sábado, 29 de maio de 2010

O novo cânone urbano

Escritos sobre o poder da ficção

Ensaio publicado no Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de Maio de 2010


Como registra a nossa historiografia crítica e literária, alguns olhares estrangeiros foram determinantes para a tradução e para afirmação da literatura e da cultura produzidas no Brasil.

Alguns desses olhares nos legaram exímias leituras das nossas Letras e assinaram a autonomia da Literatura Brasileira, como atestam, no século XX, os textos de ensaístas como o alemão Willi Bolle e a italiana Luciana Stegagno Picchio, dentre outros.

Assim como eles, o professor, tradutor e ensaísta dinamarquês Karl Eric Schollhammer pesquisou sobre a nossa literatura, elegendo como objeto de sua reflexão a prosa escrita no Brasil a partir dos anos 70. Os resultados dessa pesquisa podem ser aferidos no livro “Ficção Brasileira Contemporânea”, recentemente lançado pela editora Civilização Brasileira. O volume integra a coleção “Contemporânea”, cuja organização do professor e escritor Evando Nascimento projeta a edição de 20 volumes; todos em sintonia com o que sugere o adjetivo que intitula a referida coleção.


Um novo perfil de autor


A partir da idéia do que é o contemporâneo, o autor reflete sobre a nossa ficção resgatando a leitura feita por Agamben em seu ensaio “O que é o contemporâneo?” Essa reflexão inicial resgata as “Considerações intempestivas” de Nietzsche lidas por Barthes, para quem “o contemporâneo é o intempestivo”. Esse resgate teórico feito por Karl Eric aponta para o diferente e o anacrônico como categorias perceptivas capazes de ler o contexto e suas transformações históricas e estéticas.

Essas leituras contextuais dialogam com os discursos da mídia e da academia, resultando numa celebração enfática do real, da realidade, do realismo, através do qual até um outro regionalismo é indagado. Trata-se de um novo realismo. Realismo que possui como base um novo cânone urbano, em contraposição ao cânone regionalista e/ou sertanejo herdado da tradição literária, do qual fazem parte autores como José de Alencar (“O Sertanejo”), Euclides da Cunha (“Os Sertões”), Graciliano Ramos (“Vidas Secas’) e Guimarães Rosa (“Grande Sertão: Veredas”), dentre outros.

Na leitura de Karl Eric, esse novo cânone realista é inaugurado por Rubem Fonseca no século XX, e dele fazem parte novos autores como Bernardo Carvalho, Luiz Rufatto, Milton Hatoum e Cristóvão Tezza, dentre outros. Segundo o autor de “Ficção Brasileira Contemporânea”, esse “novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força transformadora.”

Como vemos, trata-se de um olhar inusitado, a partir do qual o autor elabora leituras argutas, como as que propõe em torno do texto transgressor de João Gilberto Noll e das “estratégias autobiográficas” de Cristóvão Tezza, por exemplo. De olho nos novos autores que começaram a publicar a partir da década de 90, é interessante perceber que com essa geração realista surge uma outra forma de profissionalização. Um outro perfil do autor literário passa a ser redefinido, em sintonia com os gráficos do mercado e suas múltiplas demandas. Daí, as agendas trepidantes e os infindos roteiros – reais e virtuais – da maioria desses autores.

A atuação desse novo profissional da literatura difere de tudo o que foi visto até hoje no universo das Letras. Esse novo perfil autoral pouco possui do autor que tinha na leitura e na escrita de textos verbais as bases do seu roteiro literário. Para alguns desses autores realistas, a literatura transformou-se em algo bastante diferente do que era, por exemplo, a arte literária para um escritor do século XIX – o mais literário de todos os séculos, como diz o crítico português Eduardo Lourenço.

Segundo Karl Eric, para esses novos realistas a literatura é “apenas uma entre um leque de atividades do escritor, que agora atua em todos os campos possíveis, da imprensa aos meios visuais de comunicação, passando pelo cinema, pela televisão, pelo teatro e pela produção de textos para os sites virtuais.”

Esses intertextos produzidos entre a literatura e outras artes possibilitam outras formas de criação; requerem do crítico e do leitor um repertório estético e cultural calcado principalmente nas noções de Visibilidade (fragmentos) e Rapidez (formas breves) – duas das propostas sugeridas por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio. O próprio Karl Eric é, neste sentido, um leitor exemplar dessa nova postura crítica, já que o seu discurso ensaístico ostenta um profícuo diálogo semiótico da literatura com o cinema e as artes plásticas, dentre outros.

Nesse discurso crítico reflete-se, dentre outros, a porção benjaminiana do autor, ao eleger as letras urbanas e as ruas da modernidade como “personagens” de suas leituras. Isso é visível, por exemplo, quando ele lê como “imagem do pensamento” (título de uma das partes de “Rua de Mão Única”, de Walter Benjamin) os recursos estéticos criados por Luiz Ruffato em seu romance Eles eram muitos cavalos.


Overdose do real


Além dessa opção de ler os novos autores brasileiros por um viés realista, o livro “Ficção Brasileira Contemporânea” abre com um texto que é um roteiro exemplar para quem deseja historicizar a ficção produzida no Brasil pós anos sessenta: “Breve mapeamento das últimas gerações”. A partir desse “mapeamento”, é possível indagarmos algumas ausências com base na opção realista do autor, no seu diálogo com as formas do real, nesse “contato visceral com o real”.

Esse realismo não tem nada a ver com aquele Realismo cheio de certezas e das noções de totalidade que aprendemos com Lukács, nem acredita no poder supremo da representação. Também não desdenha as relações entre forma e conteúdo. No entanto, essa overdose do real causa alguns efeitos. Em nome de um certo “exaurimento do experimentalismo mais técnico e formal”, o “mapeamento” omite romances experimentais como “Catatau” (1975), onde Paulo Leminski reúne história, filosofia e literatura para inscrever de forma sincrônica uma ruptura de formas e linguagens em sintonia com as leituras da tradição.

O “mapeamento” não menciona uma escritora de assinatura assumidamente antirealista, como Hilda Hilst – autora que transitou, durante 5 décadas, entre os mais variados gêneros e formas como a prosa, a poesia, o teatro e a crônica. De fora do “mapeamento” fica também um autor contemporâneo como Rubens Figueiredo, cuja prosa não é pautada por nenhum “fervor naturalista” ou compromisso com a “realidade verdadeira”.

Essas ausências não diminuem as teses e leituras deste livro. Atentam apenas para o acentuado recorte histórico e realista patrocinado pelo autor. O seu livro ratifica com todas as letras o que pode a prosa produzida no Brasil da ditadura militar, passando pela redemocratização até hoje.