sexta-feira, 12 de junho de 2009

Walter Benjamin e um par de faróis







A inscrição da letra a partir do diálogo
entre literatura, crítica e cultura








Uma versão deste texto foi apresentada em 2004 na Semana de Humanidades da UNIGRANRIO, publicada no site Rede de Letras da Universidade Estácio de Sá e na Revista de Letras 2 do Instituto de Humanidades da UNIGRANRIO, Duque de Caixas, 2005.



As opiniões, para o aparelho gigante da vida social,
são o que é o óleo para as máquinas.

Walter Benjamin, “Posto de Gasolina”


I



O século XX, diferentemente dos séculos XVI e XVII (que ainda giravam na ordem dos movimentos celestes e das leis naturais), iniciou ritmado pela trepidação das mudanças técnicas; terminou em sintonia com as tecnologias da inteligência da era da informática. Nesse contexto trepidante de mutações tecnológicas e culturais, o teórico e escritor alemão Walter Benjamin não chegou a ir para a fogueira (como quase foi, por exemplo, Galileu, por causa de sua visão de mundo no século XVII), embora tenha precisado fugir das tropas alemãs e suicidar-se, nos anos 40, quando elas (as tropas nazistas) invadiram Paris. Amada e eleita pelo autor como a capital do século XIX, a capital francesa foi estetizada em várias de suas páginas e lida como uma cidade intimamente ligada ao livro: "Paris é um grande salão de biblioteca atravessado pelo Sena."1



Seduzido pela cidade e pelo contexto modernos, Benjamin captava, já na terceira década do século XX – sem saudosismo ou resquícios nostálgicos -, as conseqüências daquele novo ritmo maquínico e tecnológico para a cena artística e cultural. Ritmado com o "tempo do agora", o crítico releu os suportes materiais e a emergência de novas mídias no contexto veloz da modernidade. Através dessa releitura, Benjamin deixou-nos uma lição que continua em pleno vigor neste início de milênio. Segundo ele, quando mudam as formas de percepção de uma comunidade, transformam-se os seus modos de produzir arte e cultura. Por meio dessa lição, o pensador inscreveu a perda da aura do objeto artístico. Nessa releitura dos suportes materiais, o autor questionou ainda as noções de originalidade e autenticidade no universo cultural, revertendo a postura contemplativa e criando novas formas de ler os produtos construídos pela arte e pela cultura.



De olho no retrovisor da história, Benjamin rompeu com a tradição crítica e filosófica do Ocidente ao vislumbrar – no já fragmentado espelho do seu tempo – algo mais que as plenas imagens construídas pela metafísica objetiva. Como se lançasse, nos "cenários em ruínas" do pós-guerra e na paisagem tecnológica, um par de faróis ao invés de olhos, o autor das Passagens leu – na superfície embaçada daquele contexto histórico – as imagens da transformação por que passavam os modernos e a melancolia humana. Fitemos esta:






Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente de tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano




Na leitura dessa imagética, construída com base na alegoria (que, ao contrário do símbolo e suas noções de unidade, expressa a desordem e a fragmentação do sujeito e da cultura), os "faróis" benjaminianos refrataram o porvir. Descrente de qualquer idealismo, essa estética do fragmento nada mais traduzia que a crise do sujeito frente a um metonímico espaço-tempo no qual a ordem simbólica inscrita numa espécie de completude metafórica cedia cada vez mais espaço para os roteiros alegóricos da melancolia, da alteridade, do olhar estrangeiro.



Essa escritura alegórica do fragmento inscreve-se numa superfície também fragmentada, refratando a destruição dos valores que nortearam a tradição cultural do Ocidente, e a crise das formas de expressão na modernidade. Nesse período, os grandes sistemas de origem cartesiana cedem cada vez mais espaço para uma expressão descontínua e fragmentária (rica herança romântica). Esse trânsito de leituras sistemáticas para um sistema fragmentário traduz o contexto mutante e veloz da identidade e da cidade moderna - um dos mais belos objetos de leitura de Benjamin -, a partir da poética de Baudelaire. Miremos a cidade lida pelo poeta 3:



Paris muda! Mas nada em minha nostalgia
Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.



