quinta-feira, 25 de março de 2010

Do lírico que não se distancia




Tarde percebeu: nem todo lirismo tem olhar dispersivo. Lembrou Macau, livro do Paulo Henriques Brito: são as palavras, e não os ombros, que suportam o mundo. Prestou atenção nas palavras ao lado. Palavras dos ombros. Atenção para o que roça. Celebração do que está próximo. Tia Lica achava o longe geralmente passível de adiamentos...

Impelido pela movência do seu tempo, embarcou em fluxos musicais, repetitivos. Fluxos prolongados que nem uma nota longa e lânguida de antiga canção. Sintaxe antidiscursiva e musical que circunda de forma repetitiva o objeto. Desvios coordenados na rememoração.

Ele não sabe a que tipo de impulso – unificador, múltiplo? – as coisas amoldam-se. Coisas moldam. Inscreve, na previsão do romance, uma “lógica perfeita de nervuras” –. como diz o poeta-engenheiro Joaquim Cardoso. Lírico plugado no seu tempo, ele traça em sua poética um diálogo afirmativo entre mitologia e sonho. As formas da mitologia dialogam com os sonhos da razão e seus monstros.

Centrado numa razão fictícia, esse diálogo registra a memória dos homens, mangues e cajus nordestinos।

segunda-feira, 22 de março de 2010

A infância das máquinas e a maturidade das letras

Em parte a gente é arte/ em outra parte, técnica

Antonio Cicero e Marina Lima, “Acende o Crepúsculo”


A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão। Só a maquinaria। E os transfusores de sangue.

Oswald de Andrade, “Manifesto Antropofágico”





Sabemos que, desde Aristóteles e sua Poética, arte e técnica têm tudo a ver (embora ambos os conceitos sejam hoje bem diferentes da Antiguidade Clássica). Sabemos também que, desde o final do século XIX, a linguagem – principalmente a linguagem literária - começou a ganhar um novo impacto a partir do desenvolvimento tecnológico. Isso foi intensificado durante todo o século XX com a instauração do que chamamos de Modernidade: uma estética que possui no ceticismo e no deslocamento duas de suas principais “senhas”.

A criação de objetos e máquinas como a lâmpada elétrica, o automóvel, o cinematógrafo, o vídeo, a TV e a máquina de escrever transformaram radicalmente os cenários e costumes da vida urbana. Nas cidades, as ações cotidianas – mediadas principalmente pela técnica - passaram a ser mais imediatas, o que de certa forma interferiu no ritmo da produção da escrita e na recepção das artes e culturas.

Também o aparecimento da imprensa diária contribuiu para a mudança de hábitos. Formou um novo tipo de leitor. Um leitor com um outro ritmo de leitura. Desde então, a literatura passou a ter uma forma mais apressada de recepção; e gêneros como o romance, por exemplo, sofreu influência do jornal. A literatura começava a perder a sua aura.


Uma nova sensibilidade no ar

Difícil não perceber que a entrada de tanta tecnologia em cena contribuiu para a mudança de percepção do sujeito. E a lição do crítico e pensador Walter Benjamin nos ensina que quando muda essa percepção, transformam-se os modos de existência da coletividade e os seus meios de produzir arte e cultura. Cria-se, com essa transformação perceptiva, uma re-leitura do contexto.


Para essa releitura do contexto, gosto muito de lembrar um autor que os jovens alunos adoram: o poeta Paulo Leminski, romancista que publicou em 1975 o denso e injustamente esquecido Catatau. Ele foi professor de História, ensaísta e tradutor de Petrônio, Joyce e Lennon, dentre outros.

Sintonizado com a concretude do seu contexto histórico e estético, Leminski leu Oswald de Andrade, e por isso sabia que a poesia existe na maquinaria e nos fatos. Por causa deles, os fatos, o poeta não perde a sintonia com o contexto, e sabe que não apenas as formas estéticas e culturais são históricas e mutantes, mas até os sentimentos, os nossos gestos... São as mutações identitárias dos filhos da modernidade e suas movências... Leminski leu Karl Marx, é claro. E escreveu um texto belíssimo, como diria minha querida amiga Tetê, chamado "Latim com gosto de vinho tinto".

Voltemos às novas sensibilidades que sedimentam as identidades modernas. Somos testemunhas de que vários fatos contribuíram para a produção de outras linguagens, além das mutações e alterações nos ritmos e tons do texto literário. Dentre esses fatos e mutações mencionamos:

- a leitura do jornal

- a possibilidade de observarmos imagens que se locomovem na tela - do cinema, da TV, do PC

- a transformação do ritmo temporal gerada pelos meios de locomoção

- a criação de uma escrita automática...

