quinta-feira, 4 de junho de 2009

O Desejo Gerador do Texto de Ana C.




Reescrito a partir do ensaio publicado
em O Galo, Natal, Novembro, 1998


O desejo é uma pontada de tarde

Ana Cristina Cesar, Luvas de Pelica



Dentre os muitos procedimentos literários incorporados pela contemporaneidade, destaca-se a leitura do texto enquanto corpo. Isto é: as relações entre a forma, a escritura e o corpo que as produz. Essa leitura aponta para o simulacro do corpo e suas relações com o nível textual. Esse procedimento textual é calcado numa opção política que privilegia a subjetividade corpórea e demonstra o desejo que o sujeito possui de tornar-se texto, transformar-se em templo da escritura.


Com base nesse desejo de escritura, o corpo de quem lê e/ou narra transforma-se num laboratório no qual se desenvolvem idéias, sensações e percepções que coabitam regiões do desejo (Ana C), re-criando linguagens. Barthes chega a ser radical ao referir-se a essa problemática, e diz não haver linguagem sem corpo (1978: 53).


Eleger o desejo como espaço da escritura significa dotar a narrativa poética de vida e alegria - signos incorporados por quem narra na contemporaneidade, e os interpreta como vias de acesso à informação. É o que buscam os narradores nas micro-narrativas poéticas de Ana C. Na coletânea poética A teus pés, o escancaramento do desejo (1993: 201) torna-se diretamente responsável pela produção da escrita, como escreve o corpo da autora em Cenas de Abril (1982: 67). Num texto cujo título é re-criado a partir do primeiro verso do poema “Brinde”, de Mallarmé, a narradora expõe-se:

"Nada, esta espuma"

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever...


A maldade de escrever reside nos corpos escreventes da contemporaneidade, que despertam no leitor um sentimento de falta, driblam a perda, lidam com o inacabado. O leitor percebe-se diante de textos-templos em fragmentos; corpos que transitam velozmente por espaços nos quais um "eu mínimo" (Lasch) é tecido e refeito a partir da sintonia com o outro e o espaço no qual ele transita, circula.


O discurso e a leitura destes corpos postulam uma permanente atualização do ser, através dos atos de fruir (Barthes) e narrar. A partir disso, recriam-se outros espaços, de olho numa semiótica imagética e afetiva que resulta na construção do texto. Para Barthes, a linguagem da narrativa treme de desejo, funciona como uma pele. Segundo ele, ao esfregar a linguagem no outro, é como se o sujeito tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras (1984:64).


As linguagens que engendram esta narrativa desejante produzem textos criados a partir de uma consciência erótica do texto literário. Essa consciência é vivificada pela voz narrante de Inéditos e Dispersos (1985: 109), ao perder as noções de limites entre letra, espaço e corpo. Vejamos:

Não vejo meu corpo mas penso nele com desejo e minha consciência é o teto do mundo, como se o forro do meu crânio fosse o céu. Mas não vejo o osso duro. ...

Nesta obra póstuma organizada pelo poeta Armando Freitas Filho, Ana celebra a relação entre o nível textual e suas relações com o corpo, ao lançar mão de procedimentos como o pastiche, a cópia e a fabricação de simulacros. Tais práticas são elaboradas através da re-leitura de autores que a poeta elege como construtores do seu “cânone” individual, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Walt Whitman, Sylvia Plath, Katherine Mansfield, Jorge de Lima, Mário de Andrade, Emily Dickinson...

na página o texto da pele

Nesta poética gerada pelo desejo, sob as ordens de Eros, o poema e a micro-narrativa poética constroem-se como espaços nos quais o sujeito introduz o corpo e atualiza sua própria constituição identitária. Esses espaços da escritura transformam-se em territórios livres para o exercício de forças da mente e do imaginário. São regiões recompostas pelo desejo – como diz a voz narrante de “Vigília II” (1985: 93), também de Inéditos e Dispersos. Interessante observar como a relação do sujeito com essas regiões parece definir o tom e a imagem corporal que possuem ele e seu texto.


Na pós-modernidade, essa imagem corporal está relacionada à alienação do espaço próprio ou espaço corpóreo e ao encolhimento do sujeito nos espaços da coletividade. Isso gera uma sincronia territorial entre o desejo e o texto, entre as forças de Eros e da vida, produzindo o que a narradora do “discurso fluente como ato de amor” (1985: 126) interpreta como contorno de uma sintaxe (= ritmo).


Construída essa sintaxe, o corpo inscreve-se nas "malhas da letra" (Silviano Santiago) e do sistema sócio-cultural no qual interage, sendo diretamente influenciado pelas mutações ocorridas nestas "malhas". Nesse sistema, e em meio a máquinas que interagem subjetivamente e máquinas outras produtoras de objetos desauratizados, de conceitos e paradigmas (vide o arsenal do espaço virtual), o corpo-laboratório de quem narra, lê, elabora e re-cria o texto.


