quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sobre “As Ruínas Circulares” I



Alguém já disse que o escritor argentino Jorge Luís Borges teve em si próprio o seu grande personagem. Segundo o poeta Haroldo de Campos, Borges era uma metáfora da literatura; confundia-se c0m a própria obra. No dizer de vários críticos, o universo borgiano é concebido como um livro, uma biblioteca. A formatação desse universo leva em conta a estética do sonho e os meandros da imaginação, em sintonia com as estruturas do mito e a releitura da tradição.

Publicado em 1944 no volume Ficções, o conto “As Ruínas Circulares” possui elementos e procedimentos que o caracterizam como um texto fantástico. No prólogo do livro, o autor avisa: “Em As Ruínas Circulares tudo é irreal”.

Esse “irreal” é estetizado através de três temas: o sonho, o duplo e o eterno retorno. Os dois primeiros temas, além de concernentes à literatura de Borges, estão diretamente relacionados com o universo da literatura fantástica. Como acontece com o texto fantástico, a narrativa deste conto rompe com a ordem cotidiana, ao projetar o objetivo de sonhar um coração que se lê simulacro.

O objetivo de sonhar um homem

O homem taciturno e ensanguentado, vindo do sul, arrastou-se até ao recinto circular – um templo incendiado. Chegando ali sentiu que as feridas haviam cicatrizado e que a sua “imediata obrigação era o sonho.”As tarefas do seu corpo seriam dormir e sonhar. Seu objetivo: sonhar um homem e impô-lo à realidade. No começo, os sonhos eram caóticos; depois, de “natureza dialética”. Surgiram sonhos com alunos (fantasmas) que foram descartados por aceitar passivamente o que o homem doutrinava. O homem optou pelos que arriscam, apesar das contradições. Ele decide ficar com apenas um aluno “de feições afiladas, repetindo as do seu sonhador.”

O sonho com um coração e um deus múltiplo

Surge uma catástrofe: o homem deixa de sonhar. Sente a “intolerável lucidez da insônia.” Compreende ele ser árduo modelar a matéria de que se compõem os sonhos, e os abandona. Purifica-se nas águas do rio, adora deuses planetários. Pronuncia um nome poderoso e dorme. Ao dormir, sonha com um coração pulsando amorosamente durante 14 noites. Na 14ª noite ele roça o coração. Roça por dentro e por fora. O homem Foi sonhando paulatinamente até chegar ao esqueleto. Até chegar às pálpebras, ao homem inteiro adormecido – o Adão de sonho. Depois sonha com um deus múltiplo chamado Fogo e que havia sido cultuado no templo circular. Este deus agiria magicamente animando o fantasma sonhado pelo homem.

O homem vê em si e no filho a condição de simulacro

Só eles dois – o homem sonhador e o deus múltiplo – julgavam ser de carne e osso o fantasma sonhado. Depois de cultuar o fogo, refez o homem o seu lado direito e pensou no filho: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.” O homem atinge o seu propósito: consegue uma espécie de êxtase. Vê no filho a condição de simulacro, teme pelo futuro do mesmo.
O final anuncia a leitura de sinais: nuvens, céu rosa, fumaça e fuga das bestas. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas. Chegada da morte. Reza o final: “Com alivio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.