quinta-feira, 18 de março de 2010

Notas sobre o Prefácio de As Palavras e as Coisas




Texto escrito e apresentado durante o Curso Estudos da Linguagem
UFRN, Natal, Maio de 1995



01 – No livro Borges: uma poética da leitura, o crítico Emir Monegal ressalta o “estímulo” que o escritor argentino despertou em autores das mais diversas áreas do saber. Dentre esses autores, o crítico destaca o filósofo francês Michel Foucault, cujo livro As Palavras e as Coisas inicia afirmando que a sua obra “nasceu de um texto de Borges”. Segundo Foucault, o escritor argentino cita, no referido texto, “uma certa enciclopédia chinesa” onde existe uma inusitada divisão dos animais.

02 – Na página 42 do seu livro, Monegal afirma: “É preciso observar primeiro que Foucault talvez devesse ter indicado, com mais precisão, que o texto que ele atribui a Borges é atribuído por Borges (“El idioma analítico de John Wilkins”, em Otras Inquisiciones) ao Dr. Franz Kuhn que, por sua vez, o atribui a “certa enciclopédia chinesa que se intitula Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos”. Encontramos aqui o recurso, tipicamente borgiano, da mise-en-abyme: a perspectiva infinita de textos que remetem a textos que remetem a textos.”

03 – Sem mencionar o título do texto borgiano, Foucault o tem como ponto de partida para a escritura de sua obra. Refere-se, no prefácio, ao riso provocado pelo texto de autor latino, cuja leitura suscita novas possibilidades de pensar. Para o filósofo, o texto borgiano “...perturba todas as familiaridades do pensamento.” (p. 5).

04 – Por mais de uma vez, o autor menciona o “mal-estar” causado pelo riso ao ler Borges. O riso provocado pelo texto que contém a divisão dos animais, evidencia a suspeita de uma “... desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito.” (p. 7).

05 – Segundo o Aurélio, heteróclito é o que “... se desvia dos princípios da analogia gramatical ou das normas de arte.” “Singular”, “Excêntrico” e “Extravagante” são adjetivos também atribuídos ao referido termo. Foucault refere-se ainda às “heterotopias” como algo contrário às utopias. Para o filósofo, aquelas “inquietam” porque “impedem” a nomeação (“isto e aquilo”), pondo em questão a sintaxe, a gramática, a linguagem. Já as utopias estariam relacionadas com a linearidade da linguagem; o que possibilita a construção de fábulas e discursos.

06 – As heterotopias desconstroem a ordem, criando outras possibilidades de leituras, a produção de novas relações e múltiplas formas de ordenar a linguagem, o mundo.

07 – O riso oriundo do texto borgiano é responsável pelo “mal-estar” “daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o “comum” do lugar e do nome. Atopia, afasia.” (p. 8).

08 – Lembremos uma das lições do Roland Barthes: “Fichado: estou fixado num lugar (intelectual), numa residência de casta (se não de classe). Contra isso, só uma doutrina interior; a da atopia (do habitáculo em deriva)”. Barthes afirma ser a utopia inferior à atopia; no que Foucault concorda ao afirmar o consolo oriundo das utopias, em contraste com a inquietação consequente das heterotopias.

09 – Segundo Barthes, a utopia é útil para fazer sentido. Heterologia é outro termo usado pelo autor de Roland Barthes por Roland Barthes ao referir-se a uma certa teoria textual. Para ele essa teoria possui relações com a deriva, a ruptura.

10 – Referindo-se à obra do poeta Sebastião Nunes, diz Ilza Mathias em Figuras e cenas Brasileiras: leituras semióticas de Papéis Higiênicos: “É a prática de uma tererodoxia face à ortodoxia institucional”.

11 – Questionar a ordem previsível e linear, estabelecer outras leituras.

- Heterotopia – Foucault
- Heterologia – Barthes
- Heterodoxia – Ilza

12 – Arnaldo Antunes:
“A vida que vai á deriva é a nossa condução/ Mas não seguimos à toa”

- Produção à margem do processo institucional?

13 – Retomemos As Palavras e as Coisas

O Prefácio de Foucault explica que esta obra teria como objetivo iluminar o “campo epistemológico” dos saberes. Entender a experiência da ordenação dos saberes no espaço da cultura ocidental, a partir dos estudos que remontam aos séculos XVIII (Classicismo, Revolução Francesa) e XIX (limiar da modernidade). A filologia (as palavras na sua origem), Economia e Política, Biologia e Arte são os principais saberes e formas lidos por Foucault.

14 – Segundo o autor de A História da Loucura (a história do outro, da diferença), As palavras e as coisas seria uma “história da semelhança”. Trata-se, neste livro, de estudar a cultura observando “a maneira como ela experimenta a proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los”. (p. 13).

15 – O que parece determinar o critério temporal do Clássico e do Moderno escolhidos como base da escritura foucaultiana, é o fato de o autor ter como parâmetro a ideia da representação. A “história da semelhança”, do “mesmo”. É a partir daí que o autor considera o surgimento do “homem” na história do saber.

16 – A idéia da representação estaria relacionada às idéias de mimese, imitação, verossimilhança postuladas por Aristóteles em sua Poética (p. 12 do Prefácio).

17 – Ao distorcer a classificação animal, Borges nos remete ao oriente. Denomina a China (já que a divisão dos animais acontece numa enciclopédia chinesa) como espaço mítico, “solene”, antagônico ao nosso. Naquele espaço, é sempre possível nomear, falar, pensar por meio de outras formas de sistematização. Foucault cita a escrita chinesa como exemplo, já que esta prática cultural “... não reproduz em linhas horizontais o vôo fugidio da voz... “ (p. 9).

18 – Ou seja: o ideograma chinês permite que a leitura seja feita de forma simultânea. Com base nesta constatação, Foucault contradiz Saussure e sua crença na noção de linearidade.

19 – Para o filósofo francês, toda experiência, toda similitude, cada distinção resulta “de uma operação precisa e da aplicação de um critério prévio.” Conclusão: “um sistema de elementos é indispensável para o estabelecimento da mais simples ordem.”

20 – A “arqueologia” proposta por Foucault visita o “espaço geral do saber”. Busca a definição de “... sistemas de simultaneidade” e as “mutações necessárias” “para circunscrever o limiar de uma positividade nova.” (p. 12).

21 – Em Borges: uma poética da leitura, Emir Monegal afirma: “Foucault ... aponta para o centro da escritura borgiana: uma empresa literária que se baseia na “total” destruição da literatura e que, por sua vez, paradoxalmente, instaura uma nova literatura; uma “écriture” que se volta para si mesma para recriar, com suas próprias cinzas, uma nova maneira de escrever; uma fênix, oh, não muito freqüente.” (p. 44).


BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Rolando. Rolando Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla perrone moisés. São Paulo, Cultrix.

FOUCAULT, Michel. “Prefácio” in As Palavras e as Coisas. Trad. Selma Tannus Muchail. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

RODRIGUES MONEGAL, Emir. “A heterotopia borgiana” in Borges: uma poética da leitura. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Perspectiva, 1980.

SOUZA, Ilza Matias de. “Figuras e cenas brasileiras” in Figuras e cenas brasileiras: leituras semióticas de papéis Higiênicos (Dissertação de Mestrado).