Esses são alguns dos fatos e/ou motivos que contribuíram para que o texto literário ganhasse uma outra oralidade e/ou um outro ritmo no início do século XX. Neste início de milênio, esse ritmo torna-se mais radical, a partir do advento da informática, dos roteiros da computação e da escrita virtual. Surge uma oralidade maquínica que gera outras modalidades de escrita.

Nada disso eu soube dizer quando defendi a “letra” contemporânea na Universidade. "Letra" essa sintomaticamente inscrita num Departamento de Tecnologias e Linguagens. Tudo a ver. Uma “letra” do meu tempo. Escrita com as tintas e as trevas do presente. Conteúdos mais voltados para os roteiros das novas tecnologias que se inscrevem, de forma irreversível, em nosso contexto histórico, estético e cultural. Isso porque muito me inquieta a distância que separa a subjetividade maquínica que aciona atualmente o nosso cotidiano, e o quadro de giz do século VXIII com o qual buscamos inscrever o universo de quem nos assiste.

Essa “letra” contemporânea faz-me pensar na palestra que o crítico George Yudice proferiu na UFRJ em 2009. O autor de A conveniência da cultura: usos da cultura na era global iniciou a sua comunicação ressaltando a importância dos professores e pesquisadores atentarmos para o universo dos jovens. Segundo ele, os jovens alunos devem ser inseridos "libidinosamente". Essa inserção tema ver com o fato de que, na sua opinião, "as mudanças culturais não estão relacionadas apenas com a cultura". Essas mudanças têm a ver com a escola e com as políticas educacionais, pois no atual contexto a cultura é lida como "prática material", e não apenas como uma abstração, um bem simbólico.

Professores gostam?

Segundo Yudice, a maioria dos professores não conhecem (ou não se interessam) pelas práticas culturais dos jovens contemporâneos: video-games, yotube, blogs, chats, MP-3, músicas no pc... Para ele, esse desconhecimento dificulta a interação entre mestres e alunos. Inseridos na atual "cultura do acesso", esses jovens sentem-se desinteressados pelo modelo proposto pela escola.

. Atentando para a importância dos suportes materiais e dos produtos midiáticos da cultura, o ensaísta ressalta "os lugares de socialização da internet". Para tecer relações com o atual contexto digital e midiático, onde novas tecnologias proporcionam o surgimento de outras sensibilidades, o crítico americano resgata a leitura que Walter Benjamin faz do flaneur e do seu trânsito no espaço urbano no século XX.

Segundo ele, a expressão dessas sensibilidades exige outros modos de percepção, outros meios de interação; assim como as formas perceptivas que o pensador alemão conseguiu captar nas primeiras décadas do século XX, principalmente através do cinema e da arquitetura. Principalmente através das Passagens de Paris, suas modas e mercadorias, e da poesia de Baudelaire.


Já ouvi muita gente boa dizer que, se vivo estivesse, Walter Benjamin leria hoje os shoppings... Tudo a ver. Ele sabia que o crítico é um leitor que rumina. Por isso precisa ter vários estômagos, múltiplos olhares... Benjamin sabia principalmente que a tecnologia circula na veia moderna escrevendo outra letra.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Notas sobre o Prefácio de As Palavras e as Coisas




Texto escrito e apresentado durante o Curso Estudos da Linguagem
UFRN, Natal, Maio de 1995



01 – No livro Borges: uma poética da leitura, o crítico Emir Monegal ressalta o “estímulo” que o escritor argentino despertou em autores das mais diversas áreas do saber. Dentre esses autores, o crítico destaca o filósofo francês Michel Foucault, cujo livro As Palavras e as Coisas inicia afirmando que a sua obra “nasceu de um texto de Borges”. Segundo Foucault, o escritor argentino cita, no referido texto, “uma certa enciclopédia chinesa” onde existe uma inusitada divisão dos animais.

02 – Na página 42 do seu livro, Monegal afirma: “É preciso observar primeiro que Foucault talvez devesse ter indicado, com mais precisão, que o texto que ele atribui a Borges é atribuído por Borges (“El idioma analítico de John Wilkins”, em Otras Inquisiciones) ao Dr. Franz Kuhn que, por sua vez, o atribui a “certa enciclopédia chinesa que se intitula Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos”. Encontramos aqui o recurso, tipicamente borgiano, da mise-en-abyme: a perspectiva infinita de textos que remetem a textos que remetem a textos.”

