sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Acervo de Ana no IMS







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Texto apresentado na UFOP e publicado na
Revista Acervos Literários v. 2. n. 2, Marina - MG, 2002.

E este é para o Waldo.


Quando você morrer os caderninhos vão todos
para a vitrine de exposição póstuma

(Ana Cristina Cesar, Luvas de Pelica)


O acervo literário da poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) encontra-se no IMS (Instituto Moreira Salles), no Rio de Janeiro. O referido acervo - em fase de organização, sob a responsabilidade da arquivista Rosângela Florido[1] - constrói-se a partir de três linhas básicas: a correspondência pessoal e o acervo fotográfico da poeta, sua biblioteca particular e as publicações e manuscritos mais a produção dos leitores - críticos, ensaístas e pesquisadores acadêmicos - que dialogam com o corpus de Ana C.[2].


Neste texto, detenho-me apenas na biblioteca da poeta, onde destacam-se as antologias poéticas, os livros ingleses e franceses, e os volumes de literatura e teoria literária. De olho na biblioteca e suas seções - gêneros, idiomas, geração... - optei por uma leitura metonímica desse acervo. Interessa-me aqui especificamente a seção de livros dos autores da geração de Ana C. (ou dos escritores que, mesmo possuindo uma produção anterior vincularam-se, de certa forma, ao contexto da Marginália, embora não possam ser considerados poetas daquela geração. É o caso, por exemplo, do poeta Armando Freitas Filho). Ou seja: ao eleger os livros da chamada Geração Marginal - uma parte desta biblioteca, um fragmento em meio ao todo da historiografia literária - tento produzir uma espécie de poética da leitura de Ana C., a partir dos textos produzidos no contexto no qual ela escreveu obra, e que fazem parte de sua biblioteca pessoal. Alguns desses livros estão na minha minha biblioteca particular e no acervo de muitos leitores da minha geração.


Dentre os volumes consultados no IMS, alguns portam, em seu interior, resenhas referentes a eles; outros, ostentam anotações feitas por Ana Cristina. Há nesses livros vários exercícios textuais produzidos à mão (como um poema iniciado no final de um volume) e alguns traços críticos (como a cobrança de ritmo inscrita na última página do livro de um poeta contemporâneo). Nesta viagem em torno da biblioteca da poeta, conheci a primeira edição de textos lançados de forma independente e que seriam depois editados por grandes editoras. É o caso do Catatau (1975), de Paulo Leminski, Sol dos cegos (1968) e Lago, Montanha (1981), do Chico Alvim. Deste último lê-se, destacado por Ana, o belo poema “O eclipse”, onde a produção de uma linguagem concisa denuncia a oralidade característica da poética alviniana: Dois cegos viajam no ônibus/ A gente das ruas move-se contra um imutável muro cinza/ Súbito/ o eclipse iguala todas as faces/ Órbitas vazadas/ Cegos[3].


A história das letras é repleta de cegos e vidências. Os cegos de Chico Alvim me remetem à cegueira de autores como Homero ou João cabral (no final da vida). Fazem-me lembrar de outro cego que dizia viver em meio a uma neblina luminosa e vidente: Jorge Luís Borges e sua senha acerca do exercíco crítico. Para o autor de Ficções, organizar bibliotecas é um modo silencioso de exercer a arte da crítica. Na mira dos tomos e das prateleiras dos IMS e no rastro prateado da lesma pela página, tento registrar as impressões de viagem em torno da biblioteca da poeta. Meu objetivo é produzir alguns takes - estéticos, críticos, literários, culturais, - do arquivo de formas da chamada geração marginal, de olho nas suas formas, seus tons e timbres, atentando para os seus ritmos e temas mais recorrentes. De olho nas imagens - geralmente fragmentadas, às vezes sombrias, rasuradas - geradas por estes poetas "marginais", tento ler a produção de Ana Cristina Cesar, através de um roteiro dialógico com a produção literária dessa geração.

Folheando a biblioteca

A seção de livros dos autores contemporâneos de Ana C. contém 86 volumes. Destes, 36 títulos apresentam impressão e projeto gráfico padronizados. Os outros 50 livros não ostentam nenhuma grife editorial, mas as marcas das produções independentes que caracterizaram essa geração também conhecida como alternativa ou mimeógrafo.


