segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Ensaio III



O ensaio como forma estética


Escreve ensaísticamente aquele que compõe experimentando...

(Max Bense apud Adorno, “O ensaio como forma”)



I

Em seu texto “O ensaio como forma”, Adorno trata das relações entre o ensaísta e a compreensão do seu objeto. Ao estabelecer essas relações, o teórico associa o ato de compreender à ação de “extrair aquilo que o autor teria desejado dizer ou, quando muito, as emoções psicológicas individuais que o fenômeno indica”.[1]

Parece que a noção de compreender, na contemporaneidade, pode ser relida. Apesar da importância de detectar o desejo expresso pelo autor, parece-nos que as suas “emoções psicológicas individuais” não se encontram no cerne da questão. Pouco interessa determinar o que o autor sentiu ou pensou (embora não refutemos a emoção, o pensamento e seu cabedal produtivo; longe disso).

O que estamos evidenciando é muito mais a leitura do objeto a partir da relação estética e da experiência formal que o autor produziu. Nossa compreensão não exclui os aspectos temáticos e contextuais, nem a linguagem da qual lançou mão o autor.

Mais: torna-se relevante saber até que ponto podemos “revelar” lances que o próprio autor apenas sugere (ou desconhece) no seu objeto, e estabelecer conexões com outros objetos, fazendo com que eles, ao circular, completem-se ou possibilitem uma outra configuração, como sugere a transcrição benjaminiana no final do capítulo anterior. Esta seria a noção de compreender que mais nos interessa. Uma compreensão que, apostando mais na noção de articulação que nos abissais domínios da profundidade, jamais encerra a palavra final acerca de uma determinada leitura de um dado objeto.

Praticante e defensor do gênero ensaístico, Adorno o lê enquanto escrita mais preocupada com o exercício crítico, na busca de uma verdade “despida da aparência estética”. Com base nisso, o autor assegura que Lukács não percebeu o distanciamento do ensaio da esfera da arte, e por isso leu “o ensaio como forma artística”.[2]

Diferentemente da leitura positivista mencionada por Adorno, não cremos na separação entre conteúdo e forma; o que justifica, de certa forma, nosso desejo de estetizar o ensaio, conferindo-lhe uma “autonomia” formal.

No contexto da modernidade no qual ensaia Adorno, “a separação entre ciência e arte” era “irreversível”.[3] Segundo o autor, ciência e arte vinham se separando na medida em que o “processo de desmitologização” tornou o mundo cada vez mais objetivo. Para ele era “impossível restabelecer” estas relações entre ciência e arte; para nós, torna-se condição, conexão, possibilidade de vida.

Como se alternam as leituras contextuais! Na contemporaneidade, os cenários virtuais demonstram ser cada vez mais notória a aproximação entre os campos da arte e da ciência. O processo interdisciplinar que se instaura nos mais diferenciados ramos do saber – sejam através das tecnologias da inteligência, sejam por meio de subjetivas criações verbais – parece confluir para um intenso hipertexto que a tudo incorpora, na busca de configurar novas produções artísticas e/ou conceituais. (Exemplar dessa visão é a recente conferência de Hans Ulrich, na Casa de Rui Barbosa, na qual o autor de A modernidade dos sentidos sugere para a distinta platéia - formada na sua maioria por ensaístas, críticos, artistas, professores e alunos de Letras e Artes: “ouçam os engenheiros”).

Acho que esse discurso articulatório demonstra que ao ensaísta contemporâneo não mais cabe o papel de “honrar as obrigações do pensamento conceitual”.[4] Não queremos apontar com isso que ao produtor de ensaio seja desnecessário conhecer a história desse pensamento e suas realizações. O que estamos sugerindo é uma outra leitura da metafísica, uma outra metodologia de leitura, uma “reconstrução da racionalidade”, como propõe Vattimo. Almejamos uma outra forma de trabalhar o pensamento presente e que este, ao invés de ser “honrado” em sua imutabilidade, transforme-se, conecte-se com outras instâncias estéticas e /ou conceituais.