03 – Sem mencionar o título do texto borgiano, Foucault o tem como ponto de partida para a escritura de sua obra. Refere-se, no prefácio, ao riso provocado pelo texto de autor latino, cuja leitura suscita novas possibilidades de pensar. Para o filósofo, o texto borgiano “...perturba todas as familiaridades do pensamento.” (p. 5).

04 – Por mais de uma vez, o autor menciona o “mal-estar” causado pelo riso ao ler Borges. O riso provocado pelo texto que contém a divisão dos animais, evidencia a suspeita de uma “... desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito.” (p. 7).

05 – Segundo o Aurélio, heteróclito é o que “... se desvia dos princípios da analogia gramatical ou das normas de arte.” “Singular”, “Excêntrico” e “Extravagante” são adjetivos também atribuídos ao referido termo. Foucault refere-se ainda às “heterotopias” como algo contrário às utopias. Para o filósofo, aquelas “inquietam” porque “impedem” a nomeação (“isto e aquilo”), pondo em questão a sintaxe, a gramática, a linguagem. Já as utopias estariam relacionadas com a linearidade da linguagem; o que possibilita a construção de fábulas e discursos.

06 – As heterotopias desconstroem a ordem, criando outras possibilidades de leituras, a produção de novas relações e múltiplas formas de ordenar a linguagem, o mundo.

07 – O riso oriundo do texto borgiano é responsável pelo “mal-estar” “daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o “comum” do lugar e do nome. Atopia, afasia.” (p. 8).

08 – Lembremos uma das lições do Roland Barthes: “Fichado: estou fixado num lugar (intelectual), numa residência de casta (se não de classe). Contra isso, só uma doutrina interior; a da atopia (do habitáculo em deriva)”. Barthes afirma ser a utopia inferior à atopia; no que Foucault concorda ao afirmar o consolo oriundo das utopias, em contraste com a inquietação consequente das heterotopias.

09 – Segundo Barthes, a utopia é útil para fazer sentido. Heterologia é outro termo usado pelo autor de Roland Barthes por Roland Barthes ao referir-se a uma certa teoria textual. Para ele essa teoria possui relações com a deriva, a ruptura.

10 – Referindo-se à obra do poeta Sebastião Nunes, diz Ilza Mathias em Figuras e cenas Brasileiras: leituras semióticas de Papéis Higiênicos: “É a prática de uma tererodoxia face à ortodoxia institucional”.

11 – Questionar a ordem previsível e linear, estabelecer outras leituras.

- Heterotopia – Foucault
- Heterologia – Barthes
- Heterodoxia – Ilza

12 – Arnaldo Antunes:
“A vida que vai á deriva é a nossa condução/ Mas não seguimos à toa”

- Produção à margem do processo institucional?

13 – Retomemos As Palavras e as Coisas

O Prefácio de Foucault explica que esta obra teria como objetivo iluminar o “campo epistemológico” dos saberes. Entender a experiência da ordenação dos saberes no espaço da cultura ocidental, a partir dos estudos que remontam aos séculos XVIII (Classicismo, Revolução Francesa) e XIX (limiar da modernidade). A filologia (as palavras na sua origem), Economia e Política, Biologia e Arte são os principais saberes e formas lidos por Foucault.

14 – Segundo o autor de A História da Loucura (a história do outro, da diferença), As palavras e as coisas seria uma “história da semelhança”. Trata-se, neste livro, de estudar a cultura observando “a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los”. (p. 13).

15 – O que parece determinar o critério temporal do Clássico e do Moderno escolhidos como base da escritura foucaultiana, é o fato de o autor ter como parâmetro a ideia da representação. A “história da semelhança”, do “mesmo”. É a partir daí que o autor considera o surgimento do “homem” na história do saber.

16 – A idéia da representação estaria relacionada às idéias de mimese, imitação, verossimilhança postuladas por Aristóteles em sua Poética (p. 12 do Prefácio).

17 – Ao distorcer a classificação animal, Borges nos remete ao oriente. Denomina a China (já que a divisão dos animais acontece numa enciclopédia chinesa) como espaço mítico, “solene”, antagônico ao nosso. Naquele espaço, é sempre possível nomear, falar, pensar por meio de outras formas de sistematização. Foucault cita a escrita chinesa como exemplo, já que esta prática cultural “... não reproduz em linhas horizontais o vôo fugidio da voz... “ (p. 9).

18 – Ou seja: o ideograma chinês permite que a leitura seja feita de forma simultânea. Com base nesta constatação, Foucault contradiz Saussure e sua crença na noção de linearidade.

19 – Para o filósofo francês, toda experiência, toda similitude, cada distinção resulta “de uma operação precisa e da aplicação de um critério prévio.” Conclusão: “um sistema de elementos é indispensável para o estabelecimento da mais simples ordem.”

