quinta-feira, 25 de junho de 2009

Cascudo pela lente do ensaio





Resenha publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 1998


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Acabo de ler, numa revoada, um livro.
Refiro-me a Asas de Sófia / Ensaios Cascudianos (Fiern-Sesi/Natal, 1998) - texto arguto do professor e ensaísta Humberto Hermenegildo, classificado no Concurso Nacional de Temas Câmara Cascudo.

Preenchendo uma lacuna na vida literária da província, onde muitas vezes fala-se sem densidade crítica e/ou teórica, Humberto constrói um texto cujas “arquitextura” simples e montagem metalinguística passam para o seu leitor o ponto e as luvas. Trata-se, portanto, de um ensaio sobre ensaios. No caso, a leitura da prosa ensaística de Câmara Cascudo, produzida na década de 20.

Aqui o leitor não é embromado com idéias mirabolantes nem excessos teóricos. Ao contrário: o autor vai direto ao tema delimitado - às asas do pássaro -, brindando o leitor com um texto cujo vôo engendra uma noção precisa e sucinta do que deseja tratar e/ou informar: ... a idéia de que toda a produção intelectual de Câmara Cascudo enraíza-se no processo criativo exercitado por ele ao longo dos anos 20, e com um método (im)preciso: o método ensaístico (p. 17).

1º perfil literário do RN

Na primeira parte do livro - “O ensaio como elemento construtivo na obra de Câmara Cascudo”, o autor lembra que, através da literatura, Cascudo inicia sua produção bibliográfica, em 1921, com a publicação de Alma Patrícia - livro de crítica impressionista e admirativa (Cascudo), que traça um primeiro perfil literário do RN. Esta obra cascudiana ressalta a importância de, dentre outros, o poeta Henrique Castriciano, influenciado por autores como Baudelaire, Mallarmé, Verlaine... e Ferreira Itajubá. Este último, é lido por Cascudo como "...um sopro vindo das montanhas ....naquele ambiente abafado de lirismo e pieguice".

A leitura deste primeiro capítulo expressa para o leitor o duplo e pioneiro papel de Cascudo, em relação à literatura potiguar. Segundo Humberto, Cascudo executou, na década de 2O, um programa cultural que tinha dois eixos básicos: a atualização da província que se modernizava e a pesquisa da cultura regional... (p. 17). Árdua e desafiante, a tarefa de Cascudo: situar o RN no contexto da modernidade, sem deixar de voltar-se para o legado da cultura regional e sua tradição.

“Um ensaísta em Natal” - a 2ª parte do livro - ressalta a importância estética de Câmara Cascudo e Jorge Fernandes. Esses autores são lidos como marcos representativos de um contexto no qual o RN começa a figurar no cenário literário brasileiro (no capítulo anterior, Humberto ressaltara a poeta Auta de Souza - único nome a sobressair-se, até então, no cenário simbolista nacional).

Segundo o autor, o componente literário permeia a produção de Cascudo, e em toda a sua obra são indissociáveis as marcas do historiador e do literato. Como exemplo dessa indissociabilidade, Humberto comenta o relato “Veados de Santo Humberto”, do livro Histórias que o tempo leva (1924). O referido relato constrói-se a partir de dados referenciais (a invasão holandesa) e elementos imaginários (a lenda dos 3 “veados fantásticos” em noite de lua “no Morro Branco”). Aqui, Humberto vale-se de Adorno para justificar o procedimento do narrador, que parece fugir do campo do ensaio (o que expressa a limitada visão adorniana, em relação ao gênero ensaístico). A fuga do campo ensaístico seria motivada pela mescla de informações reais e experiências imaginárias, presente no texto de Cascudo; o que nos remete a outro belo título de sua bibliografia: Prelúdio e fuga do real, de 1974.

Denunciando um “quê de modernidade” nos escritos cascudianos dos anos 20, Humberto encerra a 2ª parte de seu ensaio, e na parte seguinte analisa “A experiência modernista.” Refere-se, de início, a Mário de Andrade e a sua predileção pelo livro Histórias que o tempo leva; adota a noção de “cosmopolitismo” advinda de Jorge Schwartz. Essa parte revela também a admiração de Cascudo por Pernambuco - “o mais brasileiro de todos os estados” e a sua antevisão do romance regionalista de 30, ao sugerir que o romance "...só representará o Brasil se sair do Norte".

Num dos momentos mais elucidativos de seu texto, o autor explicita a difícil tarefa de Cascudo com os autores modernos paulistas (leia-se Mário de Andrade), menciona a sua publicação na “Revista de Antropofagia” n. 4 (1928) e a difícil dicção de modernidade perseguida pelo autor potiguar. A partir daí, Luís da Câmara Cascudo pesquisará elementos que, da cultura, serão uma figuração do atributo nacional e popular do Modernismo brasileiro (p. 59), conclui o autor.

“Uma rede armada no universo” trata da amplitude das noções e experiências da modernidade vivificadas por Cascudo. Ressalta as viagens dos modernistas pelo interior do país e reproduz takes do roteiro traçado por Mário e Cascudo (Açu, Caraúbas, Martins, Macau...). Resgata também instantâneos de intensa poeticidade registrados por Cascudo, como este de “A Igreja do Rosário de Acari”: "Duas janelinhas olham a praça bonita, moderna". Ou este outro instantâneo, escrito ao penetrar Cascudo na aspereza da paisagem oestana: "O Oakland trepa nas pedras cabritando equilíbrios cômicos; Que pulos!" Num belo momento de Asas..., Humberto vê a viagem - o “método ensaístico” de Cascudo - como forma de leitura. E utiliza-se do próprio ensaísta potiguar, que cita Sarmiento, para concluir esta 4ª parte: "Entendi viver a frase de Sarmiento: - Las cosas hay que hacerias, mal, pero, hacerlas. Por isso tentei esta viagem ao redor da rede-de-dormir".

Entre antena e raiz

Alçando vôo na biografia cascudiana, Humberto conclui seu ensaio. Demonstra ser o texto do autor de O tempo e eu escrito sob as influências da forma ensaística. Assume ser a biografia de Cascudo uma obra que, representando a coletividade potiguar, insere-se no plano da nacionalidade. Essa inserção possui um nome: tradição. Essa conclusão expõe a tensão existente numa produção que busca a permanência de uma tradição e a imposição de uma Modernidade... (p. 80).

Finalizando este sucinto e reflexivo texto, Humberto adverte que a obra cascudiana carece de muitas re-leituras. Generoso, sugere, para os responsáveis por pesquisas posteriores, “Sete proposições e um Cascudo”. Dentre essas, destaca-se uma que problematiza a análise da obra, no diálogo com o movimento modernista. A partir disso, indaga Humberto: "...como se opera, na obra de Cascudo, a transposição do popular para o erudito, do primitivo para o civilizado, do rural para o urbano, no contexto de uma sociedade desigual?" (p. 86)

Belo vôo, Humberto. A luz irresistível que matara o pássaro, agora nos ilumina. O que morreu, reproduz. Asas para quem voa “entre o fascínio da Modernidade e a necessidade da tradição” (p. 80).