Como a maioria dos leitores sabem, as marcas da geração marginal são visíveis a partir dos projetos gráficos de seus livros. Geralmente são exemplares de formato pequeno, contendo poucas páginas, apresentando tamanho irregular. Vários textos são mimeografados e uma minoria ostenta desenhos e fotografias, em tiragens médias de 300 a 500 exemplares, dificilmente alcançando a cifra de mil. Entre as edições, destacam-se os experimentos gráficos de páginas soltas e lâminas envelopadas em papel de embrulho, como uma Antologia Poética de 1983 editada em Ouro Preto. Alguns livros lembram a estrutura do folheto de cordel - curiosa presença numa outra seção da biblioteca de Ana.


Na sua maioria, esses livros ostentam uma simplicidade precária - ou uma pobreza estética, diriam os idealizadores de algumas sofisticadas produções contemporâneas - que muito traduz do processo artesanal e experimental daqueles poetas que produziram suas obras num Brasil ainda governado por uma ditadura militar. Esses poetas sujaram-se, literalmente, na graxa do mimeógrafo. Eles rasuraram textos, confeccionaram carimbos e usaram - no prelo - papel de embrulho de pão. Alguns deles coloriram páginas, produziram criativas colagens e montaram uma estratégia malandra e artesanal de driblar o solene silêncio das editoras tradicionais[4].

Passados quase 30 anos e folheando agora a biblioteca de Ana C., é interessante contemplar a galeria de autores daquele período, e observar a mudança dos ventos no roteiro estético de alguns deles. Por exemplo: de uma oficina literária - transformada em livro - e realizada com 16 poetas em 1982, sob a orientação de Silviano Santiago, na PUC-Rio, não restou mais que Dora Ribeiro. Folheados os exemplares de poetas e compositores como Tavinho Paes e Bernardo Vilhena, por exemplo, vê-se delineado o roteiro que os levariam a se dedicar mais às letras de música popular do que aos poemas. Já autores como Ronaldo Brito e Antonio Carlos Secchin, enveredaram pela produção ensaística e/ou acadêmica, embora este último continue produzindo e publicando a sua produção poética.

Atentando-se para a desistência da carreira literária ou para a saída de cena de alguns autores, ficamos a indagar: onde andarão os poetas Nicolas Behr (presença marcante na biblioteca de Ana C.) e Pedro Lage (seria este o "personagem" transformado na pedra-lage lívida de “pour mémoire” em A teus pés?). De Nicolas lê-se, num dos seus livrinhos editados em Brasília, uma das tentativas mais radicais de definir a produção daquela geração: ...acho que a poesia da gente está mais preocupada com o leite das crianças do que com o mel dos deuses. O distanciamento temporal permite perceber que, embora o poeta contemporâneo não ingira mais o mel divino, a poesia também não alimenta nenhuma criançada. Para a contemporaneidade, restou a lição insinuada por Carlos Drummond - autor lido pela grande maioria dos poetas marginais - de que fazer poesia tem muito mais a ver com pedras (talvez o exercício poético tenha mesmo mais a ver com tirar leite de pedras).

Dentre os autores presentes na biblioteca e ausentes na vida, além da própria Ana C., destacam-se Cacaso, Paulo Leminski, Torquatro Neto, Caio Fernando Abreu, Tite de Lemos e Jorge Wanderley. Alguns deles, após estetizar na página o texto da vida, seguiram à risca a performance final dos suicidas, estetizada no poema de Carlos Drummond em seu livro As Impurezas do Branco, de 1973, e escolheram a hora e o gesto. Dentre os que continuam publicando neste início de milênio, encontram-se na biblioteca de Ana C.: Armando Freitas Filho, Chico Alvim, Sebastião Uchoa Leite, Luíza Lobo, Glauco Matoso, Chacal, Maria Rita Kehl, Eudoro Augusto e, dentre outros, Roberto Piva. Deste último poeta paulistano, transcrevo uma dedicatória que, de certa forma, aponta a sutileza da qual Ana às vezes se utiliza ao estetizar um certo ar sedutor e cruel em suas micro-narrativas poéticas. Diz a dedicatória: Para Ana Cristina, musa socialista feita de veludo e punhais. Essa maciez do veludo e a crueldade desses punhais são sugeridas em vários textos do livro póstumo Inéditos e Dispersos, e podem ser lidas, por exemplo, neste belíssimo verso: Corrupta com requintes me deixa o teu amor[5].