20 – A “arqueologia” proposta por Foucault visita o “espaço geral do saber”. Busca a definição de “... sistemas de simultaneidade” e as “mutações necessárias” “para circunscrever o limiar de uma positividade nova.” (p. 12).

21 – Em Borges: uma poética da leitura, Emir Monegal afirma: “Foucault ... aponta para o centro da escritura borgiana: uma empresa literária que se baseia na “total” destruição da literatura e que, por sua vez, paradoxalmente, instaura uma nova literatura; uma “écriture” que se volta para si mesma para recriar, com suas próprias cinzas, uma nova maneira de escrever; uma fênix, oh, não muito freqüente.” (p. 44).


BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Rolando. Rolando Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla perrone moisés. São Paulo, Cultrix.

FOUCAULT, Michel. “Prefácio” in As Palavras e as Coisas. Trad. Selma Tannus Muchail. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

RODRIGUES MONEGAL, Emir. “A heterotopia borgiana” in Borges: uma poética da leitura. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1980.

SOUZA, Ilza Matias de. “Figuras e cenas brasileiras” in Figuras e cenas brasileiras: leituras semióticas de papéis Higiênicos (Dissertação de Mestrado).

terça-feira, 16 de março de 2010

Machado

Quando retornou daquele espanto
era um dicionário de sensações.
Trazia uma aflição consolada
pela leitura da lua sem quarto
minguante no contato viril

Sem nome para o que sentia,
aceitou, num gesto, a predição.
Entre convicto e verdadeiro ora,
apostou na gerção do sublime
que lhe pareceu bem mais útil.

Com a alma metida em si,
não ousou palavras. Muda,
entre ruínas no chão ao lado,
uma flor deslocada e sã,
não o deixava mentir.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Do Título



Segunda versão do prefácio do livro Ceia das Cinzas, coletânea de poemas de Eli Celso, Iracema Macedo e André Vesne. Natal, Boágua, 1998.




da Ceia



Ceia das Cinzas. Comecei a participar desta ceia desde que ouvi pela primeira vez o seu nome. Teria tido essa audição em Teresópolis, na companhia do poeta Eli Celso? Pensei na viabilidade de lê-lo – o título Ceia das Cinzas – pela lente dos discursos míticos, das narrativas poéticas, das histórias das culturas, dos saberes.

Ceia das Cinzas insere-se na tradição literária do Ocidente. Os vocábulos desse título fazem parte do arquivo histórico e estético de signos, formas e linguagens construtoras da nossa historiografia poética. Lembra A Cinza das Horas, o primeiro livro de Manuel Bandeira, publicado em 1917. Ceia das Cinzas remete a um verso de Mallarmé: “o bosque tinge-se de ouro e cinza”. Remete também a versos de Ledo Ivo: “... a cinza sonha / ...ser o dia/ condensado nas pétalas”. Cinzas trazem de volta o fogo criador de Clarice Lispector, e a sua consciência fruitiva de que, ao escrever, o sujeito renasce delas – as cinzas.

Bandeira, Mallarmé, Ledo, Clarice. Autores que inscrevem textos e traços da tradição literária. Tradição devorada, ceada na contemporaneidade. O poeta contemporâneo sabe que, desde o Romantismo, o autor perdeu a aura / idéia de gênio herdada da tradição clássica. O poeta é testemunha de que as grandes narrativas fragmentaram-se. Ele sabe que os conceitos de verdade e realidade tornaram-se relativos (vide a virtualidade), passando a ser relidos a partir de uma estética formatada com base nas noções da simulação e do inacabado. Em sintonia com esse contexto de mutações, rupturas e cinzas, diz o poeta Manoel de Barros: “é dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas – e estar cego. Cego e torto e nutrido de cinzas”.

Este cinza nutre. Possui sabor. Saboreia-se neste livro uma memorial poética das cinzas que possui no mito da Fênix o seu “horizonte das ficções” ("Hierografia", Eli Celso). Parafraseando Bachelard (na natureza “tudo o que corre é criminoso”), poderíamos dizer que, na cultura contemporânea, tudo o que move é vital. Essa vitalidade pode ser aferida na capacidade de mutação e renascimento, lingüísticos e culturais, observada em diferentes idiomas e culturas. Pensemos, por exemplo, na Língua Latina – idioma hoje em cinzas – e o seu percurso estético e histórico da região do Lácio até os mares lusitanos...

