quarta-feira, 26 de maio de 2010

Letra urbana no calor da hora



“Amor que cruza a madrugada e no dia seguinte ajuda a tirar água do poço”. Nessa dedicatória cheia de afeto para a sua Valquiria, o autor Marcus Vinícius Faustini entrega o contexto cotidiano e amoroso no qual inscreve o seu Guia Afetivo da Periferia, lançado em 2009 pela coleção Tramas Urbanas da editora Aeroplano. Afetivo. O adjetivo “afetivo” anunciado no título salta da dedicatória para os roteiros do sumário, e perpassa depois o território da narrativa num “ritual de passagem para o amor”. Afetivo é também o que ecoa dos mapas e bússola da leitura.

Escrito por quem vinga no trânsito entre teatro, cinema e cultura, o livro de Marcus começa na verdade pelo corpo que serve de laboratório para a escrita. “A primeira verdade está na terra e no corpo”, diz Clarice em Perto do Coração Selvagem. No braço do autor uma tatuagem anuncia um “mar de possibilidades”. Seriam essas as várias possibilidades de leituras do Guia..., apontadas no belo Prefácio de Luís Eduardo Soares? Diz o primeiro parágrafo:

“Romance de formação; etnografia urbana; história social do subúrbio carioca; ...fragmentos de um discurso amoroso sobre o Rio de Janeiro...”. Guia... pode ser tudo isso. Tudo animado pelos ritmos e repetições de um “narrador-DJ” que é pura mixagem e espécie de intérprete das várias vozes que narram, guiam, transitam...

Crença nas Conversas

Marcus pertence a uma linhagem de autores andarilhos. Sujeitos que se deslocam incessantemente por trajetos urbanos carregando sacolas, memórias, latidos. Seus “personagens” transitam por entre livros de Dostoievski, frases de Proust, radiola de ficha, anúncios e quadrinhos. Assistem aos filmes do cemitério, do cinema, Corujão.

Nestas páginas, uma “geografia humana” habita becos e bairros produzindo gestos e imagens urgentes. Takes sem aura nem transcendência. Há nesses takes rastros ideológicos que sinalizam o quanto de crença existe nas práticas sociais e nas conversas entre os homens. Pegadas de um imaginário que se afirma como potência e espaço de sobrevivência: “O espaço sideral era a forma de afirmar a nossa imaginação”.

Guia... são letras ágeis em estado bruto. Narrativas escritas a partir de identidades provisórias e encantamentos infindos. Literatura selvagem no calor do corpo, no ritmo da hora. Texto que lembra, na sua eletricidade, a rapidez sinestésica da escrita marginal dos anos 70 e o seu legado romântico de passar para a página o que o corpo registra: “Fiz da minha tuberculose meu pacto com a literatura”.

Urbano, ligado no ritmo dos trens e das vans (“sempre acreditei nas conversar”), o “narrador-DJ” é também uma câmara. De olho nas paisagens do centro e da periferia, ele lê de dentro do ônibus o texto da cidade, seus travessões, suas lacunas. Ficcionaliza, no percurso da viagem diária, a força do belo e essa crença nas conversas. Possui, como bom flâneur andarilho, a percepção acesa e declara, no sentido mais Walter Benjamin do calor da hora, o seu amor pela cidade: “Sempre vivi para a rua e para as coisas que tinham nela”. É bom quando a escrita fala a voz do nosso tempo com linguagens do nosso tempo.