domingo, 14 de junho de 2009

A crônica epifânica de Caio Fernando Abreu


Para TT Bezerra, antiga leitora de Caio F.



Uma versão deste texto foi publicada no Jornal Tribuna do Norte, Natal, 17/02/1998









Capa da primeira edição de 1996

O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996) é reconhecido internacionalmente como exímio contista. Esse reconhecimento pode ser expresso num take biográfico vivido por ele numa de suas várias temporadas na Europa. Uma historinha bastante inusitada e ambígua, parecida com algumas das pequenas narrativas criadas pelo autor, sintetiza o take. No final dos anos 80 em Paris, o escritor - reconhecido no Brasil e traduzido na Europa - sobrevivia lavando louça. Quando ia para o trabalho, Caio passava por uma loja cuja vitrine expunha seus títulos mais cultuados - Morangos Mofados (1982), Triângulo das águas (1983) e Os dragões não conhecem o paraíso (1986). Além destes livros, 12 outros títulos compõem a bibliografia do escritor.

Pequenas Epifanias (Ed. Sulinas, 1996) é um volume com 61 crônicas escritas para o jornal O Estado de São Paulo, entre 1986 e 1995, mais um texto inédito, sem data e com o seguinte título: “No dia em que Vargas Llosa fez 59 anos”. O livro é organizado por Gil França Veloso, possui orelhas de Frei Beto falando em “fraternura” (Guimarães Rosa) e um amoroso “Quase Prefácio” de Maria Adelaide Amaral, grande amiga do escritor. Nestas crônicas, assim como nos contos de Caio, são notórias algumas características estéticas e alguns procedimentos literários marcantes de sua obra, tais como:

1- A construção de uma narrativa centrada na ação do olhar e construída por um sujeito que se desconstrói. Essa desconstrução pode ser aferida em, dentre outros textos, “Pálpebra de Neblina”, “Paisagem em movimento” e “61: Verdade Interior”.

2- A consciência da epifania enquanto possibilidade de revelação crítica e existencial, através da linguagem. Textos como “As nuvens, como já dizia Baudelaire”, “Entrevisão do trem que deve passar” exemplificam essa consciência.

3- A elaboração de um texto escrito com o próprio corpo - esse laboratório sensorial de percepções ambulantes - atestando as relações entre corpo e escritura. Isso pode ser lido, dentre outros escritos, na crônica “Infinitivamente pessoal”.

4- A recorrência ao universo dos sonhos, dos delírios, das alucinações e seus mecanismos de criação, como um dos procedimentos artísticos herdados dos escritores modernos e das vanguardas européias - principalmente dos autores surrealistas. A crônica “Por trás da vidraça” é exemplar dessa recorrência, onde os sete parágrafos do texto abem-se com a mesma frase: "Sonhei que você sonhava comigo".

5- A produção de uma escritura que se repete, recomeça infinitamente, permanece muitas vezes em aberto. Sugerido um diálogo com o leitor, essa escrita é balizada por estágios de multiplicidades e pela constância daqueles paradoxos caros ao estilo barroco, como exemplifica "O mistério do cavalo de Édipo”.


Restrinjo-me, neste texto, aos dois primeiros procedimentos estéticos acima mencionados: a narrativa centrada na ação do olhar e na consciência epifânica. É interessante observar como, nestes textos publicados no jornal em meados da década de 90, Caio faz uso de uma mesma estratégia estética da qual ele diz utilizar-se a escritora Ana C. - um dos "nomes cheios de sangue" de "No centro do furacão". Essa estratégia consiste em vislumbrar o segredo do outro, em "espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura", como escreve o autor na contracapa de A teus pés - livro publicado por Ana C em 1982. Esse vislumbramento parece ter como alvo a fenda imposta pela fala, pela brecha onde, por vezes, o real (?) revela suas faces menos previsíveis.

Em Caio, esse olhar para o outro instaura a narrativa do olhar invisível, sem interação. Pequenas Epifanias é um texto inscrito num tempo no qual a oralidade cede cada vez mais espaço para o que permanece na ordem do visível. Embora dê conta dessa visiblidade, não há diálogo óptico entre quem vê e quem é visto. Trata-se, na maioria destas crônicas, de um olho que olha mas não se deixa ver. Há sempre nestes escritos um olhar “por trás da vidraça”, uma mirada através da janela, um take delimitado por entre persianas.
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Pequenas Epifanias regista o olhar de um “estranho estrangeiro”. Esse olhar envereda por entre o sensorial, o imaginário e o reflexivo, inscrevendo a visão de quem convive com a fragmentação moderna e estetiza os cenários solitários da metrópole. Há nesse registro a consciência da incompletude da narrativa (lembremos principalmente os contos de Morangos Mofados), e a necessidade de manter-se isoladamente vivo em seu diálogo com o outro (mesmo que essa vivência se dê através da fresta, pelo "buraco da fechadura").

Há nestas Pequenas Epifanias um sujeito que vislumbra o espaço externo a partir de uma leitura interna que tem por base elementos psíquicos, afetivos, existenciais. Processo esse que se dá pela interação entre uma memória fragmentada, os “rasgos” imaginários e o intertexto entre autores com os quais Caio freqüentemente dialoga ao longo de sua produção narrativa: Carlos Drummond, Frida Khalo, Reinaldo Arenas, Ana C., Ferreira Gullar, Caetano Veloso e Clarice Lispector, dentre outros. Essa intertextualidade é um dos procedimentos modernos mais destacados em crônicas como “Carlos chega ao céu”, “Um uivo em memória de Reinaldo Arenas” e “Frida Khalo, o martírio da beleza”. Nesta última, Caio faz referências a filme, exposição, diário, biografia e canção que remtem a pintora por quem sentia-se perseguido. "Há anos Frida Khalo me persegue" - diz a primeira frase da crônica.

A crônica epifânica de Caio Fernando inscreve, como ocorre em várias narrativas do final do século XX, uma estetização existencial. Nela, vida e linguagem parecem urgentemente em sintonia com o que o devir - e suas epifanias - instauram de possibilidades e te(n)são. Para o autor gaúcho, a epifania consiste numa “revelação do divino que se infiltra no dia-a-dia". Para ele, as epifanias "são manifestações de um cotidiano áspero que vêm modificar uma realidade maior”. Essas “manifestações” tornam-se mais visíveis na 2ª parte de Pequenas Epifanias. Neste espaço do volume, o autor narra seus (des)encontros com deuses, diabos, mitos, anjos, homens e com um dos principais "personagens" deste livro - a morte. Essas narrativas esboçam um perfil do próprio fim de quem escreve, como registram, entre outros, dois textos: “Os anjos da febre e a mão de Deus” e “Mais uma carta para além dos muros”. Nesta última, lê-se: "E de repente, talvez porque eu tenha lido e sonhado e visto filmes demais, a cara transformou-se na da Górgona."

Além do exercício de uma linguagem enxuta, veloz e cortante (que muito traduz deste espaço-tempo finissecular), além das relações que se tecem entre a vida e a letra, estas crônicas desvelam a inquieta e complexa personalidade do autor rumo à morte. Mostram takes cotidianos de um sujeito que, à semelhança do escritor Reinaldo Arenas e do compositor Renato Russo, foi vencido pela Aids. Mas a história não acaba aí. Lega-nos seu autor uma obra e um projeto existencial referendados pela ética e pela criatividade - dupla de valores bastante em falta nos cenários em ruínas da pós-modernidade.