Neste contexto mutante e cultural, a ceia é ação; a cinza, matéria. Lemos, assim, o poeta e a sua proposta mais radical: acionar o desejo gerador do texto, através dos verbos reler e rememorar – ações vitais para a re-construção da linguagem poética.


das Cinzas


Entre os Maias, a cinza tem função mágica, ligada à imaginação e ao eterno retorno. Misturar sementes de milho às cinzas, imunizando-as contra a putrefação, além de construir cruzes de cinzas para defender os seus milharais, são gestos daqueles povos latinos. Os colombianos são mais cênicos e inusitados: chamam chuvas espalhando cinzas do alto das montanhas. Bonito, esse gesto de chamar chuva.

Todos nós sabemos, a consciência humana da nossa condição-cinza é explicitada na Bíblia, em primeiro pessoa. No livro do Gênesis 18, 27 lemos: “Eu, poeira e cinza, atrevo-me a falar do meu Senhor.” Cônscia dessa condição, a poeta Iracema Macedo estetiza a mulher que, entornada ao barro, vibra no verso que indaga: “Que queres na tua janela de vidro/ com o teu corpo de cinzas?” (“Canção de amor para uma moça judia”). È imperativo lembrar que, na tradição judaico-cristã, a cinza é utilizada em certos ritos, sendo a ressurreição simbolizada pela cor cinza.

Eterna vizinha da brasa que é mãe e filha do fogo, cinza surge na ceia das cores como gris (cinzenta), sendo composta, em partes iguais, das cores branco e preto. Se o branco e o preto são, respectivamente, presença e negação de todas as cores, o cinza pode ser vista como uma cor una. Como visibilidade que unifica. Cinza lido como diálogo óptico que se dá no envolvimento das duas cores.

A universalidade das cores que compõem o cinza diz de um ser metaforizado pela própria cinza diária que o seu corpo tece. Essa metaforização pode ser aferida nas “labaredas/ queimando céus de um insuspeito azul”, que aquecem o poema “O mergulhador que deixou seus pulmões na superfície”, de André Vesne. O espaço no qual atua esse corpo é composto de cores variadas. Isso é visível no poema de Eli Celso, onde as cores que compõem o cinza matizam “Uma estrada de coisas mortas” na qual o outro convida, atalha e o estranhamento produz: “Ela me convidou a um pequeno apocalipse/ e atalhou caminho por mundos estranhíssimos”.


Essa universalidade das cores diz também de um tempo no qual os homens cantam “o sol desta manhã tão cinza”, e mulheres ardem dizendo assim: “a brasa que nos resume é muito mais ligeira” (“A casa”, Iracema Macedo). De ouvido atento a essas vozes, o que dizer de uma tela imaginária na qual as brasas estão acesas, brasas avermelhadas por entre mares de cinzas? Qual o nome desse olhar que lê e imagina brasa? Como chamar este olhar que a essa tela lê e discerne por entre o pó as brasas de la pasion?


do fogo poético


Ceia das Cinzas nos remete a Fênix, o ser mítico de dupla fábula: pássaro que arde em fogo próprio e ente que renasce das próprias cinzas. Simbologia do tempo circular e do eterno retorno (Borges e Nietzsche). Pássaro eterno como o fogo. Fogo poético roubado por Prometeu: “Eu libertei os homens da obsessão da morte... eu lhes presenteei o fogo... dele, eles aprenderão artes sem numero” (Ésquilo, Prometeu).

E o que faz o homem com o fogo que rouba dos deuses? Conscientes de sua condição de simulacro (Deleuze) perante a imagem divina, os poetas sabem que não salvam. Mas esses poetas nos convidam a cear. Há vários sabores nesta ceia. Ceia das cinzas de crianças devoradas pela mitologia potiguar adubam “A lenda da viúva Machado”, poema de Iracema Macedo. Nesta mesma ceia, uma poética memorialística inscreve-se no poema “O globo líquido”, de Eli Celso, cujas ruínas abissais de “babilônicas e babéis” anunciam que “a memória se arranja/ em alvéolos de barro”; enquanto os fragmentos das Lições de Trevas centelham, demonstrando que a palavra “se presta a vários encantamentos” (“Os jogos amorosos”, André Vesne).

Os poetas e leitores participantes desta ceia celebram sons e saboreiam novos sentidos, como em “Chove sobre a cidade”, de André Vesne. Junto com o poeta e professor Eli Celso, os participantes da ceia devoram ícones (“Angústia de Frida Khalo” e “O clitóris da história”), e flagram o verbo no seu passeio pelo imaginário (“Ancestral”, Iracema Macedo). Os 3 poetas convidam o leitor a degustar a linguagem do fogo. Linguagem do fogo eterno da poesia. Convidam o leitor a, como eles, também queimar neste fogo poético. Convidam para re-ler o idioma do pó e traduzir a sintaxe das cinzas, inscrevendo – na pele e na página – a perene memória da língua.

