sábado, 7 de agosto de 2010

Sentimento do tempo

Resenha publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de Julho de २०१०


Quem conhece a produção ensaística e/ou assistiu a cursos e conferências do professor e escritor Davi Arrigucci Jr. sabe do cânone moderno e particular que ele vem recortando ao longo das quatro últimas décadas. Desse cânone fazem parte alguns dos nomes mais representativos das letras no século XX, como Walter Benjamin, Paul Valéry, Antonio Cândido, Jorge Luís Borges, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Carlos Drummond, dentre outros.

Assumidamente lidos de forma afetiva e pessoal, esses e outros autores estão de volta neste livro “O guardador de segredos” de 2010. Nele, a maioria dos textos – escritos nesta primeira década do século XXI – ratifica o método comparativo utilizado pelo professor aposentado de teoria literária e literatura comparada.

Essa metodologia compara autores e gêneros, textos e procedimentos, contextos históricos e estéticos. Munido dela e de um cabedal de leituras da tradição, Arrigucci ensaia acerca de escritores e gêneros de diferentes épocas analisando, dentre outros, a epopéia, o romance, a ironia e a sátira. Objetivando uma “visão intuitiva do todo”, ele atenta para as formas de construção e de recepção das obras. Aponta para as semelhanças e diferenças entre algumas dessas obras e entre os procedimentos estéticos e culturais utilizados por autores como Rachel de Queiroz e Dyonélio Machado.

O diferencial das leituras comparativas e das linguagens contemporâneas criadas por Arrigucci está presente logo no ensaio que abre o livro, onde a poesia lírica e reflexiva de Drummond filia-se à poética romântica alemã. Esse diferencial comparativo leva em conta o sentimento do tempo presente e perpassa vários escritos, culminando nas leituras de Guimarães Rosa e Juan Rulfo – dois autores antenados com as experiências da oralidade e da memória.

“Sertão: mar e rios de histórias” e “Fala sobre Rulfo” são textos que alumiam. No primeiro, Arrigucci lê a travessia romanesca no “estilo tão estilo” da narrativa de Guimarães Rosa. No segundo ensaio tece comparações entre “Grande sertão: veredas” e “Pedro Páramo”, lendo as identidades dos jagunços e camponeses mexicanos; além de arengar com parte da crítica leitora de Rulfo (principalmente com a leitura do exímio ensaísta Emir Monegal).

Miradas poéticas, vejam

Desde que lançou em 1990 o ensaio “Humildade, paixão e morte” sobre a poesia de Manuel Bandeira, Arrigucci foi aclamado um dos melhores críticos do Brasil. Apoiada na história, sua leitura revela. Em “O guardador...” essa revelação é visível logo na primeira parte do livro, onde diferentes poetas como João Cabral e Roberto Piva ganham leituras atentas à experiência histórica da modernidade tendo na forma o ponto de partida.

Como o Drummond reflexivo, contraditório e romântico, Arrigucci reflete sobre segredos e enigmas (“não existe interpretação definitiva porque o enigma é inesgotável”). Desentranha aos poucos a sua lógica interna e histórica, audível em trechos como este: “Gullar ouve as vibrações do mito, mas tem os pés no chão e a escuta dos homens.”

“O guardador de segredos” é título de um belo e denso ensaio sobre a poesia de Sebastião Uchoa Leite. Nele, Arrigucci lê o imaginário de uma poética urbana que é atravessada pela “sombra, o fascínio difícil”. Nessa travessia, o ensaísta atenta para os “fluídos orgânicos que tanto falam à imaginação...”, sem perder o tom da experiência. Essa tonalidade é audível numa linguagem que “puxa para o chão a espiritualidade elevada dos olhos...”, de ouvido atento aos monstros produzidos por Dona Razão.

Sem aura, plugada no chão de onde brotam o grotesco e seu reverso, o afetivo e o bélico, a poesia adentra o “inferno da linguagem”. Atento a essa realidade que provoca e pode fazer delirar, Arrigucci é um dos poucos críticos brasileiros que assume transitar pelo espaço imaginário: “O poder ser é o lugar da imaginação”. Um imaginário brotado do “chão histórico”. Nele o guardador finge revelar completamente os segredos da “linguagem mais condensada” que a experiência do homem criou: a poesia.