quarta-feira, 10 de junho de 2009

O mais profundo é a pele












Ensaio reescrito a partir do texto apresentado no IX Seminário Nacional Mulher & Literatura, na UFMG, Belo Horizonte, Agosto de 2001, e publicado nos Anais do IX Seminário Nacional Mulher & Literatura - UFMG, 2001 e in Gênero e Representação na Literatura Brasileira. Org. Constância Lima Duarte et alli. Belo Horizonte: UFMG, 2002.


Para Constância Duarte,
com quem aprendi acerca do
“ensaio como exercício da escrita”.


Este ensaio deseja ler o desejo gerador do texto poético. Para essa leitura, tomei como parâmetro um procedimento metalinguístico que possui na consciência erótica da letra sua base. Ou seja: pretendo ensaiar como o exercício da liberação do desejo - seja nas afetivas ou nas violentas instâncias cotidianas - possibilita a produção da linguagem que gera o poema. Essa liberação transforma numa metalinguagem a relação entre essa linguagem, o desejo e o poema.

Escolhi como guia, para o mergulho que aciono na pele de quatro escritoras contemporâneas, o livro A Paixão Emancipatória - Vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira, da profª. e ensaísta Angélica Soares. Da escritura de sua “paixão”, interessa-me principalmente o capítulo no qual a autora ensaia acerca da “metalinguagem erótica” na poesia de Olga Savary.

Para a leitura do exercício metalinguístico da poesia de Olga, Angélica toma como objeto o livro Linha d’água (1987). Neste texto, a ensaísta mergulha nas imagens da água e na sua sonoridade, atentando para o fato de que é através desse elemento - a água - que Eros, ambígua divindade que aniquila e tece a vida, personifica-se no poema. Neste, a água surge não apenas como signo da fonte de fecundação da vida ou meio de purificação, mas principalmente como elemento corpóreo – água do corpo que desemboca no leito da página produzindo o poema.

A leitura dessa metalinguagem demonstra haver uma intensa relação entre a construção do texto poético e a experiência afetiva, ambas patrocinadas pelas infindas artimanhas de Eros e Thanatos, numa eterna parceria produtora de (des)encontros, desnudamentos e violências. Ou seja: o ensaio A paixão emancipatória... nos ensina que entre a entrega amorosa e a experiência poética há muito mais águas do que supõe nossa infinita sede de escrever e amar.

Para a escritura dessa poética – calcada na “vivência fugaz da continuidade” patrocinada por Eros –, Angélica destaca platonicamente as relações entre erotismo, beleza e poesia. É através dessas relações entre o erótico, o belo e o poético que o corpo e a alma negociam seus excessos e suas carências. O corpo e a alma de quem ama e escreve negociam também as perdas e os ganhos, num trânsito que envolve infernos e paraísos. Essa negociação se dá como tentativa de driblar a falta (de simetria para tanto desejo), a impossibilidade (do haver desejo de não haver) e até os excessos (de pulsão).

Refletindo acerca das imagens míticas, o texto de Angélica Soares atenta para a dimensão subjetiva do exercício erótico. Sua leitura inscreve o sujeito que, ao desoprimir-se subjetivamente, vivencia a construção de sua identidade e a experiência de “relacionamentos humanos mais fluídos, menos atados por estratégias de poder” (Soares: 1999, p. 65). Das relações entre a escrita e o desejo resulta a noção de auto-conhecimento e de identidade. Nesta reflexão em torno do fazer poético, a identidade reconhece a alteridade, confunde-se com essa alteridade, e desse reconhecimento resulta uma ação concreta: aquilo que “cresce com”; não algo que tem sua origem a partir de algum elemento determinado a priori (Soares: 1999, p. 87).

O “crescer com” aponta para a necessidade que o sujeito possui de compartilhar a vida afetiva e social, através da “desopressão” subjetiva sobre a qual reflete Angélica Soares. Seu ensaio sugere que: desoprimido subjetivamente e livre de determinações excludentes, o sujeito desvia-se do isolamento e da perda de si. Esse exercício erótico da “desopressão” subjetiva pressupõe ainda a produção de bens materiais e simbólicos, incluindo-se aí a geração da própria escritura poética.

De olho nas relações entre o erotismo e a reflexão, Angélica Soares lê “uma irresistível atração” entre a “consciência literária do erotismo” e a “consciência erótica do literário”. Reflete, com essa leitura, o estatuto dessa poética desejante. Essa reflexão dialógica entre a porção erótica da letra e a dimensão literária do erótico é responsável pelo procedimento poético da metalinguagem.

