quinta-feira, 11 de junho de 2009

O Pássaro que devorou o tempo






Impressões sobre o tempo na "letra" de Renato Russo


Revista Folhas de Relva, ano 01 - nº 01, Natal, 1998



O imperfeito não participa do passado
Renato Russo


Esta última década do século XX vem demonstrando que a cultura de massa e a arte moderna produzem cada vez mais mitos com a mesma rapidez com que os devoram; ou matam. O tempo que patrocina essa produção é mediado pelos signos da fragmentação, da simulação, da mercantilização. Nestes "cenários em ruínas", tudo é consumido com a velocidade característica da pós-modernidade e suas conexões com as idéias de superfície e rapidez.

A mídia, em sua ânsia diária à cata da última novidade, tem o poder de descartar hoje à noite o novo matutino lançado como tendência promissora; a academia, balizada pelo rigor e por um saber construído num arquivo de “altas literaturas”, às vezes deixa para amanhã o que poderia muito bem ler hoje. Em meio a esses extremos, situa-se uma produção que, atenta aos termômetros da produtividade e aos procedimentos estéticos contemporâneos, distingue-se pela qualidade (nem sempre original ou experimental) e pela possibilidade de consumo. São procedimentos relativos aos gêneros da cultura pop. Apesar disso, o tempo vem demostrando que alguns produtos dessa cultura perdura.

No caso da banda Legião Urbana - ou Renato Russo, mais especificamente -, ouvimos uma arte sintonizada com os tons característicos da contemporaneidade, e que consegue a proeza de chegar aos ouvidos de segmentos sociais os mais diferenciados e longínquos. Ouve-se Renato cantando “Tempo perdido” e “Faroeste Caboclo” na rádio AM que alcança tímpanos agrários, assim como ouvidos urbanos e letrados - antentos às vozes pasteurizadas da FM e à limpidez do CD - escutam essas mesmas canções populares em sintonia com sofisticados CDs como The Stonewall e Equilíbrio Distante. Renato consegue esse equilíbrio midiático e estético que Caetano Veloso, por exemplo, dificilmente atinge (mesmo tendo composto uma bela “Oração ao tempo” no final da década de 70).

do tempo do planalto ao planalto do tempo

Jornalista e ex-professor de inglês, Renato criou o seu sobrenome artístico para homenagear uma trindade de sua admiração: Jean Jacques Rosseau (pensador), Henri Rousseau (pintor) e Bertrand Russel (filósofo). Leitor de Drummond, Pessoa, W H Auden, Shakespeare, Adélia Prado e admirador de textos como o Tao Te King, Zen e a arte de manutenção de motocicletas e O discurso da servidão voluntária, o autor de “Acrilic on Canvas” escreveu versos como os seguintes que o inscrevem definitivamente na poética de sua geração: "Fiz carvão do batom que roubei de você/ E com ele marquei dois pontos de fuga/ E rabisquei meu horizonte". O horizonte poético de Renato Russo é visivelemente “rabiscado” por uma musicalidade que elege o tempo como elemento determinante de sua criação. "Porque o tempo é mercúrio - cromo/ E tempo é tudo que somos" (“La nuova gioventu”).

Ouvimos os textos do Renato como fragmentos de uma longa sinfonia sobre o tempo; como se ele compusesse para o tempo uma trilha poética e musical. Essa trilha apresenta uma poética cujas estruturas rítmicas são calcadas na sucessão de ciclos, dias, horas, momentos, encontros, datas, estações, números e “palavras repetidas” (basta uma mirada nos títulos e epígrafes de álbuns e canções, e lá está o “mano velho” tempo tecendo a trama). Time como personagem principal... Como forma de conhecimento e de percepção, o “tempo-rei” parece governar uma sucessão de experiências intuitivas e delineiar as ações construtoras desta poética.

Lemos aqui o tempo como um “fenômeno” calcado numa coleção de eventos cíclicos e sucessivos, e que possibilita a leitura do sujeito e do espaço no qual ele atua, sempre em mutação. O tempo caracteriza-se, portanto, por estar contido na noção de diferença. Está também contido numa espécie de diferenciação existencial; na eterna possibilidade de criação e concretude do desejo, cujo fluxo promove a tessitura do texto e dos estágios determinantes de nossas vidas: passado, presente e futuro.