No cardápio destes poetas, destacam-se os textos cujo teor poético vem nos nutrindo desde as publicações de duas coletâneas: Vale Feliz (1991) e Gravuras (1995). Prometeus ladrões do fogo poético da tradição, a trindade (Eli, Iracema e André) arde, abrasa, cinza. Provemos deste fogo – da língua, da arte, da paixão – senhores leitores: nas próximas páginas é posta a ceia.

domingo, 7 de março de 2010

Letras e coisas que voam

Rosto batido de tantos ventos
a despeito de muitos mares
navegados, sua prosa pede pele,
íris e quase nenhum enfeite

Escrita com os olhos, sua frase
recusa os brincos que o céu
faz chover sobre a noite
de brisa em tempo quente

Para exilar a tristeza de se saber
sem voo, escreve os objetos
da rua e as coisas que vira
num quarto de hotel em Ouro

sábado, 6 de março de 2010

E o romance do final do século XX?



Uma versão deste texto foi publicada em O Jornal de Hoje, Natal-RN, 19 /10/ 1999



Aconteceu na sala de aula. Aconteceu mais de uma vez. Em meio a uma aula do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura, na UFRJ, o professor encara a turma e indaga: quem se destaca na prosa brasileira da década de sessenta para cá?

Uma certa insatisfação compõe o silêncio que se instala na sala. Há risos incômodos e palavras silenciadas de alguns de nós; principalmente por parte daqueles que escrevemos dissertação de mestrado sobre autores brasileiros, como Lígia Fagundes Telles ou Ana Cristina Cesar, por exemplo.

As garotas que tiveram as tragédias de Nelson Rodrigues e os diários de Lúcio Cardoso como objetos de estudo, abrem um sorriso de uma orelha a outra. Por questão contextual e mesmo de consenso, os seus objetos de estudo estão a salvo da indagação. Quem, durante o Curso de Mestrado, aventurou-se além das letras nacionais e viajou pela Grécia de Kavafis ou pela Argélia de Camus, parece sentir-se menos responsável pela resposta à pergunta do professor.

Alunos bem intencionados sugerem Rubem Fonseca e Hilda Hilst como autores representativos da prosa brasileira na década de sessenta. De pronto o professor pronuncia-se: nenhum deles. Sinto vontade de perguntar: nenhum dos textos desses dois autores embarcariam na sua arca no dia do dilúvio? Uma pesquisadora de literatura contemporânea “arrisca” o nome da escritora Patrícia Melo. Discípula de Rubem Fonseca, a autora de O Matador (1995) é um dos nomes cultuados pela vertente pós-moderna da academia. Mas o professor desconhece a escrita da moça que também escreve roteiros cinematográficos. O seu desconhecimento ganha adesão de um outro aluno, cujo argumento possibilita ao mestre elaborar o seguinte raciocínio: “... não me interesso por entender o imaginário dos delegados de polícia”.

A questão do critério de valor é realmente ambígua, aberta. Uma questão que gera querelas infindas. Produz violência. Isso é visível na fala de uma outra professora do referido curso da UFRJ. Na sua arca não viajaria o romancista João Gilberto Noll e os seus 7 livros – escritos de 1980 até hoje – devidamente traduzidos para o inglês. Motivo? “Noll é um autor menor” – diz a referida pesquisadora. Esse tipo de assertiva tem geralmente os autores clássicos e canônicos como parâmetro; possui na Poética de Aristóteles, escrita na Antiguidade clássica, a sua fundamentação em torno da problemática das formas e dos gêneros. Trata-se, portanto, de um ajuizamento que tem como leme uma arte normativa – forma desvinculada das poéticas modernas centradas muito mais nas noções de deslocamento e mutação.

O aluno que agora escreve sente-se provocado pela indagação do professor e tenta inscrever as suas senhas. Cito Raduan Nassar (Lavoura Arcaica e Um copo de cólera) e Paulo Leminski (Catatau, Agora é que são elas e Metaformose). Apenas a primeira senha é aceita. Apesar disso, o professor deixa claro que gostava muito do poeta de Curitiba. Gostava do Leminski como pessoa. Mas aqui no jornal onde escrevo, assim como na sala de aula, o que conta é o autor e a sua obra. Conta principalmente a dificuldade de criação na prosa brasileira, após as produções monumentais e de ruptura de Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Benjamin: voz quase ficcional

Essa dificuldade criativa perpassa o atual debate crítico e acadêmico. Não é por acaso que o crítico Davi Arrigucci Jr, professor da USP, lançou em 1999 o seguinte desafio através do Jornal do Brasil: “Qualquer escritor que se pretenda como tal, deve pensar nisso: como dar forma a essa coisa viva que é a substância histórica?” Noutras palavras: “a literatura brasileira está a espera de um escritor que dê conta dessa coisa viva que é a substância histórica”, ratifica o referido jornal elucidando a fala de Arrigucci.