É com base nessa consciência do fazer literário, sintonizada com a inscrição dessa letra desejante, que aciono esta reflexão. Minha leitura possui dois signos: a errância do desejo que move a vida psíquica e a escrita oriunda da profundidade da pele de que fala Deleuze ao resgatar o verso de Paul Valéry com o qual intitulamos este texto. A errância do desejo e a escritura poética são patrocinadas pela sintaxe do corpo com a mente; pela oralidade da carne. Isso faz lembrar uma assertiva de Paulo Leminski que desdenha, de certa forma, a escrita romãntica e diz: chega de “arrancar a verdade da alma através da dor do corpo”. A poética que lemos a seguir leva em conta a verdade corpórea de quatro autoras e os seguintes textos: Ana Cristina Cesar (A teus pés), Iracema Macedo (Lance de Dardos), Diva Cunha (Canto de Página e A palavra estampada) e Ângela Montez (Sem Fotografias).


a mão no seio da sereia


No texto poético de Ana C. é visível: a questão do desejo remete ao exercício da escrita. Essa remissão configura aquela tensão – detectada por Angélica Soares no referido ensaio – existente na “consciência literária do erotismo” e na “consciência erótica do literário”. Essa “consciência” pode ser lida no seguinte texto de “A teus pés[1]:

Nada, esta espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.


Ana C. escancara e estetiza o desejo. Vale-se logo no título, num intertexto com Marllamé, da imagem da espuma – signo que remete ao universo do erotismo. A poeta assume, no primeiro verso do poema, ser o desejo combustível para a sua escrita pós-moderna. Movida por uma ironia desejante, ela estetiza mais: resgata uma descarada porção romântica ao ler como “maldade” a ação da escrita, e como divindade a poesia. Além disso, a poeta ainda diz-se castigada por “uivos” da sereia (típico de quem mira uma “janela de correr narcisos”).

Ao inscrever o desejo como espaço de produção textual, Ana C. sugere a inscrição de uma linguagem cuja sintaxe parece contornada por um ritmo desejante. A partir da forma sugerida por esse contorno lingüístico, cujo ritmo sugere a audição do jazz do coração, o corpo tece o poema que possui na memória de pele o elemento de sua inscrição. Nessa poética – onde o discurso é fluente feito o desejo que impulsiona a escrita –, entram em cena, em lugar da delicadeza e da nostalgia, a concretude do corpo e seus gestos estéticos, afetivos.

O desejo de tocar o seio da sereia parece típico de quem, tocada pela fome herdada da família e da tradição literária, transita entre a oralidade e o visível. Esse diálogo entre a imagem e o som resgata a deusa enquadrada no espaço da superfície e o seu uivo castigante. Ana C. deseja (“quero tanto os seios da sereia”); e o seu desejo insiste na produção do poema, afronta e provoca o senhor leitor. Ao desejar a escritura ela reconhece ser a superfície o habitat da deusa. Poesia que reconhece como profundo os roteiros sugeridos pela pele.

o desnudamento poético de Iracema

A consciência erótica da metalinguagem está presente também na poesia de Iracema Macedo. No poema “Desencanto”, num claro intertexto com Manuel Bandeira, a autora exercita o procedimento metalinguístico ao apresentar a senha do seu processo criador: "...e faço versos como quem goza/ e gozo como quem glosa". Esse verso reflete a intensa relação existente entre a produção literária e a ação da entrega afetiva, ambas geradas a partir da errância de um desejo que se quer produtivo.

A produção poética e a entrega afetiva se desnudam em vários textos de Lance de Dardos. Neste livro, é audível uma polifonia poética através da qual ecoam a voz e o desejo de várias mulheres de diferentes espaços e tempos. São as “vozes femininas da liberação do desejo”: elas assumem-se incendiadas, ousam o ventre e a cara, ofertam o sexo feito flor; embaralham-se nas fingidas tramas do desejo fugidio e inscrevem nietscheanamente “a aventura de ser carne/ em meio a tantas pedras” (Macedo: 2000, p. 86). Dessa polifonia ecoa a linguagem poética, através da entrega afetiva[2]:

As vestes

Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me libera dos seus laços

Esse desnudar-se é um procedimento decisivo para a vivência do erotismo e para o exercício da poesia. A Paixão... de Angélica nos ensina como a nudez física possibilita o “desnudamento psicológico e existencial” (Soares: 1999, p. 25). Com base nessa leitura, a ação de desnudar-se retira o ser do isolamento e coloca-o em interação com o outro. Mais que essa interação, mais que o incêndio de despir-se, Iracema Macedo elabora uma poética do desnudamento que possui no exercício da alteridade e na entrega afetiva sua base.


Diva da consciência corporal do poema

Sempre que releio os livros Canto de Página (1986) e A palavra estampada (1993) de Diva Cunha, lembro imediatamente de uma assertiva do Roland Barthes: não há linguagem sem corpo. Na poética de Diva Cunha, a consciência corporal surge como procedimento estético, como elemento de resistência para a construção do poema[3]:

às vezes sou de uma
contenção
ferocíssima

aparo as minhas beiras
para não cair do corpo
- madeira do poema -
lenho que resiste

A consciência do corpo como elemento da experiência poética é aqui visivelmente estetizada. Como “madeira do poema”, o corpo é o espaço através do qual se produz a linguagem; e sua “contenção” ratifica um dos principais procedimentos estéticos que caracteriza a própria poética de Diva: o desejo de transformar-se em templo da escritura.