A leitura do tempo tem sido mutante por parte de várias civilizações. De divindade maia a “marco” matemático utilizado pela física para descrever seus fenômenos, o tempo foi também identificado como “rio divino” pelos gregos. Os gregos e romanos atribuíam ao tempo uma pluralidade divina. Para esses povos, havia o Deus de vários momentos, desde o instante de espanto dos cavalos até a divindade representativa do momento de arrancar ervas daninhas. Mas, dentre as divindades do tempo, Cairos tinha destaque especial: “personificava a coincidência feliz das circunstâncias favoráveis para a ação” (Marie-Louise V. Franz). Muito depois, o tempo foi identificado como Crono e Eon - Deuses na antiga civilização grega. Esses deuses eram referências “ao fluido vital dos seres vivos”, segundo esta estudiosa jungiana. Para ela, “a oscilação, a serialidade e a periodicidade tornam mensurável o tempo”, em algumas civilizações; na Índia, por exemplo, predominava uma noção absolutamente cíclica do tempo.

Na linear tradição judaico-cristã, o tempo tem início bem ali no “Gênese”, depois que Deus cria o dia e a noite, o sol e a lua e separa as águas. Na coletânea bíblica, os versos do Eclesiastes expressam a solidão e a dualidade características do humano que vivencia a temporalidade terrena. Sobre isso, diz Qohélet - o que sabe, na “transcriação” poética de Haroldo de Campos: "Para tudo/ seu momento/ E tempo para todo evento/ sob o céu/ Tempo de nascer/ e tempo de morrer/... Tempo de ânsia/ e tempo de dança".

Herdeiro dessa tradição que a tudo separa numa polaridade que possui na dialética o seu roteiro, Renato sonoriza a subjetividade temporal do afeto e o estágio da perda. Sua música tenta dar conta do ritmo da comunhão e do descompasso da solidão; do movimento dos barcos e da mudança dos ventos; do “fluir temporal” da busca e das harmonias do encontro. Uma audição de sua obra sugere que o intérprete de “If tomorrow never comes” sabia que "há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade/... há tempos o encanto está ausente/ e há ferrugem nos sorrisos/ e só o acaso estende os braços/ a quem procura abrigo..."

“Há tempos” é apenas um dentre os muitos textos do Renato que remetem a este “ser” que possui a imprevisibilidade como natureza própria: o tempo. O CD no qual a canção inclui-se tem como título uma forte alusão atinente ao tema: As quatro estações. Nesta obra que exibe a maturidade da banda Legião Urbana, o autor opera com procedimentos como a cópia e a construção de simulacros (Camões, Coríntios, um texto inglês do século XVII...) e tematiza uma “doutrina dos ciclos” que remete a autores como Jorge Luís Borges. Induzido por Sônia Maia (Revista Bizz, Junho de 1989) a falar sobre o título deste álbum, Renato disse:

Gostaria que fosse sobre ciclos, a perda da inocência, você atingir um certo estado em que perdeu alguma coisa e, ou vai para o lado deles, ou retrabalha e reconquista isso. ....Mas seria basicamente isso: primavera, verão, chega o outono e caem todas as folhas. E no inverno fica a árvore toda daquele jeito. É como se a gente estivesse chegando no inverno. Mas aí vem vindo a primavera de novo. Quer dizer, você pode escolher ter uma nova primavera. A maior parte das pessoas que eu conheço fica no inverno, e eu acho ser esse o maior problema delas. ...o mais importante é a gente redescobrir as coisas...

Sonorizando as estações - signo recorrente nesta poética -, quase todos os textos deste álbum caracterizam-se por sugerir um sujeito que estetiza a existência, sintonizado com o tempo no qual se situa. Neste álbum, várias questões urbanas são relidas por um prisma ético/estético, de cunho espiritual/existencial, e não apenas sócio-político, como predominava nos álbuns anteriores - principalmente no 1º e no 3º. Na balada “Pais e Filhos”, Renato canta, de ouvido na fragmentação oral do cotidiano urbano, que "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã". Na canção “Quando o sol bater na janela do teu quarto”, o sujeito que busca saída na atemporal doutrina do Buda informa/indaga: "até bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo/ quem roubou nossa coragem?"