Em sua entrevista, o autor de Humildade, Paixão e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, diz do ensaio como obra de arte e o compara a outros gêneros. Diz ele: “vejo o ensaio como obra de arte não diferente dos demais gêneros como o romance e o poema”. Ao referir-se ao ensaio dessa forma, Arrigucci revela a sua visão moderna de crítico e ensaísta. Ele lê na ruptura de gêneros miríades de formas de re-ler e construir o texto. Essa releitura sugere a possibilidade de registrar, na escrita ensaística, uma percepção do sensível buscando traduzir uma tonalidade que brota da faculdade da imaginação.

Ao expor essa leitura do gênero ensaístico, o autor refere-se a uma tradição de escrita que possui em Montaigne a sua gênese, e na qual se insere autores representativos como, dentre outros, Barthes e Benjamin... Autores de cujas páginas são audíveis ecos de um certo tom romanesco। Barthes utiliza o seu ensaio para, dentre outros objetivos, “psicanalizar” o imaginário do discurso, os mitos modernos e as formas da escrita. Na construção do seu texto, ele dialoga com os materiais do desejo, vinculando-se principalmente ao tempo presente. O autor anota o presente. Prepara o texto do tempo presente. Em alguns dos seus livros, é audível o tom romanesco de Barthes. Por isso que a sua escrita aciona no leitor os ritmos do seu tempo, e às vezes lemos o seu ensaio como se fora um romance. Segundo o autor de A preparação do romance, esta forma literária consiste numa ”prática para lutar contra a secura do coração”. Essa “luta” é notória principalmente nos últimos textos do autor.

Já a prosa ensaística de Benjamin é repleta de palavras e ecos da tradição, do passado. Essas palavras e ecos são lidos no tempo presente sem susto nem censura. O escritor é atento aos fatos do seu tempo. Ao penetrar no coração das obras, das coisas e das mercadorias, o autor de Rua de Mão Única escreve uma história repleta de elementos românticos, na qual aquela “substância histórica” de que fala Arrigucci está presente. Sua narrativa histórica é repleta de “pequenas catástrofes” e de “avisos de incêndios” causados pos elementos políticos, culturais, teológicos. Por pura sintonia estética, o escritor João Gilberto Noll aparece nesta mesma edição do JB de 1999, respondendo a pergunta “O que eles estão lendo.” O autor gaúcho diz estar lendo “muito Walter Benjamin”.

Confirmando a assertiva de Arrigucci ao comparar o ensaio ao romance, Noll diz que Benjamin “substitui um certo tipo de romance que anda meio escasso”. Além de atestar essa substituição textual, Noll ressalta no autor das Passagens uma voz “quase” “ficcional”. Exímia leitura, essa que consegue ouvir um certo tom romanesco que emana da letra benjaminiana, em meio a tanta letra sem eco, sem trabalho com a linguagem. Em seu último romance, A céu aberto (1996), o autor elabora narradores múltiplos, cuja tonalidade anuncia deslocamentos constantes, e nos ajuda a ler e construir o imaginário do nosso tempo. No desejo de inscrever as identidades mutantes e contraditórias desses narradores, Noll os situa num “campo de batalha” onde são confrontadas as questões estéticas e culturais componentes das identidades contemporâneas.


Tradutores de formas e subjetividades contemporâneas


Além de Noll e dos demais autores acima mencionados, escritores como Rubens Figueiredo, Bernardo Carvalho, Milton Hautoum e Silviano Santiago, dentre outros, continuam produzindo prosa. Poucos deles possuem o aval do público, da academia ou da mídia. Mas é muito importante o registro das marcas culturais e históricas dessa produção. Quem sabe, no futuro, alguns deles sejam tradutores das formas literárias utilizadas para pensar as questões estéticas e culturais do final do século XX. Quem sabe as suas práticas textuais possam traduzir as subjetividades individuais e coletivas inscritas no cotidiano – nas aulas, na crítica, na academia – deste milênio que se anuncia.