Este narrador que re-cria desvia-se para as extremidades inquietíssimas do corpo (1985: 142). Ele invade o espaço do outro (objeto do seu desejo) e, ao contatar a diferença, escapa de si – ao contrário do narrador realista que é centrado nele próprio, confundindo-se com a alteridade. Esta problemática instaura uma nova e mutante ordem corpórea e subjetiva, que influi na construção da identidade de quem narra e no registro da narrativa poética. Nessa narrativa, o resgate do corpo passa a ser lido como forma de identificar o sujeito e a construção do seu texto. Esse regaste narrativo delimita um outro perfil do sujeito poético, revisto por Ana C. no ensaio “Literatura e Mulher: essa palavra de luxo” (1993: 145). Diz a poeta:

Onde se lia flor, luar, delicadeza e fluidez, leia-se secura, rispidez, violência sem papas na língua. Sobe à cena a moça livre de maus costumes, a prostituta, a lésbica, a masturbação, a trepada, o orgasmo, o palavrão, o protesto, a marginalidade.

Nesta cena alimentada pelo desejo, re-cria-se o discurso narrativo, no qual a informação captada pela voz que narra tem registro a partir do imaginário e da esfera sensorial do próprio corpo que escreve. Trata-se de um corpo que se torna responsável pela re-leitura e criação de outros textos, outros corpos. Esse discurso corporal é lido por autores como Lacan, para quem tudo é exibição do corpo evocando o gozo (1985:1 61). Segundo ele, o sujeito fala com o corpo e o faz sem saber. Portanto, para ele, o sujeito "diz sempre mais do que sabe". Concluindo que o que fala sem saber "me faz eu", o psicanalista francês aponta para a eterna problemática da "falha" na comunicação e da impossibilidade de tradução do real.


Consciente dessa problemática exposta nas ações de comunicar e traduzir (como fica claro ao lermos os ensaios de Escritos no Rio), Ana C. erige um narrador atento à fala do corpo e que, apesar de portar um "desejo inacabado", produz uma “letra” sintonizada com impulsos reflexivos e imaginários. Nesta poética, o corpo torna-se, portanto, responsável pelo gozo narrativo (Barthes) de quem lê e/ou narra. Esses impulsos reflexivos e imaginários são elementos determinantes na tessitura de uma metalinguagem erótica, na qual a conexão entre o corpo, a escrita e a leitura torna-se evidente. Isso pode ser visto nestas cenas explícitas de Inéditos e Dispersos (1985: 92):
I

Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.

...

A poética de Ana C. parece fundamentar-se numa construção textual que estetiza na página muito do texto vivificado na pele. Essa poética inscreve o discurso do corpo de quem lê e de quem é lido (seus bicos). Ao nível textual, a própria narrativa apresenta uma sintaxe cuja forma estética simula uma estrutura física. Essa estrutura remete ao corpo-laboratório que é diretamente responsável por este texto que possui o desejo como combustível.


Numa resenha escrita sobre Walt Whitman e publicada em Escritos no Rio, Ana diz que o poeta americano transtorna de paixão poetas e leitores, e que o leitor, ao ler Walt Whitman, parece tornar-se seu amante. Para Ana, os leitores de Whitman celebram, de forma amorosa, a própria figura - o rosto, a barba, o corpo, a voz - de Whitman, revelando reais estremecimentos de desejos (1993: 181).


Tais "estremecimentos" podem ser percebidos na própria "letra" (texto escrito, para Lacan) da poeta de A teus pés e Inéditos e Dispersos. Há nesses textos um perene desejo que é sugerido nos atos de ler, confessar, traduzir, re-criar. Esse desejo é partilhado pelo leitor, na tentativa de apreensão da condição poética. Nesta perspectiva, é possível parafrasear a própria poeta e dizer que, ao ler Ana C., nos tornamos amantes de Ana C. A autora transtorna de vigor e paixão quem a lê e, tocada pelo fogo, transforma em amante seu leitor – sujeito cujo discurso pode ser fluente como o desejo que gera o texto.


Bibliografia

01 - BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1978
02 - _____ Fragmentos de um discurso amoroso. 4ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984
03 - CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982
04 - _____ Inéditos e Dispersos. Org. Armando Freitas Filho. São Paulo: Brasiliense, 1985
05 - _____ Escritos no Rio. Org. Armando Freitas Filho. Rio de Janeiro: UFRJ; São Paulo: Brasiliense, 1993
06 - LACAN, Jacques. O Seminário Livro 20. Mais ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985