Na sequência das letras, o romântico texto a seguir - “Eu era um lobisomem juvenil”- aposta na simultaneidade contemporânea ao anunciar que tudo acontece ao mesmo tempo. Essa aposta lembra o conceito de sincronicidade criado por Jung, utilizado por Marie-Louise em “Ritmo e repouso”. Segundo essa conceituação,

...a coincidência dos acontecimentos no espaço e no tempo significa algo mais que puro acaso, isto é, uma interdependência peculiar dos acontecimentos objetivos entre si, assim como com estados subjetivos (psíquicos) do observador...

A noção de tempo, na obra de Renato Russo, parece remeter às mitologias e seus aspectos cíclicos de temporalidade. Seus textos estão entremeados de referências a um tempo que retorna, apontando perenes acontecimentos sincrônicos - “atos de criação no tempo” (Jung).

"Temos paz, temos tempo" - entoa o eu da próxima canção de As quatro estações, que traz no próprio título a delimitação de um ciclo temporário: “1965 (Duas Tribos)”. Contrário a esse eu datado, o outro que estetiza alguns versos bíblicos pede piedade ao cordeiro de Deus, e leciona uma metodologia afetiva de caráter universal: "Quando se aprende a amar o mundo passa a ser seu /...estava longe de sereno/ e fiquei tanto tempo duvidando de mim (“Se fiquei esperando meu amor passar”).

Questionar, esperar, duvidar de si são procedimentos comuns ao sujeito que vivencia sua subjetividade num espaço cuja imagética é mutante e fragmentada; num tempo cujos fenômenos extremos são mediados pela força da virtualidade, seus ritmos e movimentos - elementos criadores de uma outra concepção temporal.

No 2º disco da Legião Urbana, uma das canções mais elaboradas e entoadas pelo público associa tempo e a religião: "Quem me dera, ao menos uma vez,/ entender como um só Deus/ ao mesmo tempo é três". Nestes versos da pujante letra de “Índios”, a indagação e a dúvida - parceiras de quem cria e investiga - surgem ritmadas pela velocidade lingüística da contemporaneidade. De ouvido atento a essa linguagem, percebemos que Renato fala a língua dos homens do seu tempo, como ensina-me o poeta Pablo Capistrano.

O olhar e o ouvido contemporâneos de Renato Russo possibilitam ouvirmos uma obra cujo "narrador" sugere um detetive que estetiza o tempo (passado); um "narrador" que tenta produzir no presente alguns signos reveladores do futuro ("E o futuro não é mais como era antigamente"). Essa possível produção de signos acontece como se o presente redimisse imperfeições passadas ("Agimos certos sem querer, foi só o tempo que errou") e a memória re-lida se lançasse ao futuro tecendo Uma outra estação (Título que batiza o CD póstumo da Legião).

da arte do encontro aos desencontros do tempo

Em Questões de Literatura e de Estética, M Bakhtin trabalha a noção do cronotopo (a relação espaço-tempo) e cita o “motivo do encontro” como importante elemento constitutivo do romance. Nessa teoria bakhtiniana, a narrativa se desenvolve até que um certo personagem depara (ou não) com um outro e pronto: o tempo muda, alguma coisa divina acontece... Segundo o teórico russo, esse (des)encontro pode influir no clímax da história ou mesmo no desfecho do enredo.

Nos outros gêneros literários percebemos que este “motivo” cronotópico não é menos assíduo: "...esperamos que um dia nossas vidas possam se encontrar", anuncia o aspirante ao encontro de “O teatro dos Vampiros”, buscando reler o tempo passado: "...voltamos a viver como há dez anos atrás". Na produção textual de Renato Russo, o “motivo do encontro” aparece como determinante da construção do sujeito, da leitura do seu espaço e do tempo nos quais ele atua. O ponto de partida para isso é a consciência da alteridade no que esta possui de desafio e desejo. “Riquezas são diferenças”, entoa Arnaldo Antunes - outro exímio poeta da geração de Renato.

