domingo, 28 de junho de 2009

Nada de mergulho: sobre Macau




Uma versão desta resenha foi publicada em 2004 no Fórum Virtual O que é literatura – PACC/UFRJ
http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/index.php


A escuridão começa pelas bordas
e vai seguindo até chegar ao centro,

lá onde uma semente aguarda a hora,
tranqüilamente, sem medo do escuro:
pois é da natureza das sementes

se afastar da luz, mergulhar no úmido,
sepultar-se por toda uma estação.
No entanto, neste caso a escuridão
é de outra espécie, mais seca e mais rasa,

uma que avança devagar e sempre,
alheia a qualquer propósito ou causa,
Até só restar pedra sobre pedra.

Mas a semente espera. Ela é insistente,
e acerta mesmo sem saber que erra.


I

Lançado em 2003 pela Cia das Letras, o livro Macau sugere, já na superfície luminosa de sua capa, e na portabilidade do seu projeto gráfico, o que aguarda o senhor leitor hipócrita e cúmplice do poeta e tradutor Paulo Henriques Brito:

Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.


Esses dois versos - de um dos DEZ SONETÓIDES MANCOS, o VI mais exatamente - estetizam aquilo que a orelha de Macau entrega: o poeta alimenta-se da matéria nossa de cada dia. Sua escrita brota bem ali, do "cais raso da subjetividade". Também vem da orelha do livro a audição de uma outra senha desta poética que é um elogio à oralidade ao conectar "rigor formal e desordem cotidiana".

Essas conexões entre o "raso" - a superfície, a pele - e o que a estrutura corporal capta e fabrica, em termos de forma estética, é visível na grande maioria dos poemas. Isso pode ser aferido, por exemplo, no cabralino poema V da FISIOLOGIA DA COMPOSIÇÃO:


É preciso que haja uma estrutura,
uma coisa sólida, consistente,
artificial, capaz de ficar
sozinha em pé (não necessariamente
exatamente na vertical), dura

e ao mesmo tempo mais leve que o ar,
senão não sai do chão. E a graça toda
da coisa, é claro, é ela poder voar,
feito um balão de gás, e sem que exploda
...


O leitor não se engane: nesta poética onde a "coisa" voa, não há sentimento alado nem coração algum explode. Macau é território da contenção e da brevidade de quem traduziu, dentre outros poetas, Emily Dickinson, Wallace Stevens e Elizabeth Bishop. Espaço da semente contida que aguarda de forma irônica, humorada, na umidade abaixo da pedra. Da leitura de DE VULGARI ELOQUENTIA, por exemplo, emerge a imagem dos ombros drummondianos que foram estetizados como suportes existenciais do século XX, no tempo em que a vida era uma ordem. Na poética de Paulo Henriques Britto os suportes são outros. Em seu texto, nenhum "José" "está sem assunto". Isso acontece porque são as palavras - e não os ombros - que suportam o mundo; este mesmo mundo que o poeta outorga ao desejante leitor, num dos DEZ SONETÓIDES MANCOS, indagando se ele, o senhor leitor, vai "comer" "aqui e agora" ou prefere "pra viagem". O "sonetóide" sugere um possível diálogo com o poema "Cantiga de Enganar", do livro Claro Enigma, onde o poeta de Itabira treina leveza, aprende a rir e diz: "O mundo não vale o mundo, meu bem".

Humor e ironia dialogam nessa seqüência inicial de textos que inclui BAGATELA PARA A MÃO ESQUERDA e as TRÊS TERCIANAS (principalmente a primeira). A leitura desses poemas sugere ser essa metalinguagem mais produtiva e bem humorada, caso o leitor possua repertório para reler alguns dos procedimentos estéticos caros às poéticas da modernidade que atravessaram o século XX.


II


Em "Biodiversidade", primeiro texto deste volume, uma "fala esquisita" sugere uma voz "do outro lado da linha formigando de estática". Inscrita num invisível espaço úmido tal qual a semente em seu mergulho ao afastar-se da luz, essa voz possibilita ao leitor um intertexto com outras vozes díspares. Vozes que se inscrevem a partir de diferentes figurações espaciais. Essa inscrição não rasura a superfície ("só o raso é cool"), mas o mergulho expressivo, aqui neste "império" sonoro onde "a dor é kitsch" e o que se sente, atropelado. Nestes textos, o espaço faz aflorar gestos feito sementes que avançam em diferentes ritmos, alheias a quaisquer propósitos ou covas. Pactos, lábios e epifanias podem resgatar, entre o amor e o asco, a porção romântica que ronda o leitor de poesia contemporânea:

Porque nenhum descobridor na história

(e alguém tentou?) jamais se desprendeu
do cais úmido e ínfimo do eu.

Desse cais, o poeta traduz a afetiva lição do humor e da curva; remete ao mundo sua carta historiando múltiplos espaços e diferentes concepções temporárias. Diferentemente do poeta aristotélico, sua história não "narra" o futuro de pretérito, mas os vários tempos de que se fazem sua poesia. Principalmente o presente. E mesmo que o seu verbo encerre algumas seqüências de mini núcleos temáticos repletos de não e nada e nunca, ele se anuncia prenhe de sementes e suportes. Porque esse "descobridor" que não se desprende de seu "cais", navega as águas da alteridade "à mercê do latejar de um músculo". E esse latejar traduz uma certa oralidade cotidiana na qual o leitor deste início de milênio se reconhece muito bem. E vivo.