinha o feitio do solteirão que elege a solidão a ser atravessada a sós...

O sétimo caderno deixado pelo diplomata transformou-se no Memorial de Aires – último livro de Machado de Assis, publicado em 1908, ano de sua morte. Ambos os livros possuem como cenário o Rio de Janeiro – iluminado por lampiões de rua – que desde meados do século XIX até início do século XX constitui-se no espaço narrativo de Machado que nasce em 1839 no Rio.

É no bairro carioca do Catete onde mora Aires – o ex-ministro aposentado que oferece almoços (cheios de salmão e ofícios), para os gêmeos Pedro e Paulo e a bela Flora. É também no Catete onde termina o Conselheiro “apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.” Alguém vai morrer em Esaú e Jacó; e não é Aires. Ele e o seu memorial estarão vivíssimos no próximo romance de Machado.

A forma narrativa e o leitor ruminante

Com capítulos curtos de belos e inusitados títulos, o romance é formado de micro-narrativas, pequenos contos, canções sertanejas, quadrinha espanhola, ditos populares relidos e personagens cujos olhos trazem a ironia acesa nas retinas. Ironia e humor. Há bastante humor em Esaú e Jacó. Neste livro, o autor elucida parte do seu processo narrativo, através de um exercício metalingüístico que diz: “... porque há estados da alma em que a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo.”

Acerca da leitura crítica, Machado dialoga com o alemão Schlegel, de Conversa sobre a poesia e Outros fragmentos que diz: “um crítico é um leitor que rumina। Ele deve, portanto, ter mais de um estômago". No diálogo que aciona com esse autor romântico alemão, o romancista que rompeu com a linearidade da nossa narrativa escreve: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade...”

sábado, 13 de novembro de 2010

Sobre “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” I


A leitura da tradição nos mostra que as relações entre o tempo e o espaço, a leitura do topos, o foco narrativo, sempre despertaram muito a atenção do leitor. Essas leituras e relações sugerem que algumas obras literárias não são orientadas por um tempo linear, sucessivo, nem delimitam o espaço de sua inscrição a partir de dados geograficamente definidos.

A escrita dessas obras caracteriza-se por, dentre outros, dois procedimentos: a atenção para um tempo sincrônico – onde diferentes eras dialogam – e a leitura de imagens que remetem aos espaços mentais, virtuais. Estou pensando no tempo e nas imagens criados por autores como Cervantes, Camões, Lewis Carrol, Borges... Eles criaram alguns personagens e alguns espaços como grutas, ilhas, países e planetas que lecionam – para leitores de carne e osso – os seus cenários reais.

Cervantes – a quem Borges imitava quando começou a escrever – criou a gruta de Monterinos para as visitas de Dom Quixote. A Ilha dos Amores – espaço onde Cupido leciona amor – foi criada por Camões em sua odisséia sobre os portugueses, Os Lusíadas. Lewis Carrol construiu o País das Maravilhas que é visitado e relido por leitores de diferentes eras e gerações...

Nestes espaços-textos, as noções de tempo sucessório não existem. O que conta é a capacidade de inventar a partir da sincronia. Conta o desejo de tecer relações, criar formas do material imaginário. Poder negar o tempo linear e o seu direcionamento histórico. Desdenhar o referente. Rasurar a identidade estática individual. Desconfiar da existência de um “sentido racional para o universo” (Monegal) ... Tudo isso me faz pensar num planeta inscrito por Borges em Ficções, cujo nome é Tlon...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Bella



Morre Bella Josef. A notícia chega através de uma aluna minha na UFRRJ, cujo seminário sobre Borges motivou o seu grupo a marcar uma entrevista com a autora de História da Literatura Hispano-americana.

A morte de Bella deixa mais pobre o grupo de alunas que a entrevistariam neste novembro. A morte de Bella deixa mais pobre o meu curso cuja bibliografia inscreve dois dos seus títulos: Diálogos Oblíquos e Romance hispano-americano. Sem Bella, fica mais pobre toda uma geração que ela formou em torno da língua espanhola e da literatura latino-americana – de Borges e Sábato a Cesar Aira. Bella leu e dialogou com seus labirintos, fantasmas, abandonos...

Quando cursei doutorado na UFRJ, fui aluno de Bella Josef num curso sobre Ficção Hispano-americana. Com ela li Benjamin e Cortázar. Escrevi sobre utopia e realidade no espaço urbano, tendo o livro Rayuela como objeto de leitura. Aprendi que, neste romance de Cortázar, os deslocamentos do sujeito, seus movimentos utópicos pressupõem a crença numa espécie de ideal socialmente desejável que possui com o imaginário uma forte relação. Aprendi também que este ideal vem atrelado ao anseio de rupturas; que ele é contrário aos petrificados modelos existenciais fabricados principalmente pela norma burguesa.

A leitura de Rayuela sugere a produção de outras subjetividades através da construção de diferentes imagens e linguagens. Bella lia de forma arguta essas linguagens. Ela sabia que o romancista preenche “os silêncios da história”.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Uma dose de João Antonio




Com produtivo trânsito entre os universos da literatura e do jornalismo, João Antonio assumia ser o tipo de escritor atraído pela cultura popular e que preferia escrever sobre coisas experimentadas, coisas vividas na carne. Neste sentido, vários dos seus personagens remetem ao exemplo do narrador clássico. O narrador clássico é aquele calcado na oralidade, fincado na fala cotidiana. Ao narrar, ele recorre ao seu “acervo” de experiências próprias e alheias, a fim de inscrever a sua aprendizagem, a norma de vida que deseja repassar, como nos ensina a lição do Walter Benjamin.

Essa recorrência a uma narrativa que testemunha a experiência de vida e da memória, como no texto “Corpo-a-corpo com a vida”, possui uma profícua linhagem em nossa literatura. A essa linhagem filiam-se autores da maior importância como Graciliano Ramos e Lima Barreto. Ambos são lidos como parâmetros estéticos para a abordagem temática do cotidiano das camadas populares e das linguagens produzidas nas margens da sociedade brasileira. Assim como João, estes dois autores não enfeitam. Eles detestam a gordura literária; leia-se: eles deletam a grandiloqüência.

Sem cânone nem leitor

O próprio João Antonio considerava Lima Barreto o “maior romancista” da chamada “República Velha”, sendo Afonso Henriques de Lima Barreto o primeiro nome que aparece na dedicatória de Malagueta, Perus e Bacanaço. Por esse motivo, curto a leitura de Antônio Arnoni Prado ao reconhecer a filiação tonal da narrativa de João Antônio à escrita social de Lima Barreto; isso se pensarmos em questões como ética, forma social e estética.

Essas questões podem ser aferidas na leitura dos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), sucesso imediato de crítica que outorgou ao autor dois prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos). Nas relações traçadas entre as ações dos personagens de João Antonio e suas falas, o texto e o contexto dialogam de forma determinante para a produção das linguagens que o autor constrói. Essa construção leva em conta a oralidade da tribo da qual faz parte o autor e a visibilidade cortante que perpassa a retina do seu cotidiano concreto e carnal de sinucas, tampas, Cafua, fome, galinha, barrigas, lutas...

Apenas um seleto grupo de leitores conhece a obra de João Antonio. O autor de Malhação do Judas Carioca é lido por poucos e importantes nomes da crítica literária. Sua obra é ainda pouco estudada no universo acadêmico onde merece, sem dúvida, maior divulgação. É urgente a leitura deste autor não inscrito no cânone nacional. Principalmente para os alunos dos cursos de Letras.