Nesse cenário moderno, as imagens do poeta e do crítico (colocadas a serviço da memória, da reflexão e dos fatos) traduzem o espaço das galés e galerias, das pessoas em trânsito por entre as passagens, das vitrines e suas mercadorias em exibição. A alegoria do poeta configura e traduz o discurso desse espaço. Nele, as coisas são arrancadas do seu habitat, produzindo incessantemente choques e novos signos para quem passa e lê. O mundo das coisas já parece refratado naquele porvir iluminado pelos faróis benjaminianos, e estetizado na sua escrita alegórica e fragmentária.



Na sua tese de doutorado O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, o autor alemão trabalha a reflexão e o pensamento conceituados por, dentre outros, Novalis e Schlegel, além da forma do fragmento inscrita por esses teóricos românticos. A partir disso, é interessante observar como a porção romântica de Benjamin vai revelar-se não na noção do "culto ao infinito"4 (segundo ele, o pensamento "mais original" dos românticos), mas na produção de uma "letra" que, sintonizada com os fatos, possui no fragmento sua forma.



Essa opção por uma fragmentada escrita alegórica não prova nem funda nenhum sistema. Ela é típica de uma letra que se inscreve num espaço da escrita no qual a produção do sentido opera, constantemente, com o tempo presente e com as derivações oriundas do porvir. Opera principalmente com a certeza de que a leitura do espaço possibilita a interpretação de novas formas de viver e de ler a história e a cultura. Diferentemente de Adorno, Benjamin conseguiu ver como “terapêuticos” os filmes da Disney e inscreveu como arte a fotografia. E o que nos aprece mais importante: a recepção óptica do autor vislumbrou na arquitetura e no cinema a "dominante tátil" que reestrutura a percepção moderna 5:



...essa dominante tátil prevalece no próprio universo da ótica. É justamente o que acontece no cinema... O cinema se revela assim... o objeto atualmente mais importante daquela ciência da percepção que os gregos chamavam de estética.


Na leitura que aciona deste contexto onde a visibilidade rouba a cena, Benjamin conclui que a distração coletiva também opera nas estruturas perceptivas, e que: se o “espetáculo” estético dos gregos era servido aos “deuses olímpicos”, a nossa espetacularização - a nossa “auto-alienação” - é consumida por nós próprios, com a cota de “destruição” e “prazer estético” a que temos direito. Na pós-modernidade, essa cota de “destruição” e “prazer estético” pode ser medida, dentre outros, pela estetização do nosso cotidiano maquínico e virtual e pela perene procissão de consumidores em adoração aos produtos expostos nas vitrines dos shoppings centers.


II



Além daquela estética do fragmento, uma outra herança romântica pode ser vislumbrada na obra benjaminiana em relação à crítica de arte. Sua leitura da crítica leva em conta uma escrita que, ao tentar refletir ou interpretar sobre, termina refletindo (ou refratando?) o próprio intérprete da reflexão ("intérprete" esse antes cognominado com a horrorosa expressão "juiz da arte", e que a partir do Romantismo passa a ser conhecido como "crítico de arte").


No exercício de sua reflexão crítica, Benjamin coloca, na referida tese de doutorado, as ações de pensar e refletir no mesmo plano. Isso é feito a partir do pensar definido por Schelegel como "a faculdade da atividade que volta sobre si mesma, a capacidade de ser o Eu do eu...".6 Para Schlegel, esse pensamento não tem nenhum outro objeto senão nós mesmos. Segundo o teórico romântico, o objeto do pensamento é o próprio eu, o que remete à etimologia da reflexão para concluir que pensar o objeto é pensar a si. Logo, com base nessa visão romântica, quando inscrevemos determinados temas, formas, linguagens ou idéias, numa correlação que se constitui no objeto de nossa própria matéria reflexiva, inscrevemos a nós mesmos.


Se, como diz Schlegel, um crítico é "um leitor que rumina" e precisa ter mais de um estômago, Walter Benjamin é talvez o ruminante mais representativo da arte e da cultura produzidas no século XX. Sua leitura "rumina", digere e inscreve o ritmo da cena mutante das primeiras décadas do século XX (essa leitura do crítico enquanto ruminante é também acionada por Rouanet – um leitor dos Itinerários freudianos em W. Benjamin. Talvez influenciado pela romântica herança benjaminiana, o autor de Édipo e o Anjo7 diz que a ruminação do crítico "não cessa enquanto seu objeto não tiver sido totalmente consumido").