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Experimentando, provando, tecendo, exercitando – e todos os gerúndios que o verbo ensaiar conjuga, o escrevente contemporâneo corrobora para que a forma do ensaio (e tudo o que este aponta de “falibilidade e transitoriedade”) seja prenhe de invenções. Segundo Adorno, o ensaio “se revolta contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável, o efêmero, não seria digno de filosofia”.[5]

A historiografia do saber humano registra como as noções de movência e mutação sempre incomodaram a raça; como a entrada de técnica em cena possibilitou a emergência de novas idéias acerca dos processos de mutação e movimento. Estas idéias estão também relacionadas com as noções de profundidade (a fixação, o fundamento) e superfície (o móvel, a deriva). Geralmente tais idéias são tratadas de uma forma antagônica que privilegia a categoria do “mais profundo”, como demonstra o texto de Adorno.

Segundo ele, ao descartar a tradicional idéia de verdade, o ensaio apronta uma outra rebeldia: “suspende” o tradicional conceito de método. Tal “suspensão” metódica é exposta da seguinte maneira:[6]

O pensamento tem a sua profundidade conforme aquela com que penetra no objeto, não conforme aquela com que remete a alguma outra coisa. Isso o ensaio emprega polemicamente, ao tratar o que, segundo as regras do jogo, é derivado, sem perseguir ele mesmo a sua definitiva derivação.


Muda o ensaio as regras do jogo? O que Adorno “cobra” como “definitiva derivação” parece estar relacionado com as conexões operadas pelo ensaísta contemporâneo, ao optar pelo momento da infinitude oriunda da reflexão. Este “culto do infinito”, herdado dos românticos, parece apontar muito mais para as conexões de superfície do que para as noções de “profundidade”. Daí porque a idéia de compreensão não deve limitar-se apenas à noção de profundidade do objeto, mas também às associações e tessituras que vão sendo propostas e engendradas na relação entre ele e o ensaísta.

Essa opção por uma ensaística da superfície atenta para o modo como o ensaio expõe seu objeto. Isso se justifica na medida em que nos preocupamos não apenas com a leitura do objeto, mas também e, principalmente, com a forma como essa leitura é feita (qual a sua tonalidade, qual a imagem que ela expõe...).


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Adorno demonstra brilhantemente como a operação ensaística distancia-se das regras fundamentais do sistema cartesiano que norteou os fundamentos científicos da modernidade. Se naquele contexto já era evidente esse distanciamento, depois que Nietzsche demonstrou que o conhecimento só é vivenciado como metáfora do real e que Foucault “arquelogizou” a historiografia do saber, a distância entre o exercício do ensaio e a escritura cartesiana torna-se óbvia. Além disso, as noções de centro e origem – fundamentais para o pensamento ordenado e gradual de Descartes – tornaram-se obsoletas. A contemporaneidade encena vários centros, desloca o sentido. Refaz permanentemente seu foco.

Outra justificativa adorniana para desconsiderar o ensaio como criação, é o fato dele – o ensaio – ser incapaz de abarcar a totalidade da obra de arte. Perdida a crença nas idéias de fundamento, ordem e totalidade, tal justificativa torna-se datada. E mesmo quando detecta semelhanças entre os procedimentos da arte e do ensaio, Adorno o lê mais “aparentado “ da teoria que da arte.

Adorno ensaia cultuando o imediato. Ele acha que o gênero ensaistico “mascara” “de imediatez” o pensamento; enquanto nós optamos, na reflexão, pelo seu momento da infinitude, como evidenciamos no “Ensaio: uma poética da reflexão”. E nossas “ruminações” prosseguem por formas diferenciadas. Enquanto para Adorno o ensaio apresenta sempre uma “tendência crítica” e está mais próximo da retórica, nós aliamos esta “tendência crítica” a uma outra da mesma dimensão: a estética.

Nesta “tendência” estética, o jogo das idéias e dos sons com as imagens da experiência, as articulações entre os elementos imaginários e os reflexivos, os diálogos entre autores e textos, tudo isso contribui para a construção formal do ensaio. Por isso descartamos a idéia do ensaio como ornamento discursivo – texto elaborado a partir de rígidas regras lingüísticas, cuja retórica tenta alcançar a ordem do científico.