A criação de um texto que simula o corpo que o produz, atentando para a dimensão poética e ontológica produzida por esse corpo, é um dos procedimentos característicos da poesia contemporânea. Esse procedimento textual é calcado numa opção política que privilegia a subjetividade corpórea e os roteiros da pele, demonstrando o desejo que o sujeito possui de tornar-se texto.


A autora transforma-se em texto. Seu corpo é um espaço de estetização do desejo que gera o poema. Ele anuncia-se nas “ondas azuis de impaciência”, na aflição que arranha “paredes”, dando mostras do exercício de metalinguagem erótica operado por Diva[4]:


passam navios a minha porta
agitados por ondas azuis de impaciência

saio aflita e arranho as paredes
com a inexata doçura da ciência

de que fazer versos é o melhor
exercício
para o meu cio

Diva da consciência corporal do poema, a autora faz convergir para a dimensão literária o que parece inerente ao universo erótico, à entrega afetiva. Ou seja: na poética de Diva Cunha, aquela “consciência erótica do literário”, analisada por Angélica Soares, encontra sua concretude no “exercício” do poema que inscreve o próprio corpo e seu desejo. Poesia e erotismo conjugam-se num mesmo território: o corpo. Com essa inscrição desejante, Diva entrega-se ao leitor transformando-o em parceiro. Ou transformando em amante, como diz Ana C. acerca de quem lê o poeta Walt Whitman.

Ângela descanoniza a falta

Em Sem Fotografias, Ângela Montez utiliza-se de uma epígrafe de Gregório de Matos que parece nortear não apenas o exercício de sua poética, mas a reprimida condição feminina através da história. Diz a epígrafe do poeta baiano: “A mudez canoniza bestas-feras”. Esse verso é relido num contexto no qual o feminino ganha voz. Ângela faz parte de uma geração poética na qual, diferentemente das anteriores, a mulher inscreve-se com bastante freqüência.


Na inscrição dessa poética ecoa uma voz erótica que, sintonizada com o outro e com o seu entorno, denuncia o que “corrói a fala” e solicita a inscrição do seu lugar. Essa requisição lingüística e espacial é lida nos primeiros versos do “Poema da estrangeira”[5] que abre o livro da autora: “um desejo físico/ sexual/ de espaço...”


Conciso e exato, o poema de Ângela assume uma tecitura estética que possui na vivência desejante e na busca erótica e existencial suas marcas. Nessa poética, o corpo “descanoniza” a falta, estetizando a voz que anseia por uma “pele feliz”, embora registre seu medo de “desentranhar”. Uma voz que abdica da idéia da semelhança, do mesmo, da imagem no espelho e, tentando um roteiro dialógico com a alteridade, sugere[6]

um espaço novo
desesperado
plástico

que seja corpo
mas que não seja espelho
morto

As pesquisas contemporâneas em volta da produção literária demonstram que a leitura do espaço, se não determina, pelo menos condiciona a produção de formas e linguagens. Ao tecer relações entre espaço e corpo, a autora evidencia a produção da linguagem enquanto instrumento dialógico /ideológico que identifica e inscreve o sujeito. A poética de Ângela confirma a idéia de que é escravo o sujeito sem linguagem, sem discurso. Daí porque a autora estetiza o poema, descanonizando as “bestas” que dificultam a travessia – ou a “atravessidão”, como ela prefere.

Conclusão

O desejo da escrita que afronta – e produz – o poema de Ana C., o desnudamento poético de Iracema Macedo, a consciência corpórea de Diva Cunha e a busca da inscrição do espaço da linguagem feminina sugerido por Ângela Montez.... Todos esses procedimentos estéticos possuem relação direta com a emancipação do desejo enquanto ação que possibilita a tecnologia do fazer poético. O exercício metalinguístico empreendido por essas autoras nos ensina, dentre outras coisas, que munir-se do corpo e da liberação do desejo como fontes de "realização estética” (Soares: 1999, p. 41) é uma das senha viáveis para a produção poética. Poética que possui na profundidade da pele o espaço de sua inscrição.



BIBLIOGRAFIA


01 - CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, s/d. (Col. Cantadas Literárias).
02 - CUNHA, Diva. Canto de Página. 1ª ed. Natal: Clima, 1986.
03 - ____ A Palavra Estampada. 1ª ed. Natal: CCHLA - Ed. Universitária, 1993.
04 - MACEDO, Iracema. Lance de Dardos. Rio de Janeiro: Edições Estúdio 53, 2000.
05 - MONTEZ, Ângela. Sem Fotografias. Rio de Janeiro: Achiamê, 2001.
06 - SOARES, Angélica. A Paixão EmancipatóriaVozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999.


NOTAS



[1] Cesar. A Teus Pés. p. 67.
[2] Macedo. Lance de Dardos. 2000. p. 13.
[3] Cunha. Canto de Página. 1986. p. 19.
[4] Cunha. A palavra estampada. 1993. p. 19.
[5] Montez. Sem fotografias. 2001. p. 15.
[6] Montez. Op. Cit. p. 21.