A ruminação benjaminiana ultrapassa a esfera das letras. Ele "rumina" cinéfilos, arquitetos e, dentre outros, pintores como Paul Klee. "Angelus Novus" (acima reproduzido) - quadro do pintor suiço que foi influenciado pelas vanguardas européias - é lido por Benjamin como uma representação do anjo da história, cujo rosto volta-se para o passado enquanto uma tempestade (o progresso) o move para frente. Ao "ruminar" Rimbaud, Proust, Brecht, Kafka, Breton e Baudelaire, dentre outros, Benjamin leu o imaginário e as memórias dos séculos XIX e XX, e a partir do olhar daqueles autores erigiu uma leitura bastante curiosa do seu entorno. Talvez essa leitura tenha sido influenciada por uma outra "aquisição" romântica herdada por Benjamin: a noção de uma "crítica poética"8 que se constitui no "método de acabamento" da obra de arte; não apenas no seu julgamento. Como na estética romântica, o objeto da arte "promove" sua própria crítica e esta possui estatuto artístico, elimina-se a "hierarquia" entre as produções críticas, artísticas, filosóficas ou culturais.



Advinda dos românticos, essa leitura da crítica de arte foi bem "ruminada" por Walter Benjamin - um crítico que gostava de ouvir e cujos olhos afetuosos fingia, nas fotos, ignorar a câmara. Atento a noção de ruptura de gêneros na esfera literária, sua “letra” apresenta traços de romancista (ele ficcionalizou alguns cenários urbanos e deu vida a vários personagens), além de ostentar aspectos de uma poética cuja linguagem tem por base um arsenal de imagens urbanas que altera a noção de escrita crítica e acadêmica.



Lendo Baudelaire como o primeiro poeta que precisou reivindicar "a dignidade do poeta" numa sociedade onde não havia mais dignidade, Benjamin diz que, no autor de As flores do mal, anuncia-se, pela primeira vez, a "pretensão" poética de um "valor de exposição". Alegorizando o próprio Benjamin, poderíamos insinuar ser ele o primeiro autor a reivindicar, no espaço discursivo da crítica, a inscrição dessa crítica como "valor de exposição" (reivindicação essa sugerida no intertexto que o autor estabelece com outras artes – a fotografia, o teatro, a arquitetura, o cinema... – e na leitura que ele empreende dos novos suportes culturais). Isso ocorre numa sociedade na qual a “letra” – perdendo sua aura, a densidade ornamental e seu poderio retórico – começa a migrar para outros suportes dialogando com outros campos do saber e da informação midiática.



O intertexto entre a “letra” e esses outros campos do saber, possibilitou a estetização de um texto que introduz, no discurso crítico e acadêmico, um "tom imaginário" (Ana C.). Essa mescla entre imaginação e crítica amplia, através da escritura de Walter Benjamin, aquela noção de ruptura de gêneros a qual nos referimos acima. Como um cronista do século XX, ele narra os acontecimentos, "sem distinguir entre os grandes e os pequenos". Cria, ao dialogar com os vários campos da criação e do saber, uma espécie de narrativa crítica e imaginária da arte e da cultura modernas, a ponto de hoje podemos falar de uma "letra" benjaminiana (e, com base nisso, ressaltar o caráter migratório da letra no cenário contemporâneo).



A inscrição dessa "letra" ultrapassa o universo crítico, e pode ser vislumbrada na esfera da própria criação literária. Exemplo disso encontra-se numa assertiva do escritor João Gilberto Noll. Segundo o autor de A céu aberto em declarção feita ao Jornal do Brasil, Benjamin "substituiu um certo tipo de romance que anda meio escasso", já que seu texto emite uma voz "quase" "ficcional". Outro exemplo dessa "letra" que influencia não apenas os críticos mas é também celebrada pelos escritores contemporâneos pode ser lido no poema "Para Walter Benjamin", de Eucanaã Ferraz. Nesse texto, o poeta de Martelo lê na escrita do crítico que tinha obsessão por citações e para tocar as coisas uma "poesia indecisa (...) munida de dúvida e método".9



