domingo, 7 de junho de 2009

Seletas de Ana C.

Rio de Janeiro, 2004





Ana Cristina não acaba nunca. Seja como “vidente” que sai do recolhimento ou como “sereia” que após o mergulho deseja subir à superfície, a poeta ressurge – pela primeira vez neste milênio – com suas cartas e cartilhas, perenes cartadas escritas e inacabadas. A cada novo volume lançado, seja de textos inéditos ou de reedições, Ana C. acena com a leitura de outras paisagens literárias ou culturais. Esse acenar nos envia aos golpes de outras íris e aos avessos de novas peles. Isso aconteceu pela última vez quando o poeta Armando Freitas Filho e a ensaísta e professora Heloísa Buarque de Hollanda organizaram a Correspondência Incompleta (Aeroplano, 1999) da poeta que dizia serem as cartas e as biografias “mais arrepiantes que a literatura”. As cartas não mentem jamais, sabia esta moça linda que assumia escrever "nas crateras", e cujos pelos arrepiavam-se entre canetas e cadernos.

Passados mais de 20 anos da morte da poeta, a sua “letra” requintada, às vezes cruel, continua arrepiando. É o que confirma o volume destas Novas Seletas Ana Cristina Cesar (Nova Fronteira, 2004). Com organização, apresentação e notas de Armando Freitas Filho, o livro traz um belo ensaio – “A falta que ama” – de Silviano Santiago, e uma espécie de dossiê biográfico com consistentes roteiros afetivos criados por familiares da poeta. Tendo como alvo principal o público juvenil, o volume integra uma coleção onde se destacam alguns dos principais autores do nosso cânone literário, como José de Alencar, Machado de Assis, João Cabral de Mello Neto e João Ubaldo Ribeiro, dentre outros.


Ana C. merece tais companhias. O seu trânsito veloz e intenso por entre formas múltiplas e gêneros literários como o poema, a carta, a prosa ou o ensaio, além da tradução, rendeu à poeta o registro de uma “letra” bastante singular. Além da ruptura de gêneros inscrita por essa 'letra", é possível através dela “traduzir” muito da subjetividade alternativa e meio “esquizo” que se produziu no Brasil repressivo da ditadura militar e na paisagem pós-utópica dos anos 70/80. Daquelas sensibilidades aflitas e de suas linguagens alegóricas, fragmentadas, a poeta é sentinela e farol na sua “terrível sede” de viver e repassar para o papel a vivência de sua geração. Daí, a inscrição dessa poética da visibilidade que, a partir de “outras cenas mixadas”, torna visível a água que desliza e narra: “A história está completa: wide sargasso sea, azul/ azul que não me espanta, e canta como uma/ sereia de papel”. À beira desse mar de sargaço e mel, um eu poético assume o seu passeio por entre espaços reflexivos e imaginários com uma eletricidade que hoje anda fazendo muita falta.


“Ana à unha”

Abre estas Seletas uma feliz “Tentativa de pegar Ana à unha”, feita pelo próprio Armando - organizador de três outros livros da poeta: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993). Em seu texto, o poeta da Máquina de Escrever (Nova Fronteira, 2003) diz que o roteiro cronológico da antologia possibilita a quem lê a percepção do “ritmo” evolutivo da poética de Ana C., e atenta para a mocidade que liga o jovem leitor – personagem principal a quem se destinam as referidas Seletas – e a autora que publicou a sua obra entre 1976 e 1983 - quando morreu aos 31 anos.



Essa overdose de juventude nos remete a um poema de A teus pés (1982) que inicia assim: "Queria falar de morte/ e sua juventude me afagava." Remete também, essa imagem do jovem leitor e da jovem poeta, ao poema “Primeiras notícias da Inglaterra” do primeiro período da produção de Ana C. (1963 – 1979), e que consta no livro Inéditos e Dispersos. Esse poema “informa”, de forma absurdamente bela, a visibilidade que acende – mas nem sempre se deixa ver – e que, no entanto, é visível na “letra” de Ana C.: “...beberico os nevoeiros britânicos em mim e por fora// (e o amor se germanizando todo)”.


Na seleção dos textos desta antologia, Armando conta com a percepção luxuosa da exímia leitora que é Cristina Barreto. O resultado é impecável. Textos definitivos e indispensáveis como “Simulacro de uma solidão”, “Sete chaves”, “Cartilha da cura”, “Samba Canção” e “Noite de Natal”, dentre outros, estão presentes. Mas, como em toda antologia parece haver ausências, há neste volume pelo menos duas lacunas; já que se trata de dois textos recorrentes nos estudos críticos e acadêmicos em torno da poética de Ana. A primeira ausência possui como título “Carta de Paris”. Escrita a partir do poema “O Cisne”, de Baudelaire, e repleta de fragmentadas e estranhas “simulações romanescas”, a "Carta..." foi publicada por Italo Moriconi em Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (Objetiva, 2000). A segunda lacuna desta Seleta constitui-se na ausência dos dois belíssimos fragmentos iniciais do livro lançado pela poeta, na Inglaterra, em 1980: Luvas de Pelica. Por causa dessa ausência, o jovem leitor só poderá conhecer noutro (con)texto aquela que é considerada uma das assertivas que atestam - na melhor forma sintática criada por Ana C. - o tom de sua poética: “A paixão, Reinaldo, é uma fera que hiberna precariamente”.


Devido à multiplicidade de informações artísticas e as diferentes referências lingüísticas e culturais que engendram a escritura de Ana C., as notas que acompanham os textos são necessárias e demonstram clareza e competência. Fica registrada apenas uma sugestão: já que em algumas páginas, elas – as notas – aparecem muito próximas aos poemas, talvez seja melhor que numa próxima edição essas informações necessárias estejam mais distanciadas do corpo do poema. Isso porque, assim como requer prazos, o poema também solicita espaços; ele dialoga melhor com o leitor quanto mais dimensionado é o lugar de sua inscrição na página.


No caso da produção poética de Ana C., essa relação entre espaço e texto, ficou evidente após as dez edições de A teus pés (1982) feitas pela editora Brasiliense, no formato limitado da coleção Cantadas Literárias. As duas últimas edições desse livro, lançadas pela Ática/IMS (1998), demonstram como o arranjo de certas frases, a extensão dos versos longos e as linhas que salientam o texto coleante da prosa de Ana C. se adequam melhor na largura do novo volume. Isso é visível principalmente quando lemos os textos de Correspondência Completa e Luvas de pelica. Na nova edição de A teus pés, essa outra disposição do texto na página possibilita um outro olhar para quem lê, e engendra a produção de diferentes roteiro de leituras; como exemplificam a releitura proposta por textos como "Encontro de assombrar na catedral" ou "Fogo do Final' que parecem possibilitar a construção de novos sentidos.


Estas Novas Seletas destacam ainda o texto “Vida e Obra”, escrito por Waldo Cesar – pai da poeta e autor do romance Tenente Pacífico (Record, 2002). Construído numa forma fragmentada, com trechos dos diários do pai e versos da filha, o texto paterno informa, além de sugerir pegadas para “uma biografia, pela qual muitos perguntam”. Parecer ser esses os mesmos leitores que também indagam acerca dos diários da poeta, da sua fortuna crítica e dos seus textos inéditos. Por enquanto, saboreemos estas Seletas. Por meio delas, Ana C. adentra o milênio de forma antológica – a mesma forma através da qual ela iniciou a vida literária na antologia 26 Poetas Hoje (Labor, 1976 - Aeroplano, 1998) de Heloísa Buarque de Hollanda.