Na contemporaneidade, o ensaio não enseja o “supracientífico” nem teme transformar-se em “mera vaidade pré-científica”. O ensaio ensaia a si. Benjamin não provou nem fundou nada; apenas imprimiu sua leitura num espaço no qual a produção do sentido opera constantemente com as derivações oriundas do devir. Ele articulou os procedimentos estéticos atentando para o predomínio de uma coordenação e não privilegiou a subordinação ou a supremacia de determinado gênero ou discurso. Isso evita a “tensão entre a exposição e o exposto”.[7]

É nesse dialético solo estruturado pelo binarismo marxista que opera Adorno: entre a superfície e o profundo, o estático e o movente, a exposição e o exposto, o efêmero e o eterno. O clássico é sua pátria: to be or not to be. Jamais to be and not to be.

Apesar disso e de concluir ser a “heresia” “a mais intrínseca lei formal do ensaio”[8], o olhar adorniano revela: (O ensaio) “...quer polarizar o opaco, desabrochar as forças aí latentes”.[9] Podemos parodiá-lo dizendo que o ensaio deseja multifacetar o opaco, formatar a força aí latente. Isso, sem esquecer a mais contemporânea dentre as lições de Adorno: banalizar a linguagem, é banalizar o pensamento que ela veicula.


III - Bibliografia


01 - ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores).

02 - AUERBACH, Erich. “L’Humaine Condition” in Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987. (Col. Estudos nº 2).

03 - BORGES, Jorge Luís. “Pierre Menard, autor del Quijote” in Ficciones. 6ª ed. Buenos Aires: Emecé Editores, 1978.

04 - BENJAMIN, Walter. O conceito de Crítica de Arte no Romantismo alemão. Trad. prefácio e notas: Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras/Edusp, 1993. (Col. Pólen).

05 ______“Rua de Mão Única” in: Rua de Mão Única. Obras Escolhidas Vol. II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

06 - CLARO, Sílvia Mussi da Silva. “O ensaio e a aula” In: Dentro do texto, dentro da vida. Ensaios sobre Antonio Cândido. D’angelo, Maria Ângela e Scarabótolo, Eloísa Faria. Org. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

07 - COHN, Gabriel. (Org.). “O ensaio como forma” In: Theodor W. Adorno. Sociologia. 2ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1994. (Col. Grandes cientistas sociais). pp. 167-187.

08 - LIMA, Luís Costa. “No horizonte do autobiográfico: o ensaio” in: Limites da Voz - Montaigne, Schlegel. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1993. pp. 84-94.

09 - PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus. Um elogio do ensaio. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.

10 - PORTELLA, Eduardo. “O Grito do Silêncio” (Prefácio) in A Hora da Estrela. Lispector, Clarice. Rio de janeiro: José Olympio, 1977.

11- ______ “Roland Barthes, e depois” in Terceira Margem. A cultura das cidades & outros ensaios. Revista de Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro: UFRJ. Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras - Pós-Graduação. Ano 3. Nº 3. 1995.

12 - ______ “Trópicos impuros, impudicos e plurais” in O Globo. Prosa & Verso. Rio de Janeiro, 12 de Fevereiro de 2000.

13 - SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia e outros fragmentos. Trad. prefácio e notas: Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994. (Col. Pólen).

14 - VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. trad. Maria de Fátima Boavida. 2ª ed. Lisboa: Ed. Presença, 1987.




Rio de Janeiro, primavera de 2000



[1] Adorno. op. cit. p. 168.
[2] Ibdem., op. cit. p. 169.
[3] Ibdem., op. cit. p. 170.
[4] Ibdem., op. cit. p. 171.
[5] Ibdem., op. cit. p. 174
[6] Ibdem., op. cit. p. 175.
[7] Ibdem., op. cit. p. 186.
[8] Ibdem., op. cit. p. 187.
[9] Ibdem., op. cit. p. 186.Ensaio III