A maior parte dos livros da geração a qual pertenceu Ana C. possui dedicatórias. Elas são afetuosas, na sua grande maioria, sendo que algumas assinaturas vêem acompanhadas de telefones e endereços. As dedicatórias são, na verdade, um capítulo à parte. “Cris, é vida, viva!!! Love, Leminski” - é a explosão alegre do poeta paranaense na primeira edição de Polonaises, antes de sua edição nacional na coleção Cantadas Literárias da editora Brasiliense[6]. Nestas dedicatórias lê-se o prazer dos autores que atestam a ambição de ter Ana como leitora, ratifica-se a inscrição de sua beleza física, assume-se o desejo de conhecê-la e a confissão assinada - às vezes, ali na primeira página do exemplar - de certos amores impossíveis.

Interessante perceber, na leitura dessas dedicatórias, como a circulação dos livros e textos entre os poetas daquele contexto era uma prática que se inscrevia com bastante freqüência. É comum lermos numa dedicatória o autor registrando o nome do poeta através do qual conseguiu o endereço de Ana. Essa ciranda atesta também a inscrição de um poeta através do outro. Isso o faz, por exemplo, Armando Freitas Filho no “Improviso para Tite de Lemos” (Corcovado Park) ou Eudoro Augusto na orelha que escreve para uma poeta (hoje desaparecida) chamada Laila.

É imperativo também observar, nos chamados poetas marginais, os resquícios dos anseios de coletividade herdados dos anos 60 e expressos em projetos de livros realizados em duplas ou em grupos. Dentre os volumes lançados em parceira, destaca-se o sintomático Impróprio para menores de 18 amores, de Franklin Jorge e Leila Micolis, cujo título anuncia um certo transbordamento existencial e afetivo típico dos autores que vivificaram na pele os anos 70 e seus roteiros de chumbo e repressão política. Além das duplas literárias, encontram-se na biblioteca as publicações grupais, envolvendo livros, antologias e revistas. A leitura dessa biblioteca deixa claro que, diferentemente das ações individuais da contemporaneidade, a concreção de projetos coletivos era um procedimento comum nos anos 70. Ou seja: apesar do anúncio de que o sonho acabara, ele ainda era a senha para muitos poetas.

O traço da letra de uma geração

Poeta que se utiliza menos do intertexto (procedimento típico da modernidade) e mais da cópia e da simulação, Ana C. possui uma obra marcada por fortes referências da tradição literária. Essa tradição presentifica-se, em sua biblioteca, nas obras de, por exemplo, Carlos Drummond e Joaquim Cardoso, Walter Whitman e Katherine Mansfield - alguns dentre os vários autores com os quais a poeta dialoga, além da narrativa bíblica. Esse diálogo se estabelece também com uns poucos autores de sua própria geração. É caso de Ângela Melim e Chico Alvim, dentre outros. O livro Os caminhos do conhecer, da primeira, possui seu título estetizado num texto de A teus pés: Fiz misérias nos caminhos do conhecer. Mas hoje estou doente de tanta estupidez - diz o eu sintonizado com a letra de Ângela. Sem você bem que sou lago, montanha - diz a voz performática da autora, em outro texto de A teus pés, numa referência direta a uma das mais belas dentre as primeiras edições desta biblioteca: Lago, montanha de Chico Alvim - considerado o príncipe dos poetas margianis. Aliás, é dele e de Eudoro Augusto um dos mais sintomáticos textos desta biblioteca e que muito traduz daquela geração marcadamente influenciada pelo humor e pela ironia de Oswald de Andrade: “História da Literatura”: meu coração rasurado/ minha cesta de papel picado[7].

