segunda-feira, 22 de junho de 2009

A poesia move o mundo, os dias










Resenha pubicada nO Jornal de Hoje, Natal, 16/09/1999



A literatura potiguar atende, na última década do milênio, por vários nomes. Um deles é sótão 277 - grupo de artistas surgido no início dos anos 90 e que se reunia para ler, escrever, pintar, tocar, namorar e “biritar” num velho sobrado do bairro de Lagoa Seca. Daquele espaço entre o teto e o telhado saiu uma galera que começa a ocupar as redações de jornal e TV, as agências de publicidade e salas de aula, lançando-se no exercício das letras-palavras-páginas.

Depois de enveredar pelo fanzine (o “Papai estamos vivos” tem assinatura de Ilza Matias), pelos recitais de poesia e pela escritura jornalística, o poeta Pablo Capistrano - ex-integrante do sótão 277 - lança Domingos do Mundo (Fireandice/Boágua Editora), seu 1º livro. Com trânsito por áreas díspares como a psicologia, a comunicação e a filosofia, o autor é um típico leitor cuja oralidade produz uma boa prosa em torno dessas áreas do saber e de várias estéticas. Pablo é bom papo, digo. E bom escritor. Pertence, talvez, à última geração que vê na leitura (do livro) o salutar hábito de “semeio” da escrita. O leitor como produtor.

Diferentemente da geração à qual pertence seu pai - o poeta Franklin Capistrano -, Pablo não possui ideais revolucionários ou vanguardistas, e assume - na orelha de Domingos... - a sua formação via HQs da Marvel e De Comics, música pop e cinema/show de Spielberg. Some-se a isso os seguintes roteiros:
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1- as pegadas da literatura beat e da geração marginal
2- as coloridas lições de Wittgenstein, expressas em textos como “Por amor ou pelo azul de si mesma” e em outros versos que colorem os “Pedaços de Ana” - musa inspiradora da 3ª parte de Domingo...
3- “navegos” pela internet
4- viagens pela América Latina (“Macchupicharam o mundo”), à Europa e em torno do Gudan Garan
5- horas, muitas horas, de estetização pelos shoppings, traileres e bares da cidade; que ninguém é de ferro mas de letra, líquido... e aprendemos no “Barroco moderno” o inteiro metade dos navios negreiros.

Homero cabe no bolso?

Pablo Capistrano pertence a uma geração cuja sensibilidade é produzida num espaço/tempo no qual a virtualidade, a técnica e os processos maquínicos viabilizam mudanças estruturais na percepção de quem lê e de quem escreve. Isso, já dizia Benjamin, afeta a escritura.

No texto do poeta o efêmero tem nome. Daí a consciência de uma letra voltada para o rápido, pequeno e intenso (“praia do poema”), e a suspeita de que Homero não se carrega nos bolsos. Não porque o poeta não os possua, mas porque "não acredito em trens", como diz o texto de “Método” - espaço crítico-poético no qual o autor dá senhas do processo de sua escrita, exercitando uma intuição corpórea: "preciso da mão/ e do delicado artesanato/ dos que intuem com o corpo".

Onde o poema tem corpo e praia, o leitor banha-se em águas advindas de várias nascentes. Da mais tradicional, vem a estetização de que somos cinicamente românticos, e o diálogo com o romantismo contraditório de Rosseau (Algumas vezes é melhor ficar em silêncio). Dos mananciais beats e marginais jorra a dicção por vezes ríspida e certeira, tipo: "Para quem vive uma vida Inteira/ os dias não têm nome". Mas muita onda e muito nome rolam nessa praia: desde um suspenso Jorge Fernandes, embalado/ num jazz chorinho de ford forno microndas, até um Kurt Weill que inscreve num “Lugar Pequeno” as letras de um “Cabaré que salta”.

a língua do seu tempo


Nenhuma tonalidade religiosa, nenhum ritmo metafísico, nada de figurações abissais. O poema de Pablo é curto. Tem eco leminskiano. Às vezes soa brusco, sintaxe incompleta, como se o texto sugerisse demoras. Reflexo da velocidade desse tempo? Como diria Deleuze, o texto do poeta possui a profundidade da pele. Em Domingos do Mundo, o corpo e o olhar dão as senhas para uma escritura que leciona saídas: "Quando um corpo/ abre estrada/ cria música"; ou ainda: "A chave/ está no olho que olha a porta".

Vivenciar uma cultura calcada no elemento visual - em detrimento do lingüístico - possibilita ao poeta elaborar textos como “Enciclopédia do Inferno”. Neste, um catálogo de neuroses e artimanhas que norteiam nosso tempo faz imaginar a diferença de tratamento que daria, por exemplo, um poeta romântico ao mesmo tema. Mais que verbo, há nesse inferno imagem, como se a “enciclopédia” fosse computadorizada, composta de pequenos vídeo-clips. São imagens de um sujeito que se desloca incessantemente construindo esquinas, cujo corpo cava fosso e passa a ser viagem. E nesse viajar imagético, ressalte-se as cores, os tons e as imagens da bela capa deste livro, criada por Waldenor - outro artista remanescente do sótão 277, cujo trabalho gráfico dialoga com várias procedimentos artísticos como a xerox, pintura, fotografia, computação...

Moral da história: Pablo traduz os anos 90. Seu texto inscreve não apenas os Domingos..., mas o tempo que trama a língua do final do milênio. O início de “As anulações do sujeito” anuncia o quanto de mutação temporária e espacial existe nessa língua e ao que ela se propõe: "...encontrar o lugar onde o amor dorme/ e compor o lugar onde o amor altera o/ morador". O sr leitor há de convir que esse "encontro" e essa "composição" constituem numa boa forma para iniciar outro milênio.