Vivenciar o outro como parâmetro para a dimensão de si parece ser um procedimento pertinente da obra russeana. Mesmo quando numa atitude típica dos românticos o autor centra-se em si (como na letra de“Soul Parsifal”), ele evade no tempo e no espaço; mesmo quando "encena" o tipo perdedor que habita o planeta passado, ainda assim presente e futuro intentam uma relação dialógica que não exclui a dimensão do outro. A poética produção de Renato traduz uma contínua simultaneidade atemporal onde o outro, a alteridade tem voz: "a cada ato enceno a diferença" (“Os barcos”); ou como nesta letra certeira de timbre adolescente: "...com você por perto/ eu gostava mais de mim" (“La nuova gioventu”).

Nesta produção musicial, a leitura do presente está diretamente relacionada às experiências e percepções passadas, além de intuir um futuro que às vezes se anuncia pleno. É o que insinua o texto “Perfeição”, de versos diretos e aparentemente referenciais, e cuja mutação harmônica sugere a coexistência de várias canções numa só. Lembremos a seguinte estrofe:

Venha, o amor tem sempre a porta aberta
e vem chegando a primavera
nosso futuro recomeça
venha, que o que vem é perfeição

A “perfeição” aqui entoada pelo sujeito parece apontar não para uma eterna audição harmônica e prazerosa desta última estrofe da canção, mas para o desejante devir proporcionado pelo efeito de fruição que Renato constantemente propõe: bebermos a água podre, comemorarmos os impostos e nosso castelo de cartas marcadas...

Noutros textos de O descobrimento do Brasil (1993) - um álbum no qual a temática das perdas é audível -, a proposta fruitiva aponta para recomeços que se valem do tempo como referencial: "...e aos vinte e nove no retorno de Saturno/ decidi começar a viver..." (“Vinte e Nove”) e "O fim do mundo já passou/ vamos começar de novo" (“Vamos fazer um filme”). Na trilha sonora do “filme” feito pelo “filho da revolução”, é audível o diálogo musical que o compositor mantém com autores e estilos de várias épocas. Nessa trama dialógica, ouvimos trechos de harmonias de Schubert, Verdi, Tom Jobim; conhecemos fragmentos melódicos do tradicional folclore americano (“Come share my life”), cantiga de amor do séc. XIII (“Love song”), instrumentais reciclados a partir de trilhas do cinema (“High Noon”, do filme Matar ou morrer) ...

No filme de Renato é visível a imagem do sujeito que faz da re-leitura do pretérito a elaboração de outro tempo (ou verbo) a ser conjugado no futuro. "Aquele gosto amargo do teu corpo/ ficou na minha boca por mais tempo/ De amargo e então salgado ficou doce", informa a experiência re-lida e estetizada em “Daniel na cova dos leões”. Essa experiência parece advinda de uma memória instalada na mente e no corpo, refletora de mudanças e movimentos sintonizados com a filosofia kanteana que anuncia: “Tempos diferentes são unicamente partes de um mesmo tempo”. Essa sintonia com esse pressuposto filosófico, percebemos que no texto atemporal do polêmico e polifônico Renato, a leitura do passado transcende a uma delimitação temporária do que foi vivenciado, já que o sujeito leitor da experiência tem sempre um outro olhar. Um olhar que é “desejo e palavra”; que vê e se deixa invadir por outros olhos. O olho como instrumento e enunciado poético.

Para a leitura desta poética do tempo, o autor re-lê o passado (a tradição) como texto de possibilidades, de criação. É o que demonstra o eu lírico de “L`avventura”: "Não se pode olhar para trás/ Sem se aprender alguma coisa/ P’ro futuro". Essa lição textual é incorporada ao presente, apontando para o vindouro e demonstrando que o sujeito está atento ao sonho produzido pelo tempo. Nessa temporalidade que inclui a dimensão onírica, as figurações do presente, as imagens do passado e as formas do futuro tornam-se relativas, como anuncia a pujança dos seguintes versos: "O que fazes por sonhar/ é o mundo que virá para ti" (1º de Julho). Vale lembrar aqui a antiga lição do jovem Jung, de que o futuro se prepara muito tempo antes no inconsciente; daí porque é viável sua tradução por parte de sonhadores e videntes.