Outro texto que dá o tom de parte dessa geração é a “Declaração” que abre o volume coletivo Folha de Rosto, de 1976: Estou na festa/ mas para contrariar a dança - diz o pórtico do livro, bem sincrônico com o contexto sócio-político daquele país poético. Mas são muitas as tonalidades daquele ambíguo contexto onde a repressão e a festa conviviam de forma conflituosa. Em meio ao compromisso participativo e a postura odara ali vivenciadas, destacaram-se vozes reflexivas com outras dicções. Isso pode ser lido no esboço de uma possível resenha, como demonstram as anotações feitas por Ana Cristina numa apostilha. Nela lê-se a tensão existente entre o desejo de reproduzir o real e o desejo de inventar; inscreve-se também o dilema entre "a intenção e o gesto" do autor e a sua postura política em relação às classes sociais. Nestas anotações da poeta são problematizadas as relações entre os níveis estético e ideológico que permeiam toda a história da literatura, representadas nos procedimentos duais da forma ou do conteúdo, do significado ou do significante.

Atenta a essa problemática, Ana C. faz anotações nos próprios livros que lê. Num desses, a poeta carioca inscreve o seu rigor crítico: Inacabamento. Impressão de falta de ritmo... ...ausência de unidade. O poema transborda, fala demais, acaba se perdendo, ficando irresolvido ou aberto para todos os lados. Como se desse uma senha de sua poética, a autora conclui: ...eu gosto de clímax, ritmo, unidade, desfecho; e o que me estranha aqui é a ausência disso. Essa observação inscrita por Ana C. aponta para a ruptura de gêneros de sua própria poética, cuja recepção acadêmica inclui também a possibilidade de lê-la - essa poética - como micro - narrativa (afinal, clímax e desfecho são elementos que remetem geralmente ao discurso da narrativa; mas isso não significa que os outros dois elementos mencionados pela poeta - o ritmo e a unidade - mais representativos da construção poética, não sejam imprescindíveis para a tessitura narrativa. Ao contrário.). Na verdade, o que Ana C. cobra daquele poeta de sua geração é o domínio da tecnologia do fazer poético e do repertório do arquivo de formas no qual se constitui a tradição literária.

Ao ler a seção da biblioteca de Ana Cristina que agrupa os escritores de sua geração, percebe-se que nesta ecoa um polifonia vocal composta de vozes díspares e heterogêneas. É preciso distinguí-las; diferençar seus tons e timbres. Se às vezes eles parecem barulhentos, desarticulados e sem o ritmo cobrado por Ana C. àquele companheiro de geração, noutras é audível uma voz cujo tom caracteriza-se por emitir uma certa sutileza elegante. E embora essa elegância possua uma dicção por vezes severa e ríspida, ela é sem dúvida bastante profissional. Prova disso é a forma como Ana Cristina, ao elaborar seu texto, estetiza a subjetividade corpórea e solar de sua própria geração: Não quero mais computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho[8].


Notas

[1] Além deste acervo do IMS, onde organiza o acervo de Pixinguinha, dentre outros, a arquivista trabalha na Casa de Rui Barbosa com a biblioteca de Plínio Doyle e os acervos de Cacaso, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade.

[2] Ana Cristina Cesar foi publicada na antologia 26 poeta hoje, organizada por Heloísa Buarque de Holanda, em 1976. Cenas de Abril (1979), Correspondência Completa (1979), Literatura não é documento (1980), Luvas de Pelica (1980) e A teus pés (1982) foram os livros lançados pela autora. Suas obras póstumas compreendem: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos da Inglaterra (1988), Escritos no Rio (1993), Portsmouth Colchester (1993) e Correspondência Incompleta (1999).

[3] Alvim, Chico. Sol dos Cegos. Rio de Janeiro, 1968.

[4] Fiorillo, Marília Pacheco. “Muito riso, muito siso”. Revista Isto É, São Paulo, 09/06/1982

[5] Cesar, Ana Cristina. Inéditos e Dispersos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

[6] Coleção da editora Brasiliense que divulgou Leminski, Caio e a própria Ana, dentre outros, a nível nacional.

[7] Alvim, Chico e Augusto, Eudoro. Dia sim dia não. Rio de Janeiro, 1978.

[8] Cesar, Ana Cristina. Inéditos e Dispersos. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 198.