quarta-feira, 24 de junho de 2009

Quem filmou Cascudo?



O RN na rede


Publicado nO Jornal de Hoje, Natal, 1998



Faço questão de ser tratado por esse vocábulo que tanto amei: professor. Os jornais, na melhor ou na pior das intenções, me chamam folclorista. Folclorista é a puta que os pariu. Eu sou um professor. Até hoje minha casa é cheia de rapazes me perguntando, me consultando.


(Câmara Cascudo)


Associar o escritor Câmara Cascudo (1898 — 1986) ao contexto da modernidade tornou-se lugar comum. Autores como Veríssimo de Melo, Tarcísio Gurgel e Humberto Hermenegildo escreveram sobre as relações e experiências do nosso melhor escritor com os autores modernos e com os procedimentos artísticos e culturais da modernidade. Mesmo o pioneirismo e a conexão de Cascudo com as vanguardas, já foram analisados por Anchieta Fernandes, no Jornal O Galo, Agosto/98.

A leitura das Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo atesta o desdém do poeta paulista por autores como Marinetti, por exemplo, e registra a perene admiração devotada a Cascudo (com exceção de uma certa “carta terrível”, como diria Veríssimo de Melo). Pena que a correspondência de Cascudo para Mário, depositada no IEB - Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, continue inédita; o que dificulta o nível de entendimento daquela relação (entre os dois autores), e dificulta também a leitura das conexões do RN com o contexto da modernidade nacional.
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"Meu pai dizia que a rede fazia parte da família.
A rede colabora no movimento dos sonhos."



Ao nosso mestre que se considerava um homem "mais de fé do que de culto", o poeta paulista pedia lendas líricas para incluir em seu livro Macunaíma. Pedia também informações musicais, encomendava texto para jornal paulista e, referindo-se aos escritos de Cascudo, dizia: “A palavra na mão de você é feito guampa de marruá danado, chuça a gente direito mesmo. Se tem uma impressão até física, puxa!” (Carta de 22-VII-26).

A “impressão até física” sugerida por Mário de Andrade, em relação à palavra de Cascudo, é sentida em textos como Prelúdio e Fuga do Real (FJA, 1974). Neste livro, o autor esbanja amplo repertório de informações e saberes, além de um denso exercício reflexivo e imaginário, ao dialogar com, dentre outros, um elenco de mitos (Pan, Píndaro, Midas, Caim), reis e patriarcas (Nicéforo, Henrique IV, Ramsés II, Felipe II), filósofos (Heine, Rousseau), personagens (Judas, Pangloss, Maria Madalena) e autores (Menippo, Machiavelli). Esses seres são “Mortos-que-vivem”. A eles Cascudo empresta linguagem. Contextualiza, através desse empréstimo lingüístico, um intertextual “Diálogo dos Mortos”, tecendo um princípio de sonho - “produto da química cerebral, ou da mecânica intelectual inconsciente” (Prelúdio... p. 269/270).

67º volume da obra do historiador e antropólogo potiguar, esse livro ostenta um escritor que mergulha em tempos e espaços os mais remotos. Esse cronotopo vai da poltrona de um avião a um velho hotel do Rio; parte de sua biblioteca particular no bairro da Ribeira, passa pela Praia do Forte, em Natal, e chega à ilha de Moçambique (onde Cascudo encontra Camões). Destes cenários, o autor envia “impressão até física”, além de figurações mentais e imaginárias de seus parceiros dialógicos. A partir desses intertextos, são questionados temas e conceitos como arte, cultura, história, espaço, tempo, verdade, realidade... “Andei e li o possível no espaço e no tempo. ...Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória”, escreveu Cascudo, em texto publicado por Veríssimo de Melo em Patronos e Acadêmicos (Ed. Pongetti, Rio, 1974).

Em sua “fuga” reflexiva e imaginária, Cascudo doa asas ao leitor que, preludiando o vôo, depara com um prazeroso Epicuro; dialoga com um Erasmo de Roterdam - “A urtiga no caminho” - lendo o Latim como língua através da qual respira. O leitor encontra também nesta páginas um Aristófanes reclamando da tradução de suas comédias; um Dom Quixote de la Mancha que reverencia a intuição e Cervantes, seu pai; e um Camões cascudiano que, “andando e bracejando” declara: “Depois do Amor, só me sentia Poeta cantando o Mar. Exaltei o esforço humano em serviço da Raça, vencendo o Mar! Esse mural era agitado pelas sonoras tempestades inspiradoras. ...LUSÍADAS foi escrito com água salgada, lágrimas de homem e espuma do Mar!” Esse "Mar" é, para Cascudo, "o avô do homem”.