Afinal, Kafka não se tornou canônico logo que os seus primeiros escritos foram publicados. Sousândrade esperou mais de um século para ser lido. E Guimarães Rosa, vejam só, não foi de início muito bem recepcionado pelo celebrado autor de Vidas Secas. Ou seja: demorou muito para que fosse possível “uma rosa de Guimarães/ nos ramos de Graciliano.” (Paulo Leminski).

segunda-feira, 1 de março de 2010

O signo literário da prosa brasileira


Texto publicado em O Jornal de Hoje, Natal-RN, 1998


Sob o signo de câncer (água dá luz), nasceu a dupla de prosadores mais representativos de nossa historiografia literária: o carioca Machado de Assis (21/07/1839) e o mineiro Guimarães Rosa (27/06/1908).

Sincronia astrológica e literária, o autor mineiro nasceu no mesmo ano no qual o romancista carioca morreu, aos 69 anos. Fundador da ABL – Academia Brasileira de Letras, Machado construiu uma obra que transcende os limites dos gêneros literários e os demarcados estilos de época. Arquitetou personagens com a sutileza e a ironia de quem não se contenta com a descrição do real. Fez das discórdias históricas e diferenças culturais as matérias de suas narrativas, transformando “a linguagem da realidade em realidade da linguagem” (João Alexandre Barbosa). De posse do nosso instinto de nacionalidade, ele sabia que o Brasil precisava construir uma identidade lingüística e cultural.

Rosa não deixou por menos: radicalizou na ruptura dos gêneros e na revitalização do idioma. Elaborou um prosa experimental que, ultrapassando o referente do sertão, alcança alto teor poético e amplia as dimensões estética e existencial do sertanejo. Calcado nas tradições literária, mítica e filosófica, o seu texto transcende o espaço da denotação e produz uma poética do imaginário sertanejo, tendo principalmente a oralidade por base, atentando para os diferentes tons e timbres da fala do sertão. De posse dos roteiros sertanejos traçados por Euclides da Cunha, ele recria o homem e o seu espaço geográfico, a partir da imagem da linguagem falada por esse homem. E não a partir da imagem física de quem fala.

Alguns procedimentos literários são comuns aos textos produzidos por ambos os autores. A produção literária e cultural de Machado de Assis antecipa, principalmente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (18881), alguns dos procedimentos que irão nortear as principais poéticas da modernidade. Em ambos os autores, portanto, a modernidade e suas idéias de deslocamento e ruptura são signos da maior relevância. Tanto em Machado como em Rosa, a fragmentação e corte caracterizam um texto que, em sintonia com os procedimentos de outras artes (o cinema, por exemplo) rompe com a linearidade da narrativa. Essa ruptura sugere ao leitor outras possibilidades de leituras a partir das novas dimensões de tempos e espaços sugeridas por esses cortes e fragmentos.

A evocação de leituras, o uso de citações, trechos de canções, a reciclagem dos provérbios e ditos populares atestam os intertextos produzidos por Rosa e Machado. Mas são a consciência da importância do leitor e o processo da metalinguagem dois procedimentos que muito aproximam esses autores. O dialogismo estabelecido na ação da leitura (e a preocupação com quem lê), mais a tentativa de explicar a construção do texto dentro da própria narrativa são procedimentos estéticos visíveis tanto em obras como Memórias Póstumas... (1881) e Quincas Borba (1891), assim como em livros como Grande Sertão: Veredas (1956) e Tutaméia (1967).

Drummond lê Machado e Rosa

De volta ao plano astrológico, outra sintonia temporal remete à dupla de escritores: somente na maturidade ambos publicam os seus primeiros livros. Essa lição da maturação textual é bastante útil em nosso tempo, quando grande parte dos jovens autores demonstra excesso de pressa e falta de ritmo na publicação dos seus primeiros textos. Machado, que publicara vários contos, poemas e textos teatrais durante a década de 60 do século XIX, publicou em 1871 o seu romance de estréia – Ressureição –quando contava 33 anos de idade.

Rosa não se lançou mais jovem: os contos de Sagarana só vieram a público em 1946, quando o autor somava 38 anos। Grande Sertão..., o seu primeiro e único romance, só seria lançado dez anos depois. Além de outros textos, Machado legou-nos 9 romances; Rosa, 5 livros de contos e o referido romance. Leitor de ambos, o poeta Carlos Drummond escreveu sobre eles. Do “bruxo” do Cosme Velho que cedia às inquietações e leituras do seu tempo, disse o poeta: “Outros leram da vida um capítulo, tu lestes o livro inteiro”. Acerca do Rosa conterrâneo, diz o mineiro de Rosa do Povo: “Ficamos sem saber o que era João e se ele existiu de se pegar”.