Quando escutamos esssas canções onde o tempo é personagem e tema, algumas indagações persistem: teria Renato saudades do futuro? Seria o compositor por isso questionado acerca do seu “messianismo” junto ao público jovem que o acompanha, já que uma das características desse comportamento é apontar saídas, prever o futuro, anunciar uma nova ordem? O autor parece ultrapassar o domínio das funções sensoriais e utilizar-se de um raciocínio intuitivo que, elaborado a partir de um ritmo interno, determina um tempo próprio do sujeito. Este raciocínio intuitivo é ilimitado, pois, segundo Kant, diferentemente do pensamento, a intuição não supõe limites. Para o autor da Crítica da Razão Pura, “o tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições”.

Bem vindos ao ano 2O4O

Segundo o próprio Renato, o “V” é uma obra sobre a espera e, portanto, a incerteza, a possibilidade. Apesar disso, harmonias suaves e elementos positivos sobrepõem-se no texto. Tendo o tempo como interlocutor permanente, o álbum exibe na capa uma figura circular portando uma lua e uma estrela (é bom lembrarmos que, freqüentemente, os signos circulares representam o tempo). Este quinto álbum da Legião Urbana traz em seu encarte uma frase intrigante para ouvidos dos anos 9O: "Bem vindos aos anos 7O" - anuncia a obra que caracteriza-se por apresentar harmonias de longa duração temporal, pontuadas por instrumentais pesados que parecem se repetir ad infinitum... Uma canção de 6 minutos, outra de quase 8, uma outra com mais de 11 minutos, ya que el tiempo es acá nuestra musa (é desnecessário aqui ressaltarmos o que representou, no contexto sócio-político e cultural, os anos 7O no Brasil. Representariam aqueles anos a metáfora do “Tempo perdido” já entoada em Dois?).

Nesta obra que tematiza a espera e a possibilidade, baladas belíssimas como “Vento no litoral” e “Longe do meu lado” (esta última do CD A tempestade ou O livro dos dias), canções de tons viscerais são entoadas por um sujeito que estetiza romanticamente o espaço e o tempo com os quais interage. Sujeito que é, como atestam os seguintes versos, orientado sempre para o futuro: "Vê, a linha do horizonte me distrai". Ou ainda: "Podemos ficar juntos e vivermos o futuro, não o passado". Essas letras acenam para sutis diferenças expostas por quem tenta suprir a falta, re-trabalhar a perda, através da re-leitura de signos empoeirados, como ouvimos nestes versos de “O teatro dos vampiros”: "E destes dias tão estranhos/ fica a poeira se escondendo pelos cantos..."

No texto “Metal contra as nuvens” uma polifonia vocal expressa o fragmentado eu que parece encenar vários sujeitos. Nas quatro partes que dividem a canção (na verdade parecem 4 canções numa só), múltiplas vozes anunciam o diálogo mantido entre reinos e planos concretos, simbólicos, imaginários: "Sou metal: me sabe o sopro do dragão". Já na emotiva e delicada letra de “O mundo anda tão complicado”, o afetivo narrador experimenta o tempo juvenil da partilha e, em comunhão com o outro instaurador do espaço, reconhece sua capacidade de fazer mil coisas ao mesmo tempo.

“quanto tempo perso dietro a lui”


Nesta poética finissecular, o texto e a vida são perpassados por um tempo todo linguagem... Numa canção de O descobrimento do Brasil, um sujeito diz ter aprendido a viver um dia de cada vez (“Só por hoje”); noutra canção do álbum Dois, a esperança revolucionária está de volta na voz que proclama: "Nosso dia vai chegar" (“Fábrica”). Durante “A Tempestade” e na presença de seus anjos, o romântico que tudo espera de si sabe ser a solidão o mal do século, e assim conclui a letra de “Esperando por mim”: "Os nossos dias serão para sempre". Já no final dessa trajetória estética, um eu de Uma outra estação segue o calendário maia e, ainda neste CD póstumo, uma outra voz confessa: "queria que o tempo/ pudesse voltar outra vez" (“Comédia romântica”).

