segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Primeira Carta do Fim




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Vale do Ceará-Mirim, Março de 1990


My dear


Enquanto esquentam os pratos na cozinha, ponho em silêncio a mesa. Atento para a combinação das cores. Azul já não espanta. Nem o laranja tece. Penso nas mesas postas para você, suas demoras, vindas adiadas. Por pouco não me corto nesta faca. Nunca o objeto inerte, afiado, disse tanto nas suas bordas repuxadas, irritadas. Mas generosas. Bordas fartas, não nego. Como me excita essa expectativa de mesa posta... Corte. Enquanto ponho a mesa, espero esta nova linha pós break; conjugo um antigo verbo meu conhecido de guerra em todas as idades: suportar.


Mastigamos em silêncio. Ao lado, o martírio de um dente que não consegue, certeiro, cortar a asa. Termino o jantar e retomo a leitura de onde havia parado. Tenho o ritmo do ventre e da página virada com a sofreguidão de quem crê que a cada palavra lida deste livro eu decifro a esfinge e a devoro na sequência. Balela. Eu, nesta idade, já devia saber. Não. Eu sei que não devia (mas eu não consigo dormir sem लेर, você consegue?).

Vou te passar um número mais detalhado noutra noite. No ar, a velha hipótese de que a visão amplie alguma perspectiva e o obstáculo seja mutável. Tenho, como você, pensando nisso também. Como eu sei? Sei porque te leio. Visito o teu blog sempre que posso. Essa terra virtual é estranha mas aduba a curiosidadade, nutre a angústia comunitária. Curto muito. Curto, no blog, o sangue pingando ao lado dessa palavra sem cor se derramando... E olhe que dá pra segurar, sim. Nada de explosão!

Amo esta foto. Quando puder diga, mesmo pelo blog, qual é a leitura da foto da máscara. Fico de pau duro só de fitá-la. Curto a nuca, cabelos pretos, a cabeça no espelho.Torço com uma força que me surpreende. Foi olhando essa foto que decidi: não quero mais brincar de extremos com você. Chega do lugar periférico que ocupo na sua história, porra. Esta foto é pura epifania. Acende o pavio da imaginação e a reta. Só você conhece o que resta: porra. O espelho afasta o fantasma do retorno que dormiu comigo no sonho de ontem. O espelho disse que eu tenho um espelho embutido no corpo e por isso não posso bruscamente voltar para trás. Fiquei pensando no homem do espelho, pensando no homem do abismo carregando um.

Ontem à noite encerrei uma sessão de análise falando da lucidez de quem traz consigo uma primavera – iluminada estação – e vive, ao mesmo tempo, um inverno feroz. Queria muito te conhecer noutra estação. Nesta teve o espelho embaçado pelo gelo da Glória, as galinhas de Botafogo, a bibliografia que você pediu e não usou...

Mesmo sabendo que é o fim, admito, enquanto puser a próxima mesa, que você às vezes re-escreve a noite. Preciso parar de pensar assim. Por pouco não me corto nesta faca... Nunca o objeto inerte... nas suas bordas irritadas, generosas... Bordas fartas, não nego, mas vê se por favor não responde.