sábado, 12 de dezembro de 2009

Naus a haver


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Texto escrito com base na arguição da tese de doutorado A Hora e o Nevoeiro - Discurso épico, Vontade de Potência e Mal-estar da Modernidade, de Francisco Welson, defendida em 2008 na UFRN, sob orientação da professora Dra. Ilza Matias de Sousa.
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I – A Hora da Forma

A tese A Hora e o Nevoeiro me pegou desde o título. Fiquei intelectual e emocionalmente aceso quando deparei com este título que parece sintetizar o que de mais preciso e precioso caracteriza a poesia de Fernando Pessoa em Mensagem: discurso épico, Vontade de Potência e Mal-estar da Modernidade.

Depois deste título belo e imagético, veio a surpresa da forma da tese (que pode ser lida como um roteiro poético – “uma épica impraticável”, filosófico e teórico da modernidade no século XX). Como Mensagem Brasão, Mar Português, O encoberto –, a tese divide-se em três partes: A vontade de potência e a grandeza impossível, Em busca do aedo perdido e O resgate das vozes do passado.

Trata-se um de texto denso, teoricamente bem urdido, que une reflexão e domínio estético. Apresenta um exímio exercício de concisão e síntese, adensando muitas vezes num mesmo parágrafo questões teóricas e contextualizações históricas com problemas estilísticos atinentes ao verso, à sílaba, à rima. A tese inscreve-se na rubrica acadêmica da Literatura Comparada. Seu corpus apresenta um repertório que delimita muito bem o desenho teórico e reflexivo sugerido pela obra em estudo.

A pesquisa apresenta coerência e rigor ao traçar relações interdisciplinares (entre a literatura, história, filosofia, mitologia e religião) e os discursos intertextuais. Em diferentes trechos, Francisco Welson traça comparações entre Pessoa e Camões (p. 121, 122), acionando um diálogo entre 0s 44 poemas de Mensagem escritos durante 21 anos e Os Lusíadas.

As relações se dão também entre Mensagem e outros poemas de Pessoa, Mensagem e poemas de outros heterônimos de Pessoa, como “Tabacaria”; Mensagem e Odisséia; Pessoa e Baudelaire, entre Baudelaire e Bataille; entre Pessoa e Pessoa como poeta no qual ecoam autores clássicos e românticos.

Essas comparações não se limitam ao plano autoral. A tese é bastante feliz quando compara, por exemplo, os feitos de Portugal com as realizações dos gregos (p. 36), ou quando relaciona a providência como “motor lusitano” e o capital como “motor espanhol”.

Os discursos do mito e do logos são também confrontados como formas de conhecimento que “ordenam a estrutura do simbólico”, assim como a palavra e o gesto do aedo, cuja postura sincrônica (“sua palavra seria irmã do gesto”) diferem radicalmente da postura do poeta moderno, para quem o gesto – o comportamento – vai deixando cada vez mais de ser um elemento crítico.

Como intérpretes representativos da modernidade, Nietzsche e Walter Benjamin também participam do banquete comparativo, e em alguns momentos aproximam-se (p. 75). De várias maneiras as formas de pensar e sentir são aqui confrontadas, relidas. Pessoa e Nietzsche aproximam-se através das idéias de vontade de potência e entram em sintonia ao lerem, por exemplo, o cristianismo como fonte de enfermidade e de sofrimento.

Mas os mesmos autores – Pessoa e Nietzsche – afastam-se quando, por exemplo, o poeta tenta ressussitar o Deus morto pelo filósofo de quem foi leitor. Além da relevância ao traçar essas comparações, a tese possui um mérito louvável: é escrita sem o “tom onipotente” que caracteriza algumas escritas proprietárias de grandes certezas (p. 31: “Pessoa parecia ter consciência disso...” / p. 37: “A nosso ver, Pessoa pretendeu...”).

O trabalho com a linguagem é outro aspecto importante da tese. Seu texto não ostenta registros das funções conativa (o que alivia bastante na tarefa da leitura), nem se vale da função metalingüística da linguagem. A linguagem é clara; às vezes metafórica. Em alguns trechos beira poesia.