Mas, como sabemos, o tempo não volta. Nem pára, como cantava Cazuza, outro compositor da geração do Renato. No tempo circular do eterno retorno, essa expressiva discografia (9 álbuns com a Legião e 3 solos, gravados entre 1984 e 1996) apresenta um elenco de musas e personagens musicais que são entoadas por toda uma geração: Eduardo e Mônica, João Santo Cristo e Maria Lúcia, João Roberto, Andréa Dória, Daniel, Clarissa, Maurício, Mariane, Leila... Muitos são os “meninos e meninas” estetizados na rápida temporada russeana pelo planeta terra. Vários são os personagens vivificados por Renato - poeta contemporâneo dos procedimentos artísticos do seu tempo; sujeito da paixão e romântico rebelde que, dizendo-se seduzido pelo espírito, ´pela bondade e pelo desejo, estetiza na página a matéria poética vivenciada na pele.

A poética de Renato Russo inscreve-se a partir de uma memória que articula vários tempos. Essa poética interfere no con-texto presente a fim de projetar o tempo futuro. Neste sentido, "o espetáculo" da sua própria morte transforma-se em texto: as cinzas do corpo do poeta espalharam-se nos paradisíacos jardins do paisagista Roberto Burle Marx, no Rio de Janeiro, em Outubro de 1996.

Como reza um dos encartes da banda, “existem marés e existe a lua... Existem canções”. Haverá sempre “Uma outra estação”, apesar de “A tempestade” ser o signo que representa a música “ou o livro dos dias”. Como nos ciclos das quatro estações, podemos alcançar, sozinho ou a “Dois”, uma outra primavera, tendo como trilha uma certa “Música para acampamento”; podemos descobrir “Que país é esse”, ao ouvirmos novamente “O descobrimento do Brasil”. Mesmo que essa audição implique um “Equilíbrio distante” (Mencionei aqui todos os títulos dos álbuns, faltando apenas o “V”. Na leitura feita pela numerologia, este número é considerado o centro por estar no meio dos 9 primeiros números. Podemos então intuir uma certa sincronia, ao lembramos que a Legião Urbana gravou 9 álbuns, e que este quinto álbum poderia representar o centro da carreira da banda?).

São muitas as perguntas que o tempo propõe para quem vive, canta, voa. Como num antigo texto chinês, voou o pássaro de fogo que devorou o tempo, ou foi o tempo quem apressou o vôo do pássaro? Se é certo que as mutações espaciais e as transformações das marés determinam mudanças no tempo e no comportamento das pessoas, é possível escutar - em qualquer estação -esse canto que ecoa para sempre. Afinal, como ele intuiu/entoou, "o infinito é realmente um dos Deuses mais lindos".


Bibliografia

01 - Baitello Jr., Norval. O animal que parou os relógios.
1ª ed. São Paulo: Annablume, 1997.

02 - Bakhtin, Mikhail. "Formas de tempo e de Cronotopo no Romance" in
Questões de literatura e de estética. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990.

03 - Campos, Haroldo de. Qohélet/O-que-sabe/Eclesiastes (Poema sapiencial). São
Paulo: Perspectiva, 1990.

04 - Franz, Marie-Louise Von. Ritmo e Repouso. Trad.: GVS. Rio de Janeiro,
Edições del Prado, 1997.

05 - Kant, Immanuel. "Do tempo" in Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto
dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 2ª ed. Lisboa, 1989.

06 - Leshan, Lawrence. "Físicos e místicos: semelhanças na visão do mundo" in
Mística e Ciência. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1991

07 - Russo, Renato. Conversações com Renato Russo.
Campo Grande: Letra Livre, 1996.

08 - Peixoto, Nelson Brissac. "Aquele que vem do passado"
in Cenários em Ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Discografia

a) Legião Urbana

. Dois, 1986
. As quatro estações, 1989
. V, 1991
. O descobrimento do Brasil, 1993
. A tempestade ou O livro dos dias, 1996
. Uma outra estação, 1997

b) Renato Russo

. The Stonewall Celebration Concert, 1993
. Equilíbrio distante, 1995
. O último solo, 1998


Valeu JJ pela interlocução.

Este texto é dedicado para:

Favo de Mel (minha querida aluna), Micheline Santos da Silva, Luciana Pompeu, os concluintes/98 do Colégio Agrícola de Ceará-Mirim, a profª. Maria José e os alunos do 2º ano A (“Renato sem você está russo”) do colégio Berilo Wanderley, Natal-RN.