Ecos de uma voz "quase" "ficcional" e dessa "poesia indecisa" – e do que possa configurar uma "letra" benjaminiana – podem ser ouvidos, principalmente, nos fragmentos do seu belo livro Rua de Mão Única. Nesse texto de 1928, Benjamin estetiza takes de sua infância em Berlim, e lê – como se fossem páginas – as ruas e os rostos de várias cidades (Nápoles, Moscou, Paris, Marselha...), além de inscrever micro-cenários cotidianos a partir das "imagens do pensamento". Em certas passagens dessa letra moderna, os takes e/ou páginas – evocadores de uma imagética reflexiva e memorialísitica – emitem um tom "quase" narrativo e meio descritivo, muito próximo do gênero romanesco. Essa tonalidade romanesca é audível, por exemplo, na "Parada para não mais de três carruagens".1o Ouçamos:



Há nos casarões de aluguel uma música de tão mortalmente triste desenvoltura que não se quer acreditar que ela seja para quem está tocando: é música para os cômodos mobiliados, onde alguém se senta aos domingos mergulhado em pensamentos, que logo se guarnecerão com estas notas, como uma bandeja de frutas excessivamente maduras se guarnece com folhas murchas.


Chama atenção, nesse fragmento de tonalidade imaginária e em algumas outras "ruas" do referido texto, a estetização das coisas miudas, dos cômodos, da bandeja. Isso parece demonstrar a necessidade que o sujeito moderno ostenta de investir-se e reconhecer-se nos objetos ao seu redor. Depara-se, no referido texto, com recursos reflexivos e imaginários (os sonhos anotados, os intertextos com autores e personagens literários...), podendo-se vislumbrar vestígios dos procedimentos estéticos que configuram uma outra tecnologia literária, além do objetivo crítico. O texto é construído num estilo que aproxima procedimentos literários de dados referenciais, alusões históricas e refexões filosóficas.



Há na escrita de Walter Benjamin um trabalho singular com a linguagem. Essa escrita às vezes irônica e paradoxal não descarta as construções imaginárias aliadas ao registro dos fatos e de takes existenciais. Esse arsenal estético, cultural e verbal transforma-se em faróis que alumiam os “cenários em ruínas” da contemporaneidade e auxiliam bastante nos roteiros de quem lê ainda hoje.



BIBLIOGRAFIA


01 - Adorno, W. Theodor e Horkheimer, Max. “O conceito de esclarecimento” e “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” in Dialética do esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.


02 - Baudelaire, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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03 - Benjamin, Walter. Magia e Técnica. Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas V. I).
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04- _____ Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho/ José Carlos Martins Barbos. 5ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995. (Obras Escolhidas V. II).

05 - _____ Charles Baudelaire. O lírico no auge do capitalismo. Trad. José Maria Martins Barbosa/ Hemerson Alves Baptista. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas V. III).

06 - _____ O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Prefácio e Notas: Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras/edusp, 1993. (Biblioteca Pólen).

07 - _____ “Parque Central” in Walter Benjamin. Sociologia. Hothe, Flávio R. (Org. E Introd.). São Paulo: Ática, 1985.

08 - _____ “Paris, capital do século XIX” in Teoria da Literatura e suas fontes. Lima, Luiz Costa (Seleção, Introd. E Revisão Técnica). 2ª ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. (V. II).
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09 - Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés/ Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Cia. Das Letras, 1987.
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10 - Ferraz, Eucanaã. Martelo. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

11 - Konder, Leandro. Walter Benjamin. O marxismo da melancolia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989.


12 - Rouanet, Sergio Paulo. Édipo e o Anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

13 - Schlegel, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Trad. Prefácio e Notas: Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994. (Col. Pólen).



NOTAS


1 - Benjamin. Rua de Mão Única. 1995. p. 195.
2 - Benjamin. Magia e técnica arte e política. 1993 (a). p. 115.
3 - Baudelaire. As Flores do Mal. 1985. p. 327.
4 - Benjamin. O Conceito de crítica de arte... 1993 (b). p. 35.
5 - Benjamin. Op. Cit. 1993 (a). p. 194.
6 - Benjamin. Op. Cit. 1993 (b). p. 30.
7 - Rouanet. Édipo e o anjo. 1990. p. 17.
8 -Benjamin. Op. Cit. 1993 (b). p. 77.
9 -Ferraz. Martelo. 1997. p. 40.
10 - Benjamin. Op. Cit. 1995. p. 44.