Esse discurso com função poética pode ser mensurado em expressões como “subúrbios do universo” (p. 23) ou como no trecho a seguir, onde Welson inscreve o espaço da modernidade e fala sobre a condição de ser moderno: “De forma que a ausência de chão para se pisar dará origem ao caos, caracterizando o novo espaço como lugar de combate, angústia...” (p. 39).

As leituras da maioria dos poemas são repletas de referências históricas e estéticas (como no “D. Dinis” cuja leitura se dá em conexão com os textos de Quesado e Soares). Poeta e rei, D. Dinis fundou a primeira universidade portuguesa e incentivou a agricultura, sendo portanto “o plantador de naus a haver”.

Os discursos teórico e poético aproximam-se também quando Welson fala sobre o espaço no qual se situa o poeta moderno. Diz ele: “o que resta é essa noite como símbolo de uma ausência de brilho e fulgor, num espaço em que a luz se ausenta e não permite, frente a um esforço maior, uma melhor apreensão das imagens que se formam” (29). Leitura essa que se faz em sintonia com o último poema de Mensagem: “brilho sem luz e sem arder”.

“O mito é o nada que é tudo”. Esse verso do poema “Ulisses” surge na tese como uma espécie de mantra ao qual Welson recorre de quando em vez quando deseja questionar conceitos como verdade e realidade, dentre outros. “O mito é o nada que é tudo” pode ser lido como parte da trilha sonora deste texto onde a encenação do discurso mítico leva em conta a “função epifânica” (p. 28).

A tese é atravessada por este mito que sendo o nada é também tudo. Parece haver no texto um pathos dramático, da ordem do paradoxo, de uma contradição permanente que caracteriza também a própria idéia da modernidade, e que põe em cena os extremos, o todo e a parte, a palavra sagrada e a linguagem como ruína. Essa ordem paradoxal é ratificada na repetição do verso de “Ulisses”.

II – Leitura do Nevoeiro

“Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher”

(Bernardo Soares, O Livro do Desassossego)

A Hora e o Nevoeiro trata da condição do ser moderno numa outra ordem. Nesta ordem, o logos, as idéias positivistas dão o tom e os valores são criados sem conexões com a metafísica cristã (p. 67, 81). Nesta leitura, emerge a importância de acionar uma leitura do modelo de nação criado por Mensagem; modelar “uma identidade cultural portuguesa” (p. 35); desenhar uma nação através da linguagem, num contexto no qual a palavra deixou de ser sagrada. (p. 57, 63, 73)

Esse parece ser um dos principais objetivos da tese: “É isto que se pretende resgatar no imaginário português: a idéia de uma nação... de constituir-se a pátria do Quinto Império.” (p. 42). Esse modelo surge em sintonia com a “condição portuguesa” (p. 29) que tem na “angústia” um dos seus sintomas mais ressaltados. “Mensagem foi pensada por Pessoa como uma ação de resgate da grandeza perdida” (p। 44).

Assim como no passado literário de Portugal lido por Eduardo Lourenço, na nação modelada pela poeta o imaginário possui um papel determinante (p. 85). Exemplar da dimensão do imaginário na identidade lusa é a imagem do guerreiro D. Sebastião na letra de Pessoa. Esse imaginário ecoa em Bernardo Soares: “Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos”. (187)

No desenho desta nação, são recorrentes as idéias de totalidade e universalidade que sedimentam as grandes narrativas da modernidade, e que perseguem autores e críticos de contextos sociais e lingüísticos os mais díspares como Benjamin, Lukacs, Clarice, Guimarães Rosa e Pessoa: “Sentir tudo de todas as maneiras...”

A noção de verdade aparece relacionada, em Pessoa, à idéia de completude (p. 24). Não há falta na verdade. O próprio “futuro” de Portugal “é sermos tudo”. (p. 18). Esse futuro começa a ser traçado no discurso bíblico de Daniel e na palavra profética de Nostradamus; passa pelas quadras populares de Bandarra, adentra a oratória de Vieira e chega em Pessoa com um vigor que parece encobrir a ruína, o mal-estar de onde provém.