A atitude poética de Cascudo

Além dos autores modernos e dos artistas de vanguardas, como nos referimos no início deste texto, Câmara Cascudo continua sendo lido, reverenciado por gerações pós-utópicas, pós-vanguardas, pós-modernas, pós-sabe-se-Deus-lá-o-quê ... No curso “Os sentidos da paixão”, promovido pela Funarte e lançado em livro pela Companhia das Letras (1987), há prova de que a leitura de Cascudo continua muito em voga no cenário cultural contemporãneo. Ao falar sobre “Poesia: a paixão da linguagem”, naquele evento carioca, o poeta paranaense Paulo Leminski é interpelado, no debate aberto ao público, por um contrafeito “ouvinte” da platéia. Este participante apresenta-se como cineasta. Dizendo-se insatisfeito com a fala do Leminski acerca de amor e poesia, o “ouvinte” pronuncia um longo discurso público. Neste, vale-se de, dentre outros, Mário de Andrade e Câmara Cascudo como parâmetros temáticos, já que para ele - o “ouvinte”, o conceito de amor vai além do sentimento de posse proposto pelo imaginário burguês, e a poesia extrapola os limites da linguagem verbal.

Com a palavra, o interlocutor de Paulo Leminski, cuja câmera leu Cascudo: “Um outro cara que eu também fiz um filme é o Câmara Cascudo. Um cara como o Câmara Cascudo morre, os jornais dão uma notinha deste tamanhinho, escondidinho, um cara que deveria ter estátua em praça pública, devia ser lido, recitado. O caso do Câmara Cascudo é um caso típico, para mim, fortíssimo, do amor total. A atitude dele foi muito mais poética do que milhões de poetas que eu conheço, porque ele dedicou a vida dele inteira ao conhecimento da cultura brasileira. É um cara que ia para feira conversar com o feirante, ia bater um papo com a puta, o violeiro, a vida dele foi dedicada a isso, a resgatar essa cultura, fortíssima, que existe, mas não sai no Caderno B do Jornal do Brasil.” (Os Sentidos da Paixão, p. 301).

Cascudo escreveu sobre tudo isso mencionado pelo participante. Ouvindo no excesso de barulho o mal-do-século, vendo a “Rede de Dormir” como “parte da família”, lendo Canto de Muro como o seu texto que mais o “agrada”, Cascudo merece re-leitura por parte dos brasileiros e, principalmente, dos potiguares. Mais citado que lido, como sugere o escritor Carlos de Sousa, o autor de Mouros, Franceses e Judeus (Perspectiva, 1984) elaborou uma obra cuja “arquitextura” moderna reconstrói o passado, e possui nostálgicos olhos quixotescos que chegam a ver na modernidade a “câmara secreta da Santa Inquisição”. (Prelúdio... p.159). Apesar disso (ou por isso mesmo), Cascudo e os seus 155 títulos - enumerados por Diógenes da Cunha Lima na 3ª edição de Câmara Cascudo: um brasileiro feliz -, formam a matriz que impulsiona nossa arte e contribui para a difusão das letras neste espaço carente de assinatura. Espaço cujas nomenclaturas e histórias - de ruas e raças, pastos e praças, becos e bairros, mitos e lendas - são escritas por um autor que, resgatando sua afetiva geografia pessoal, inscreve-se no espaço universal da arte e da cultura.

No espaço artístico e cultural do eixo-Sudeste, qual cineasta fez o filme ao qual ele próprio faz referência, ao manifestar-se no evento “Os sentidos da paixão”, promovido pela Funarte? Sabemos, via Diógenes da Cunha Lima, do “ótimo filme sobre Cascudo, produzido por Zita Bressane”. Com a palavra os leitores, cinéfilos, estudiosos de Cascudo, teóricos do fazer poético, do discurso amoroso, dos afetos gráficos e geográficos... Além de Zita, quem filmou Cascudo?